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TÚNEL DO TEMPO: Terça-feira de cinzas

Brasil se prepara para adiar o carnaval pela primeira vez na história 



É possível parar o carnaval? 

O Brasil tem chances reais de, em 2021, viver algo inédito. Desde que os festejos carnavalescos começaram por aqui — o que, segundo pesquisadores, ocorreu à época da chegada dos portugueses, no século 16 —, eles nunca deixaram de ser celebrados no período que antecede a Quaresma, em fevereiro ou no começo de março. Porém, devido à pandemia de covid-19, o adiamento ou cancelamento da festa é debatido pelos governos das maiores cidades do país. Enquanto São Paulo adiou para data indefinida e Brasília optou por não realizar a folia, Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Olinda ainda discutem como agir.

Não se trata de uma decisão simples. E não devido ao prejuízo econômico e cultural que ela pode representar, afinal, a saúde pública deve ser priorizada. Mas, sim, porque a estratégia pode não dar certo. É o que alerta a história. Afinal, as duas tentativas oficiais de adiar a festa de Momo no Brasil fracassaram. A primeira ocorreu também por questões sanitárias, em 1892, quando o país lidava com uma série de doenças, como a febre-amarela. A segunda se deu em 1912, devido à morte do Barão do Rio Branco, então ministro do Exterior e tido como herói nacional.

No fim do século 19, buscando evitar a aglomeração de pessoas no calor de fevereiro, os governantes decidiram transferir os festejos para junho, no inverno. “Adiaram, por decreto, para o último fim de semana de junho, que inclusive coincide com as festas de São João. O que aconteceu? Chegou o carnaval, foi todo mundo para a rua, mesmo que houvesse o decreto. A Prefeitura (do Rio de Janeiro, capital federal à época) até tentou fazer controles policiais, fechando as lojas que vendiam produtos temáticos, proibindo salões onde ocorriam os bailes de abrirem, mas nada disso adiantou”, detalha Leonardo Bruno, pesquisador-orientador do Observatório de Carnaval do Museu Nacional. 


Recortes do jornal “O Paiz”, publicado no RJ de 1884 a 1930: edição de 2 de fevereiro de 1892 (esq.) anuncia o adiamento. A de 1º de março do mesmo ano (dir.) descreve como foram as festas (Fotos: O Paiz/Biblioteca Nacional) 

Na outra tentativa, o motivo era o luto pela morte do Barão do Rio Branco, que aconteceu a uma semana da festa. “O povo sofreu muito e decretou-se o adiamento para dois meses depois, em abril. Em princípio, parecia algo sensato, mas, quando chegou o sábado de carnaval, o povo foi para a rua afogar as mágoas e acabou o luto. Efetivamente, aconteceram dois eventos. Os registros históricos trazem até uma marchinha que o povo cantava na rua dizendo que, se o barão morreu e a gente teve duas festas, imagina quando morrer o general”, conta Bruno. 



Carnaval no Rio de Janeiro em 1906: Avenida Central, onde a folia era realizada à época, passou a se chamar Avenida Rio Branco após a morte do barão (Foto: Augusto Malta/Acervo IMS) 

“Nos dois casos, não adiantou nada. A folia aconteceu na data normal e na data transferida. Foram duas transferências tentadas que não tiveram sucesso. Ou foram um grande sucesso e as pessoas tiveram dois carnavais”, brinca Felipe Ferreira, professor do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e criador do Centro de Referência do Carnaval. 

As guerras, a gripe espanhola e o maior carnaval de todos os tempos 

Apesar do nome, a doença não surgiu na Espanha, mas os jornais do país europeu noticiaram a sua existência primeiro — visto que, pelo fato de o país estar neutro na guerra, não sofria com a censura. Não se sabe exatamente a origem, mas o primeiro registro oficial se deu nos Estados Unidos, em março de 1918. 

As duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945) também não impediram a realização do carnaval no Brasil, a despeito de tentativas das autoridades. De acordo com o professor Paulo Miguez, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o país teve participação pequena no primeiro conflito, enviando poucos militares à Europa apenas no fim dele, ou seja, após a folia de 1918. À época, chegou-se a discutir a realização dos festejos, mas eles ocorreram normalmente. Na Segunda Guerra, contudo, o Brasil teve maior participação. “Oficialmente, tudo foi feito para impedir. Recursos públicos foram interditados, mas a festa aconteceu mesmo com os pracinhas na Itália. As muitas proibições acabaram dribladas”, explica.

