"O Bêbado e a Equilibrista" é uma das mais famosas músicas que berraram nos ouvidos da covarde ditadura - mesmo "covarde ditadura" sendo redundante, vale destacar - militar que assolou - e assombrou - o Brasil de 1964 a 1985. A música foi composta por Aldir Blanc e João Bosco e lançada no LP "Linha de Passe", em 1979 e gravada por Elis Regina, voz que deu forma à música e ficou conhecidíssima.
Como a doce adjetivação da esperança - equilibrista - existem muitas possibilidades para as geniais - e geniosas - metáforas de Aldir Blanc. Como a de que as "estrelas" seriam generais e "céu", a prisão. *
Betinho, sociólogo, ativista pelos direitos humanos, perseguido e exilado na época do regime militar, era irmão do, também genial, Henrique de Souza, o cartunista Henfil, este que foi apresentado ao compositor Aldir Blanc por sua amiga, a cantora Elis Regina, no verão de 1975, iniciando assim uma boa amizade.
Sensibilizado com o falecimento de Charlie Chaplin, João Bosco compôs uma linda melodia em sua homenagem e chamou Aldir para mostrá-la. Aldir letrou a música e fez uma singela homenagem ao rimar "Brasil" com "irmão do Henfil", esta rima, que por sua vez teve papel de emoção, mobilização, transformação e incentivo a uma nação reprimida. Aldir afirmou que se dissesse "Betinho", ninguém reconheceria, a referência ao irmão Henfil era mais forte, ele já tinha fama na época, enquanto a imagem pública de Betinho veio a se formar com força já pelos anos noventa, principalmente após a criação da "Ação da Cidadania".
Herbert de Souza, o Betinho, ouviu pela primeira vez a canção, na doce voz de Elis, exilado no México. Seu irmão o telefonou e pôs, sem nada avisar, para que ouvisse. Ao enviar a fita cassete, Henfil escreveu um recado: "Mano velho, prepare-se! Agora nós temos um hino e quem tem um hino faz uma revolução!". Dito e feito!
A campanha pela anistia irrestrita foi a primeira movimentação nacional que obteve sucesso desde o início da sangrenta ditadura militar no Brasil. Vários manifestos ocorreram no mundo inteiro, inclusive a Conferência Internacional da Mulher, no México, que fez de 1975 o Ano Internacional pela Anistia.
Em 1979, Betinho desembarcou no Aeroporto de Congonhas e se deparou com uma manifestação: Cerca de duzentas pessoas cantavam "O Bêbado e a Equilibrista".
Um pouco de música: interpretação de O bêbado e a equilibrista
João Bosco (melodia) e Aldir Blanc (letra), gravam em 1979 esta música, interpretada por Elis Regina. Seu lançamento ocorre em um momento de intensa repressão ideológica e consequente perseguição política. Esse período que inicia em 1964 e vai até fins da década de 1980 é conhecido como Ditadura Militar. Nessa época, era preciso usar-se uma grande transferência de sentidos, ou seja, linguagens metafóricas. Essas linguagens conferem a determinados objetos de pensamento atributos pertencentes a outro. Pensando nisso, os artistas faziam, assim, músicas repletas de linguagens figuradas, cujas informações subliminares precisam ser conhecidas por aqueles que as recebem, para compreender o real manifesto da música, como no caso a ser analisado.
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos...
Na primeira estofe da canção, há referências ao otimismo que o Brasil vivia até a da primeira metade da década de 1960. Aldir Blanc pode ter recorrido a uma figura poética calcada em velhos temas, como o filme Luzes da Ribalta com Carlitos, uma das personagens mais conhecidas de Charlie Chaplin. Um andarilho de chapéu-coco, bigode e um paletó muito apertado que, apesar de pobre, agia como um cavalheiro. Fica clara a contradição entre “bêbado” e “luto”: a alegria do vagabundo que tenta driblar a situação e o estado melancólico da sociedade brasileira.
No entanto, a luz do progresso chega ao fim, pois “caía a tarde feito viaduto”. Essa passagem alude a duas tragédias semelhantes:
Uma, que ocorreu no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971, foi o desabamento, durante sua construção, sobre ônibus, pedestres e carros, de parte de uma imensa elevada que se estendia por quilômetros, o Viaduto Paulo Frontin.
