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'Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro': verso absurdo une paraibanos a novas gerações

De Belchior a Emicida, poema com autoria controversa liga Zé Limeira, Orlando Tejo e Otacílio Batista à geração que vê sentido em versos feitos para serem 'absurdos' e publicados pela primeira vez em 1973.

Por Phelipe Caldas, G1 PB


Os versos absurdos atribuídos a Zé Limeira: não era para fazer sentido — Foto: Zé Limeira - O Poeta do Absurdo/Reprodução 

“Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. O verso, que ficou consagrado na voz de Belchior, voltou com força nos últimos anos. Seja por causa da instabilidade política que ronda o país desde 2016, seja por causa da pandemia de Covid-19 que assola o mundo, a frase virou hino de uma geração que vive tempos difíceis e, recentemente, voltou a repercutir nacionalmente após gravação do rapper Emicida (no álbum AmarElo). Mas o que poucos sabem é que o verso, que parece fazer tanto sentido hoje em dia, tinha como objetivo original ser o mais absurdo possível na época em que foi escrito. 

A propósito, a própria autoria do verso é alvo de uma controvérsia histórica entre os paraibanos Zé Limeira, Orlando Tejo e Otacílio Batista. Oficialmente, ele é creditado a Zé Limeira, um cantador e repentista analfabeto, nascido em Teixeira, na Paraíba, 135 anos atrás, conhecido em sua terra natal por produzir versos sem muito sentido, mas perfeitos na métrica poética. 

O problema é que Zé Limeira viveu num tempo sem tanta preocupação com documentação. E não se sabe nem mesmo se ele chegou a ter uma certidão de nascimento, o que, durante muito tempo, principalmente nos anos 1980 e 1990, fez muita gente duvidar de que ele teria mesmo existido. Ademais, o seu verso mais conhecido pode ter sido escrito por outro famoso cantador paraibano em meio a uma grande brincadeira literária. 


Verso escrito para não fazer sentido foi ressignificada por Belchior em 1976 — Foto: Daniel Roman/Arquivo Diário do Nordeste 

Zé Limeira, o Poeta do Absurdo 

Antes de prosseguir, é importante que seja dito: Zé Limeira existiu, de fato. E quem garante isso é o jornalista, escritor, poeta e repentista Astier Basílio, um paraibano que está escrevendo a biografia de Orlando Tejo, jornalista que foi também uma espécie de biógrafo de Limeira. 

As histórias de ambos são indivisíveis em certos aspectos. E, para pesquisar sobre a vida de um, Astier invariavelmente pesquisou sobre a vida do outro. 

Acontece que Orlando Tejo publicou em 1973 o livro “Zé Limeira – O Poeta do Absurdo”, que se tornou um grande sucesso editorial em todo o Brasil. É nesse livro que aparece pela primeira vez na história um registro escrito da frase. Ela é um pouco diferente da versão que seria gravada por Belchior três anos depois, em 1976, na canção “Sujeito de Sorte”: 
“Morri no ano passado,
Mas esse ano eu não morro!”. 

Astier Basílio com as 11 edições de "Zé Limeira - O Poeta do Absurdo": escritor comparou todas as edições até perceber que existe muita ficção no livro — Foto: Astier Basílio/Arquivo Pessoal 

O livro conta a história de Zé Limeira. É escrito como se fosse uma biografia do repentista. Mas Astier Basílio explica que Orlando Tejo era, antes de tudo, um ficcionista. Que escreveu um livro que pode ser lido como um romance. 

Da Rússia, onde está fazendo mestrado em Ensino de Literatura Russa, Astier conversou por telefone com a reportagem. E em meio a um frio de -12ºC do inverno russo, ele se propôs a fazer uma regressão aos calorentos anos 1970 na Paraíba. 

“Orlando Tejo era uma figura do jornalismo romântico e uma figura muito gozadora, que paquerava muito proximamente com a ficção. Zé Limeira é um personagem real, apresentado no livro em situações reais e fictícias”, explica. “Fica muito difícil saber o que é real e o que é ficção”, completa. 