Além do fim da Primeira Guerra, 1918 ficou marcado pela gripe espanhola, até hoje a mais violenta pandemia da história, que deixou de 20 a 40 milhões de mortos — mais até do que a Primeira Guerra, que fez 15 milhões de vítimas. No Brasil, segundo o Atlas Histórico da Fundação Getulio Vargas (FGV), foram cerca de 35 mil óbitos. Até mesmo o presidente eleito, Rodrigues Alves, morreu vítima da doença antes de tomar posse. É fácil presumir que, diante da tragédia, o carnaval não fosse realizado. Mas aconteceu exatamente o contrário.

A festa de 1919 é tida, até hoje, como a maior de todos os tempos. “A gripe chegou, arrasou, matou milhares, mas em determinado momento ela foi embora, por volta de outubro, novembro. Isso fez com que o evento do ano seguinte, segundo todos os relatos, tenha sido o mais louco de todos os tempos, dos mais irreverentes que se tem notícia. O povo foi para a rua com a necessidade de celebrar o fim daquela coisa terrível. Além disso, depois de uma tragédia como essas, havia o pensamento de que poderia ser o último dos carnavais”, narra Miguez. 


Carros alegóricos de grandes sociedades ironizam a gripe espanhola no carnaval de 1919 no RJ: No alto à direita, uma referência ao boato do "Chá da meia noite". Como as pessoas, na grande maioria, só deixavam os hospitais mortas, correu a notícia de que elas recebiam um chá envenenado durante a madrugada (Foto: Careta/Biblioteca Nacional) 

As proporções da maior folia de todos os tempos podem ser tomadas com base nos relatos do escritor Nelson Rodrigues. Apesar de ter apenas 6 anos, ele gravou na memória as cenas daquele ano e, posteriormente, as descreveu em um artigo para o jornal Correio da Manhã — compilado no livro Memórias: A menina sem estrela: 

“Começou o carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. As pessoas usavam a mesma cara, o mesmo feitio de nariz, o mesmo chapéu, a mesma bengala (naquele tempo, ainda se lavava a honra a bengaladas). Mas algo mudara. Sim, toda a nossa íntima estrutura fora tocada, alterada e, eu diria mesmo, substituída. Éramos outros seres e que nem bem conheciam as próprias potencialidades. Cabe então a pergunta: — e por quê? Eu diria que era a morte, sim, a morte que desfigurava a cidade e a tornava irreconhecível. A espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas.” 

O que esperar e de 2021 e 2022? 


Diferentemente do que ocorreu com a gripe espanhola, que ficou menos de três meses no Brasil, é difícil prever quando a covid-19 — declarada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março — deixará de ser uma ameaça à população brasileira. Portanto, é consenso entre especialistas e autoridades consultados pelo Correio que, nesse cenário, não há condições de se realizar o carnaval em fevereiro de 2021. 

Diante dessa realidade, prefeitos das cidades que costumam receber grande fluxo de turistas para a festa têm se esforçado para encontrar uma data comum. Segunda capital que mais reuniu foliões em 2020, São Paulo foi a primeira a confirmar o adiamento, sem, no entanto, anunciar para quando. Nos bastidores, os gestores municipais trabalham com os meses de maio, junho e julho como possibilidades. Ainda não se sabe, porém, quando o martelo será batido.

Pesquisadores alertam que, dado o histórico da festa no Brasil e os vastos exemplos de desrespeito ao distanciamento social observados desde o início da pandemia, as autoridades devem levar em conta a possibilidade de manifestações espontâneas. “Pode haver uma desmobilização dos festejos formais, dos blocos tradicionais, do desfile das escolas de samba... Essa festa institucionalizada é possível que não ocorra, mas acho pouco provável que não haja gente na rua. As praias e os bares lotados, hoje, são um ótimo exemplo disso. O que faria a gente acreditar que daqui a seis meses o povo não vai para a rua?”, resume Leonardo Bruno.