Outra, em Belo Horizonte, em fevereiro de 1971, foi um pavilhão que, projetado por Oscar Niemaier sob a ordem do governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, também desabou sobre os operários, durante a hora de folga, no meio-dia.
Esse conjunto de construções correspondia ao “milagre econômico” que a ditadura tentava apresentar à população brasileira, para recuperar as antigas euforias dos períodos populistas. Porém, seus equívocos e acidentes, como estes dois denunciados metaforicamente na música não eram divulgados pela mídia da época e as vítimas dificilmente eram indenizadas pelo governo responsável. Além disso, “caía a tarde” nos remete ao horário do dia quando as sessões de tortura do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna) começavam.
A lua
Tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel
A lua apenas reflete a luz do sol. Esse é o tema da segunda estrofe, que faz menção aos reflexos do passado. Assim, segue a noite, referida na terceira, quarta e quinta estrofe, denunciando em linguagem figurada e elaborada as consequências da ditaduras: torturas, exílios, desaparecimentos e famílias dilaceradas. Ademais, a Lua não tem brilho próprio, mas como proprietária do prostíbulo, rouba-o das suas empregadas; um brilho falso, que pode representar os políticos que se “venderam” ao regime militar, em troca de benefícios pessoais, com os recursos “roubados” do país.
E nuvens!
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!
Louco!
Anterior à caneta esferográfica, mata-borrão era um papel que absorvia a tinta em excesso das canetas-tinteiro para evitar erros. Saber disso permite compreender que havia determinados controles e atitudes punitivas para aqueles que “manchassem” a ordem presente na ditadura. Ressalta-se que os ditador pode ser ironizado como o “louco” apontado nesta estrofe da música.
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil,
Choram Marias e Clarisses no solo do Brasil
Henfil, que rima com Brasil, é um apelido ou pseudônimo do cartunista e jornalista Henrique Filho que, exilado, era irmão de Herbert de Souza, o Betinho, sociólogo e ativista de direitos humanos, também perseguido e exilado, como tantos outros brasileiros.
Chora!
A nossa Pátria
Mãe gentil
Choram Marias
E Clarisses
No solo do Brasil...
Clarice era esposa do jornalista Vladimir Herzog, que fazia parte do movimento de resistência contra o regime e teve um suicídio por enforcamento muito mal forjado em uma cela do DOI-CODI. Maria, por sua vez, era esposa do metalúrgico Manuel Fiel Filho, torturado até a morte sob a acusação de fazer parte do Partido Comunista Brasileiro, embora seu real crime tenha sido ler o jornal A Voz Operária. No plural, “Marias e Clarisses” são todas as mulheres, sejam mães, filhas ou esposas, que sofreram por alguém que fora torturado ou exilado. Além disso, destaca-se o tom de ironia ao rimar um refrão do Hino Nacional com Brasil, neste refrão, onde apresenta justamente um Estado que deveria nos proteger, mas que nos tortura.
Mas sei, que uma dor
Assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança...
Dança na corda bamba
De sombrinha
E em cada passo
Dessa linha
Pode se machucar...
Há uma história brasileira do início do século XX, baseada na vida de Zequinha de Abreu, compositor de Tico-Tico no Fubá, um músico que se apaixona pela trapezista de um circo e compõe uma valsa homônima à moça chamada Branca. Assim, ele rompe seu noivado para seguir a caravana circense, mas se decepciona e volta à terra natal, onde vive seu casamento deprimido e começa a tocar em bailes de carnaval seu grande sucesso (Tico-tico no Fubá). Eis que um dia a vê entrando no salão com o marido e interrompe o chorinho que dá nome ao filme e começa a tocar Branca. Tocada pela emoção de ouvir sua música ela vai a seu encontro, mas Zequinha abandona o piano e sai desesperado pelos fundos do clube e acaba morrendo em seus braços num ataque cardíaco fulminante.
Azar!
A esperança equilibrista
Sabe que o show
De todo artista
Tem que continuar...
Os artistas, não conformados com a opressão, usariam assim a expressão artística, como uma arma disponível para defender a democratização, em meio ao comportamento da sociedade, que vivia na corda bamba, sempre por um triz a ser pega fora da linha estipulada pelos militares. Mas em meio a essa corda bamba de incertezas, todos prosseguem com sua lida cotidiana. E a esperança é o que faz eles prosseguirem com a luta para seguir adiante; afinal, “… o show tem que continuar…
Blog do Paixão