Ainda assim, o próprio Tejo não imaginava que faria tanto sucesso com aquela biografia repleta de ficções. “Ele escreveu um livro divertido, exótico, engraçado. Mas ele não tinha nem ideia de que alcançaria todo aquele sucesso. Levaram muito a sério o que Tejo escreveu”, prossegue. 


"Zé Limeira - O Poeta do Absurdo" foi publicado em 1973, três anos antes da canção de Belchior — Foto: Zé Limeira - O Poeta do Absurdo/Reprodução 

Astier se baseia em duas descobertas de sua pesquisa para garantir que Zé Limeira de fato existiu. A primeira é que ele encontrou uma reportagem jornalística que fala do repentista que é anterior ao livro de Orlando Tejo. A segunda é que ele diz ter encontrado o atestado de óbito do cantador. 

Ademais, Zé Limeira, ao que parece, foi um personagem muito complexo de seu tempo. Astier Basílio explica que ele fazia sucesso em meio ao público em geral, que ria muito e se divertia com seus versos desprovidos de sentido. Ao mesmo tempo, não era uma pessoa tão aceita pelos seus pares. 

Isso porque, no mundo da cantoria, existem três pilares que precisam ser dominados pelo cantador: a rima, a métrica, a oração. Zé Limeira dominava os dois primeiros. Não dava a mínima para o terceiro. Isso fazia dele um verdadeiro fenômeno do grande público, um alvo de crítica pelos demais cantadores. “Existe um Zé Limeira para os cantadores, e existe um totalmente diferente para o público em geral”. 

Entre os seus pares, contudo, a crítica era feroz: 

“No código dos cantadores, chamar alguém de Zé Limeira é um insulto. Ele é a falha do sistema. Quando alguém comete um erro, e solta um verso sem sentido, dizem que o cantador deu uma 'limeirada'. É um erro grave”, enfatiza Astier. 

E isso acontece porque os cantadores, em regra, vêm da zona rural, do mundo da oralidade, são associados pela classe média à pobreza, à mendigagem, à boemia e à vadiagem. Então o cantador, desde o início do século 20, tentava a todo o momento se distanciar dessa imagem. Artistas que ainda hoje fazem questão de se dizer profissionais, estudiosos, que levam a sério a ideia de defender um tema por meio da rima e da métrica. Mas, para Zé Limeira, não havia tema. Ele era a antítese. Fazia muito sucesso, ganhava dinheiro com os seus versos, mas representava o arcaico e o folclórico. 

O nascimento do verso 

Antes do verso em si, é importante voltar aos bastidores da produção do livro de Orlando Tejo sobre Zé Limeira. Astier Basílio, que foi amigo próximo de Tejo, defende a tese de que esse foi escrito num contexto de crítica do autor aos poetas modernistas, que cada vez menos se preocupavam com a métrica. 

Sob esse ponto de vista, o livro seria, em sentido mais amplo, uma crítica aos movimentos literários que surgiram no país a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922. Orlando Tejo era um sonetista que defendia a poesia rimada e metrificada e que criticava a poesia moderna. E, irritado com o fato da poesia vanguardista, não rimada, estar sendo levada a sério, resolveu, como uma espécie de paródia, também levar a sério um personagem que não tinha nem pé nem cabeça. 

“Ele pegou um poeta popular, um palhaço da cultura popular, e levou ele a sério. Deu dignidade a um poeta que não tinha nem pé nem cabeça. Mas, no fim das contas, o palhaço era mais atraente do que a corte. Porque o livro foi um sucesso incrível”, frisa Astier. 

Mas é aí que surge a grande questão sobre o verso de Zé Limeira. Na cantoria popular, existe a prática de se zombar outros poetas. Faz-se um verso “estropiado” e o atribui a outro. E, como o livro foi feito como uma grande gozação sobre tudo e todos, Tejo contou com a colaboração de outros poetas. Entre eles, Otacílio Batista, uma das grandes referências da cantoria nordestina e brasileira. 


Otacílio Batista, um dos mais respeitados cantadores do país — Foto: Fernando Patriota/Arquivo Pessoal 

Otacílio deixou dezenas de livros publicados. Era uma referência. Um nome respeitado no meio. Um cantador que dominava com precisão os três pilares da cantoria popular. Entre os trabalhos mais famosos, está “Mulher Nova, Bonita e Carinhosa”, música que no início da década de 1980 seria imortalizada na voz de Zé Ramalho e que seria gravada também por uma série de outros artistas. Pois há evidências de que foi Otacílio o verdadeiro autor dos “versos estropiados” creditados a Zé Limeira. 