Os outros especialistas endossam a opinião do pesquisador do Museu Nacional. “É muito provável que grupos de amigos, ou até mesmo pessoas sozinhas, iniciem um tipo de manifestação carnavalesca e, naturalmente, aquilo vire um bloco de proporção maior”, pontua a pesquisadora Rita Fernandes, autora do livro Meu bloco na rua. “É tudo muito inédito, são muitas variáveis. A única coisa que se tem certeza é que não dá para ser irresponsável e nós, que fazemos isso de forma organizada, motivarmos um carnaval em um momento em que ele não pode acontecer”, ressalta Fernandes, que também é fundadora e presidente da Sebastiana — Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul, Santa Teresa e Centro da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro — liga que reúne alguns dos mais tradicionais blocos do Rio. 


Aglomeração de pessoas em praia do Rio de Janeiro durante o feriadão de 7 de setembro: especialista acreditam que cenas vão se repetir em fevereiro (Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil) 

Sobre a possibilidade de um adiamento, porém, os pesquisadores têm opiniões divergentes. Para Paulo Miguez, a mudança de data pelo menos amenizaria os impactos econômicos: “A transferência atende a dois interesses: à vontade de fazer festa, mas, especialmente, à economia da festa. O carnaval afeta desde o nanonegócio, do cara que vai para a rua catar latas de cerveja, até aqueles que trabalham nos camarotes, nos trios, os músicos. Com o adiamento, toda essa indústria cultural vai poder se organizar, com perdas, mas vai fazer o que não foi feito em fevereiro”.

Rita Fernandes, por outro lado, lembra que a Terça-feira Gorda é apenas o ápice de uma celebração que começa muito antes, com as festas de pré-carnaval, em janeiro, e defende que o evento fique para 2022. “Se a gente não puder fazer na data, o que fizermos depois será apenas uma celebração, não, o carnaval. É muito difícil recriar esse espírito carnavalesco. Não dá, por exemplo, para pensar em tirar o réveillon do fim do ano”, avalia. “A gente tem que respeitar o ciclo das festas tradicionais. Não concordo com o adiamento. Entendo a necessidade pelo lado de quem move uma economia forte em relação a isso, como é o caso das escolas de samba. Talvez seja importante por mover uma cadeia produtiva enorme que precisa ser ativada. Mas, uma folia fora da data seria apenas uma expressão”, acrescenta.

Independentemente de ser realizado no meio de 2021 ou apenas em 2022, o próximo carnaval deve repetir o que houve em 1919, após a gripe espanhola, acredita Miguez. “Será o maior de todos os tempos, celebrando a vitória da vida e da ciência”, projeta o docente da UFBA. “Baco e Momo (figuras das mitologias romana e grega, respectivamente, ligadas a festas e celebrações) vão ficar nos devendo este ano, mas vão preparar algo grande para o próximo”, completa. 

Prejuízos vão além do financeiro 

Quando se fala nos prejuízos que um adiamento ou cancelamento do carnaval podem causar, é fácil pensar no aspecto financeiro. E ele, de fato, tem um peso enorme. Somente neste ano, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Olinda (PE) reuniram 43,5 milhões de foliões, segundo dados das secretarias estaduais, compilados pelo Ministério do Turismo. A movimentação na economia foi de cerca de R$ 8 bilhões, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC).

A incerteza acerca da realização da festa em 2021 já começa a mostrar impactos. As reservas em hotéis estão praticamente zeradas nessas cidades, a venda de abadás em Salvador está bem aquém do que se costuma registrar a esta altura do ano, assim como a procura por passagens aéreas para os destinos mencionados. “Houve uma mudança de comportamento dos viajantes. As compras de passagens para os destinos nacionais tradicionalmente mais procurados para o carnaval apresentaram queda significativa no último trimestre”, explica, em nota, a empresa de revenda de bilhetes aéreos MaxMilhas.

É preciso, porém, levar em consideração, também, o impacto cultural. O Brasil ser afamado como a terra do carnaval não é em vão. Além de ter alcançado marcos globais — em 1995, o Galo da Madrugada, em Recife, foi considerado o maior bloco carnavalesco do mundo pelo Guinness Book, mesma publicação que reconheceu a folia em Salvador como o maior carnaval de rua do planeta em 2005 —, o país tem os festejos intimamente ligados à construção de sua história. 

