A
Polícia Federal tem provas consistentes de conluio entre fiscais do governo e
empresas, mas não de venda de produtos estragados em larga escala
DIEGO
ESCOSTEGUY / época
Policiais federais durante Operação Carne fraca (Foto: Marcos
Alves/Agência O Globo)
A Operação Carne Fraca,
vendida pela Polícia Federal na última sexta-feira (17) como a maior da
história, uma espécie de Kobe Beef investigativo, assenta-se, ao menos até
agora e nos pontos mais relevantes, em provas repletas de acém. Um exame detido
das evidências colhidas pela PF aponta a existência de um esquema corrupto
entre frigoríficos do Paraná e fiscais do Ministério da Agricultura lotados em
cidades paranaenses. Há indícios consistentes de que alguns dos envolvidos
nessa organização criminosa facilitaram a produção e venda de carne estragada,
ou possivelmente estragada, no Paraná. No aspecto gravíssimo do risco à saúde
sanitária dos consumidores, as provas mais consistentes restringem-se a
frigoríficos pequenos e médios naquele estado. Não há, até aqui, evidências da
existência de um esquema em larga escala para vender carne podre, imprópria
para consumo humano – algo que o estardalhaço com o qual a PF divulgou a
operação levava a crer. Resta, por enquanto, um preocupante descompasso entre
as provas disponíveis e o alarde promovido pela PF.
Policiais federais durante Operação Carne fraca (Foto: Marcos
Alves/Agência O Globo)
A vasta maioria dos fatos criminosos expostos pela PF
estão no Paraná. É lá que se encontram casos como o do frigorífico Peccin,
principal alvo da investigação, cujos donos aparecem, em interceptações
telefônicas, combinando pagamento de propina a fiscais e fraudes para assegurar
venda de carne provavelmente podre. Existem indícios semelhantes quanto ao
frigorífico Larissa. Há provas abundantes, em interceptações telefônicas,
depoimentos e registros bancários, da relação corrupta entre os fiscais e os
donos de frigoríficos. Havia propina em dinheiro. Havia propina paga em carne,
até mesmo em coxinhas de frango, tudo sempre mencionado ao telefone. Havia uma
promíscua naturalidade nos diálogos entre fiscais e funcionários dos
frigoríficos. A esculhambação era tamanha que fiscais faziam churrasco com
carnes apreendidas e forneciam as próprias senhas para que funcionários dos
frigoríficos consultassem o sistema do Ministério da Agricultura. Um fiscal
chegou a pedir petisco de cachorro a um dos frigoríficos; outro recebeu um
isopor com picanha.
O filé da investigação encerra-se no Paraná – novamente,
ao menos até o momento. Não há elementos semelhantes para descrever o mesmo
descalabro em outros estados, quanto mais no país inteiro. A PF chegou às
irregularidades em outros estados – Goiás e Minas Gerais, até agora – por meio
de Roney Nogueira, um dos diretores da gigante BRF. Roney, conforme demonstram
as interceptações telefônicas, era um resolvedor-geral da BRF. Ele aparece em
todas. Tanto no Paraná quanto em Goiás e em Minas. No caso mineiro, usou o
login de uma fiscal para verificar pendências da BRF. Em Goiás, a coisa foi
possivelmente mais séria. Diálogos telefônicos mostram Roney agindo para evitar
a interdição de uma planta da BRF.
A princípio, Roney estaria somente cumprindo sua função,
sem qualquer ilegalidade. Mas ele aparece em interceptações repassando asinhas
de frango – sim, asinhas de frango – para o fiscal responsável. E comenta com
colegas que o mesmo fiscal cobrou R$ 300 mil em doação de campanha para o
padrinho político dele, do PTB. (Em diálogos subsequentes entre diretores da
BRF, eles dizem que não pagarão.) Há evidências de que a planta da BRF em Goiás
apresentava problemas para se adequar aos padrões impostos pelo governo. Não
fica clara, contudo, a natureza dessas dificuldades. Ou seja, se a planta tinha
problemas porque produzia carne podre ou se essas dificuldades advinham de
empecilhos burocráticos, banais. Um diálogo entre diretores da BRF registra a
preocupação com uma carga, produzida na planta em Goiás, que foi impedida de
entrar na Europa por suspeita de conter um tipo de salmonela. Pode ser um caso
grave, mas a PF não avançou nele. Na verdade, há vários tipos de salmonela em
carnes in natura –
nem todos são um problema sanitário. (A PF fez perícia em somente uma planta,
do frigorífico Peccin.)
O episódio da salmonela, registrado com espanto pela PF e
pelo juiz do caso, demonstra que faltou aos investigadores conhecimento técnico
sobre a produção e a exportação de carne – como consequência, também sobre o
controle e a vigilância sanitária promovidos pelas empresas e pelo governo. O
mesmo desconhecimento viu-se no caso do áudio sobre o papelão que, segundo a
PF, havia sido misturado à carne – afirmação fundamentada tão somente na
interpretação de um diálogo telefônico. Trata-se de um disparate: o áudio deixa
evidente que se tratava da embalagem do produto. O alarme com o uso de cabeça
de porco no processamento de alguns tipos de carne é outro aspecto que põe em
dúvida o exame técnico da PF sobre a área. É uma prática que está dentro da
lei.
Somados, os lapsos técnicos ferem a investigação da PF. Há
provas fortes de corrupção, inclusive envolvendo gigantes como BRF (sobretudo
com o diretor Roney) e JBS (um funcionário da Seara, que pertence à marca,
pagava propina a fiscais no Paraná, segundo os áudios). Mas são escassas, com
exceção dos casos de alguns frigoríficos paranaenses, as evidências de fraudes
sanitárias em grandes empresas ou no restante do país – precisamente o ponto
que chocou o país e alarmou o mundo. A corrupção e a promiscuidade entre os
fiscais do Ministério da Agricultura não existiam, necessariamente, para
permitir a venda de carne imprópria para o consumo. Como demonstram as provas,
especialmente as interceptações telefônicas, os frigoríficos queriam agilizar a
emissão de certificados e vencer rapidamente outros entraves burocráticos. Com exceção
dos casos já descritos, não há indícios, até o momento, de que as propinas
descobertas, seja em maços de R$ 100, seja em asinhas de frango, tivessem como
propósito escamotear a venda de carne podre.
Cabe à PF avançar no caso e, com a ajuda dos peritos do
Ministério da Agricultura, descobrir, com urgência, o real alcance da corrupção
entre os fiscais e das fraudes sanitárias. O alarme provocado com o anúncio da
operação abalou fortemente a confiança dos brasileiros e dos estrangeiros na
carne produzida no país. Essa confiança só voltará, se voltar, quando uma
exaustiva investigação terminar. Todos os fatos precisam ser conhecidos, e
todos os envolvidos afastados e punidos. Para que isso ocorra, a PF precisará
finalmente entregar o que prometeu na sexta-feira: uma investigação Kobe Beef.
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