Primeiro que é sabido que Otacílio participou mesmo da produção do livro de Tejo. Depois, os tais versos só aparecem quase 20 anos após a morte de Limeira, sem nenhum registro sonoro que possa indicar que ele fora declamado no passado. Por fim, depois que o verso virou um sucesso estrondoso na voz de Belchior, o próprio Otacílio reivindicou para si a autoria. Fez isso em 1981, na segunda edição da Antologia Ilustrada dos Cantadores, escrita por ele e pelo professor Francisco Linhares, da Universidade Federal do Ceará. 


No último parágrafo da página 76 e no primeiro da 77 de Antologia Ilustrada dos Cantadores, há a reivindicação de autoria do verso para Otacílio Batista — Foto: Antologia Ilustrada dos Cantadores/Reprodução 

De toda forma, essas possíveis evidências já não fazem muito sentido do ponto de vista prático: 

“A hipótese mais provável é que seja mesmo um verso de Otacílio Batista. Mas o mito é poderoso. Você não tem como vencer o mito. O mito se impõe de forma tão forte que se torna invencível”, explica Astier, admitindo que para sempre será um verso de Zé Limeira. 

Ele completa: “Tem outra questão que precisa ser dita. Otacílio não fez esse verso como Otacílio. Ele assinou como se fosse um cover, à maneira de Zé Limeira, usando o absurdo”. 

Filho de Otacílio, que morreu em agosto de 2003 aos 79 anos de idade, o jornalista Fernando Patriota é até mais comedido do que Astier Basílio. Ele diz que não pode afirmar que o verso foi escrito pelo seu pai, mas admite que isso é “possível”. De acordo com Fernando, o escritor Ariano Suassuna era uma das grandes personalidades da arte nacional que afirmava reiteradamente que “muita coisa de Zé Limeira era na verdade de Otacílio Batista”. 


Filho de Otacílio Batista, Fernando Patriota cuida do acervo deixado pelo pai, que morreu em 2003 — Foto: Fernando Patriota/Arquivo Pessoal 

De acordo com Fernando Patriota, o que acontece é que Zé Limeira deixou um estilo, mas não deixou nada escrito. Então sempre que alguém apelava para o absurdo referenciava o outro. “Muitos poetas faziam versos absurdos e engraçados e assinavam como sendo de Zé Limeira. Então fica difícil saber o que é e o que não é dele”, pontua. “É como Lampião. O povo matava alguém e dizia que tinha sido Lampião”, compara. 

Como exemplificação do que diz, Fernando Patriota destaca que já encontrou versos atribuídos a Zé Limeira que retratam fatos históricos que aconteceram depois da morte do poeta, numa prova cabal de que nem tudo o que é creditado foi mesmo escrito por ele. 

No mais, Patriota, que é hoje o principal responsável pelo acervo de Otacílio, concorda com o que diz Astier sobre Zé Limeira. Afirma que ele era autor de “decassílabos perfeitos”, com pouquíssimos erros, mas cheios de absurdos. 

“Ele não respeitava os temas. Jogava tudo num mesmo verso e rimava. Mas meu pai achava engraçado essas loucuras que Zé Limeira levava à cantoria. E de vez em quando adicionava algo novo ao repertório de Limeira”, destaca Fernando Patriota.
 

Por fim, ele é outro a registrar enfaticamente que Zé Limeira existiu. E, mesmo não havendo fotos de Zé Limeira, pondera que já viu registros de "fotografias desenhadas" do poeta. "Ele existiu. É um fato. Era um homem alto, negro, descendente de escravos. Analfabeto, mas que sabia fazer rimas perfeitas sobre o absurdo", conclui Fernando Patriota. 


Otácilio Batista gostava de Zé Limeira e chegou a escrever um cordel repleto de absurdos em sua homenagem — Foto: Peleja de Zé Limeira com João Mandioca/Reprodução 

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