Há relatos de celebrações carnavalescas no Brasil desde a época da colonização. A origem do carnaval como conhecemos, contudo, remonta ao século 17, com a chegada do entrudo ao país. “O entrudo é uma festa trazida da Europa, em que as pessoas jogavam água, limão e água de cheiro umas nas outras. Uma brincadeira quase infantil, mas que, conforme foi adquirindo as características da cidade e se espalhando não só entre os nobres, foi ganhando outras facetas. Chega um momento em que as brincadeiras ficam violentíssimas, as pessoas passam a jogar urina, farinha e ovo podre, e a nobreza não quis mais participar”, relata Leonardo Bruno.

Com essa divisão de classes, tão marcante no país ao longo da história, é que a folia do Momo se desdobrou nas mais diversas manifestações observadas hoje. “De 1800 para 1900, com a República instalada, o Brasil queria se enxergar como a Paris dos trópicos. Então capital federal, o Rio fez uma série de mudanças urbanísticas para se configurar como uma cidade à moda europeia. E a festa sofre influências daí. A nobreza começa a importar determinados eventos da Europa, como os bailes de máscaras e os desfiles da alta sociedade em carros. Mas o povo também estava criando suas formas de festejos, como os blocos, que eram procissões religiosas, com cânticos típicos. E nos anos 20, efetivamente, surgem as primeiras escolas de samba”, acrescenta o pesquisador. 

Tudo posto, é impossível mensurar o impacto de um ano sem carnaval para a identidade brasileira. Com a palavra, os especialistas: 

Como cada setor envolvido — de ambulantes a artistas, de comunidades a gestores públicos, de bares e hotéis a companhias aéreas — vem se preparando para lidar com os prejuízos do adiamento ou do cancelamento do carnaval em Salvador (BA), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Recife e Olinda (PE) e Brasília (DF) é o que você confere nas próximas reportagens deste especial. 

Salvador: carnaval fora de época (mesmo)
Festa na capital baiana, que atraiu 16,5 milhões de foliões em 2020, deve ser remarcada para o meio do ano

(Foto: Manu Dias/GOVBA)

“Sereia chegou morta ao hospital. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia parou.” No livro O canto da Sereia, o jornalista Nelson Motta precisou recorrer à ficção para encontrar um acontecimento capaz de interromper a folia de Momo em Salvador. E é mesmo difícil imaginar uma força que pare a enorme engrenagem cultural e econômica em que a festa — considerada a maior do mundo pelo Guinness Book em 2005 — se transformou. Em 2020, segundo dados da Secretaria de Turismo do estado e da Prefeitura, o evento movimentou R$ 1,25 bilhão, com geração de 215 mil empregos temporários, tendo atraído um número recorde de 16,5 milhões de foliões e envolvido 12,5 mil artistas, que promoveram 2,6 mil horas de música. Tudo isso em apenas 10 dias.


Mas a realidade, não raro, supera a arte. No fim de 2019, começaram a surgir em Wuhan, na China, os primeiros relatos de uma doença tão ou mais letal que a bala que matou Sereia em cima do trio elétrico. Não demorou para o novo coronavírus percorrer os 16,6 mil quilômetros que separam as duas cidades e chegar a Salvador, deixando mais de 2 mil mortos na capital baiana. E o impossível aconteceu: o carnaval da Bahia, pela primeira vez na história, não deve ser realizado em fevereiro ou março.

O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), avalia como “muito improvável” a ocorrência da folia na data convencional, e afirma considerar o adiamento para junho ou julho. “Conversei com muitos especialistas e todos têm a mesma opinião: ainda que a vacina seja liberada este ano, ela não terá alcance de massa para 2020. Sendo assim, temos de trabalhar com a realidade e mudar o calendário, alterar datas, mudar o formato, mas tudo isso vai ser anunciado na hora e na forma certas. Não temos um protocolo possível para autorizar eventos nos moldes que estamos acostumados”, explica o gestor, que busca um consenso com outros prefeitos para a realização simultânea da festa: “O ideal, claro, é que haja uma decisão conjunta”. 

Chegar a esse consenso não é tarefa fácil, mesmo dentro do estado. O carnaval movimenta uma cadeia produtiva que vai desde os trabalhadores informais, como ambulantes e cordeiros, até os artistas, com seus cachês na casa dos milhares, quiçá milhões. Todas as categorias parecem concordar com a impossibilidade de se realizar a festa em fevereiro. “O mais importante é a vida das pessoas”, destacam, quase em uníssono. O período aventado para o adiamento, porém, é controverso. 

Para o setor de bares e hotéis, a mudança para julho representaria um choque com outra época que também é considerada alta temporada. “Salvador tem 400 hotéis e 26 mil bares e restaurantes. O réveillon e o carnaval representam o 13º mês da economia para o turismo. É com ele que a gente passa a baixa situação de março até 30 de junho”, ressalta Silvio Pessoa, presidente da Federação Baiana de Hospedagem e Alimentação (FBHA).

Ele também rechaça os meses de maio — por ser chuvoso — e junho — pelos festejos de São João — como possibilidades, e diz preferir aguardar a retomada do setor para uma decisão definitiva: “Neste momento, 95% dos hotéis estão fechados por decisão gerencial, não por decreto. A maioria está com programação até dezembro apenas. Não vale a pena discutir (a nova data) enquanto as coisas não normalizarem.”

Diretor do Sindicato dos Trabalhadores Cordeiros (Sindcorda), Percival Bispo levanta outra preocupação: a de que uma eventual imunização ainda não esteja disponível para todas as pessoas. “Quem garante que essa vacina vai ser para todos? Se for doada pelo governo, menos mal, mas, mesmo assim, ainda vai ter dificuldade. Se for pago, nem todo mundo tem o valor para pagar. Muitas categorias não vão estar vacinadas. Os cordeiros são as pessoas mais fracas que vivem daquilo”, pondera o representante dos trabalhadores cujo piso salarial é de R$ 53 por dia.

Por outro lado, José Augustto Vasconcelos, sócio do San Sebastian — grupo que detém parte dos blocos de Claudia Leitte, Alinne Rosa e Ivete Sangalo, e é responsável pelas vendas dos de Daniela Mercury — vê em julho a única possibilidade de realização da festa fora de fevereiro. “Junho atrapalharia as festas juninas, que no Nordeste são muito forte, seria ruim para os produtores dos dois eventos. Setembro e outubro, por exemplo, ficaria muito perto do próximo carnaval”, avalia.

Bloco Olodum desfila no Circuito Osmar, no Campo Grande: Em 2020, folia em Salvador contou com a participação de 12,5 mil artistas e movimentou R$ 1,25 bilhão (Foto: Sidney Rocharte/Bahiatursa/GOVBA)

Incerteza trava mercados

A própria indefinição acerca de uma data, ou mesmo da realização do evento, é suficiente para provocar grandes prejuízos aos setores envolvidos. As compras de passagens aéreas apresentaram “queda significativa no último trimestre”, de acordo com a empresa de revenda MaxMilhas. Quase a totalidade dos hotéis, como frisou Silvio Pessoa, está com as portas fechadas — apesar de, segundo ele, as reservas para o carnaval só começarem a ser feitas mais perto do fim do ano.

A estagnação se repete no mercado de abadás — característico da folia baiana. “Tivemos uma venda inicial logo depois da festa deste ano, mas a partir de março houve uma queda substancial. Em geral, a comercialização é bem distribuída. Temos uma largada muito forte, com cerca de 20% dos produtos sendo vendidos. Durante o ano, o ritmo diminui e volta a aquecer no segundo semestre. Na metade do ano talvez tivéssemos comercializado algo em torno de 30% a 40%”, explica Joaquim Nery, diretor da Central do Carnaval e do bloco Camaleão, puxado pelo cantor Bell Marques.

No grupo San Sebastian, José Augustto Vasconcelos lembra que, a esta altura em 2019, 80% a 90% das fantasias haviam sido compradas. O Coruja, de Ivete Sangalo, já tinha dias esgotados. Em ambas as empresas, os produtos seguem à venda. “Não estamos fazendo nenhuma campanha estimulando vendas, mas elas continuam abertas, porque, caso haja o carnaval — e essa expectativa ainda existe —, a gente estaria preparado para fazer”, acrescenta Nery.

Entre os cordeiros, o clima, na definição de Percival Bispo, é de “desespero total”. “São 60 mil profissionais que trabalham no período. Muitos sobrevivem daquele trabalho o ano todo. Não havendo, é um pouco complicado. É menos um ganha pão”, diz o diretor do Sindcorda.

Representantes de uma das mais tradicionais manifestações carnavalescas de Salvador, os blocos afro, que chegam a empregar de 500 a 1.000 pessoas direta ou indiretamente todos os anos, também temem os prejuízos, tanto financeiros quanto culturais. “Muitos colaboradores da cultura vivem do que apresentamos, vivem de entretenimento”, pontua Albry da Anunciação, diretor da Associação do Coletivo de Entidades Carnavalescas de Matriz Africana (Acema).

Ele conta ainda que as lives se tornaram uma opção para mitigar as perdas. Para o carnaval — independentemente de data —, no entanto, Anunciação espera que as entidades possam desfilar completas, no modo tradicional. “Tudo tem que estar muito bem calçado com a não propagação do vírus, com a segurança da saúde das pessoas, mas a ideia é que a gente saia com nossos associados, como um bloco mesmo.” O principal, salienta, é o sorriso no rosto: “É a nossa maior propaganda”.


Foliões curtem o Coruja, de Ivete Sangalo, no Circuito Dodô, na Barra: a esta altura, em 2019, bloco já tinha dias com abadás esgotados (Foto: Reprodução/Facebook) 

Vozes da folia

A história da festa na Bahia tem, ao menos, três datas fundamentais: 1884, tido como o primeiro ano de desfiles nas ruas; 1950, com a criação do trio elétrico por Dodô e Osmar; e 1985, brindado com o lançamento do disco Magia, de Luiz Caldas, que apresentou ao Brasil o hit Fricote, considerado o marco inicial do movimento que, mais tarde, viria a receber o nome de axé music. Filho de Osmar, Armandinho Macêdo subiu na invenção do pai pela primeira vez aos 10 anos e nunca mais desceu. Hoje, aos 67, ele diz ser muito difícil pensar que o evento pode não ocorrer na data esperada, mas defende que a segurança dos foliões deve estar em primeiro lugar: “Quero sim que tenha, mas quero um carnaval seguro e que dê garantia, que essa pandemia esteja sob controle. Aí sim vai ser uma festa feliz. Provavelmente não vai ser em fevereiro, pode ser no meio do ano ou até no ano que vem”.

Pai do axé, Caldas segue na mesma linha. “Fazer sem uma vacina seria uma loucura em qualquer circunstância, porque se trata de uma festa grandiosa e de uma aglomeração, que talvez seja uma das maiores do país”, avalia. “Em primeiro lugar, vem a vida do ser humano, em segundo lugar vem a festa, o trabalho, seja o que for. Sem vida ninguém faz nada”, completa.

A surpresa ante o ineditismo da situação atinge todos os artistas ouvidos pelo Correio. Desde os veteranos até os que participam dos festejos há menos tempo. “É muito estranho e triste, todos nós estamos sofrendo muito e com muitas incertezas, mas temos que ter fé, pensar no próximo e pedir a Deus que nos proteja”, desabafa Bell Marques, que celebrou, em 2019, 40 anos de carreira. “Nunca me vi fora do carnaval, até porque é uma vitrine gigantesca para divulgar nossas músicas”, emenda Léo Santana, dono de alguns dos maiores sucessos recentes da folia soteropolitana. A necessidade de se esperar o momento de realizar o evento com segurança, contudo, é uma unanimidade. “Entendemos que qualquer medida que venha a ser tomada é pelo bem da população, que precisa ser preservada. Não podemos colocar ninguém em risco”, enfatiza Pipo Marques, da dupla com Rafa.

Rio de Janeiro: a cidade do carnaval, sem carnaval

Escolas de samba e os blocos de rua decidiram não desfilar em fevereiro de 2021. Com a data do evento em aberto, especialistas temem os impactos econômicos e alertam para o desaparecimento de agremiações


Foto: Fernando Grilli

Diante das incertezas geradas pela pandemia do novo coronavírus e da proximidade do fim do ano, ainda há uma grande incógnita sobre o carnaval 2021 no Rio de Janeiro. Não fosse a pandemia, a essa época as agremiações já estariam trabalhando a todo vapor para preparar um dos maiores espetáculos da Terra. No entanto, em meio a esse cenário nebuloso, ninguém arrisca dizer o que será da folia. A última decisão da Liga independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) foi categórica: por causa da covid-19, enquanto não houver vacina, também não haverá desfile. O que resta, por enquanto, são os barracões vazios e a bateria silenciada.

Terceiro maior carnaval do Brasil em número de foliões, o do Rio de Janeiro certamente é o mais conhecido mundialmente. Os números da folia dão a dimensão do que significa a festa para a cidade. Em 2020, foram 2,1 milhões de turistas, mais de 10 milhões de pessoas circulando nas ruas, o maior número de navios internacionais dos últimos 20 anos atracando no Píer Mauá, ocupação hoteleira em quase 100%, R$ 4 bilhões em movimentação econômica e um número recorde de dias de folia, segundo a RioTur, empresa pública de turismo da capital fluminense. 

Mas agora, com os trabalhos nas escolas atrasados, a alegria deu lugar à preocupação. Em outros anos, em outubro as agremiações estariam com seus sambas-enredo escolhidos e já promoviam ensaios, no auge da preparação para a festa na Sapucaí. No entanto, a Liesa acredita ser impossível colocar as escolas na avenida em fevereiro sem a vacina contra a covid-19. Na reunião de 24 de setembro em que se bateu o martelo sobre o adiamento dos desfiles, todos os representantes enfatizaram que a organização do evento demanda bastante tempo para que as agremiações se organizem em condições de montar um grande espetáculo na Avenida.

Segundo Jorge Castanheira, presidente da liga, qualquer avaliação de nova data depende do anúncio de uma campanha de vacinação. “Em função de toda essa insegurança, essa instabilidade em relação à área da ciência, de não saber se lá em fevereiro vamos ter ou não a vacina, chegamos à conclusão que esse processo tem que ser adiado. Não temos como fazer em fevereiro. As escolas já não vão ter tempo nem condições financeiras e de organização de viabilizar”, diz.

Há um ensaio para que o carnaval aconteça entre maio e junho, alinhado ao de outras cidades do país, e sem atrapalhar o calendário junino. Mas tudo é apenas especulação. Ainda não há data para o desfile — as escolas só definiram que ele não acontecerá em fevereiro. “Vamos continuar lutando, buscando alternativas para encontrarmos um projeto nosso, que permita que as escolas de samba possam fazer algum processo alternativo aos desfiles que acontecem em fevereiro para também não prejudicar o carnaval de 2022. A prioridade nossa é respeitar a questão da segurança”, comenta Castanheira.

Mesmo diante das incertezas e sem qualquer previsão de data para os desfiles, 11 das 12 escolas de samba do Grupo Especial do Rio já escolheram seus enredos para o próximo carnaval. Apenas a Mangueira não definiu o dela. Atual campeã, a Viradouro pensa em ir à avenida com o samba “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”, contando a história da gripe espanhola, que atingiu o mundo em 1919.

No entanto, com o barracão fechado, os funcionários da agremiação continuam trabalhando em sistema de home office. Além da pandemia, a escola se recupera de um incêndio que atingiu o galpão em abril deste ano. “O carnaval de 2021 está cada vez mais distante. Estamos nos programando para o carnaval de 2022. Se houver algo no ano que vem vai ser mais comemorativo. Esse tem sido nosso pensamento”, afirma o carnavalesco da escola, Marcus Ferreira.

“A nossa maior preocupação são os trabalhadores do barracão. Muita gente depende do carnaval, mas, por enquanto não podemos fazer nada. O que podemos fazer é adiantar o planejamento, que está sendo feito em home office” (Marcus Ferreira)

A previsão, de acordo com a Prefeitura do Rio, é de que os barracões e quadras sejam abertos a partir de 1º de novembro. A partir daí, as escolas vão ter que correr para recuperar o tempo que perderam até o momento. “A gente sabe que vai ser triste passar por fevereiro sem a alegria do carnaval, mas essa pandemia pegou todo o mundo de surpresa, todos estamos passando por um momento difícil. O que nos conforma é a precisão da vacina”, resume o carnavalesco.


Prejuízo cultural

Para além dos prejuízos financeiros das escolas de samba, os danos culturais também preocupam. É o que explica o pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) Valmir Moratelli. “Eu concordo que a gente não tem que ter carnaval no período em que estamos, em pandemia e sem vacina para que as pessoas possam se sentir seguras. Porém, temos que pensar também no que o Rio e o Brasil perdem com a não realização de uma festa como essa. Não é apenas dividendos, movimentação econômica e geração de empregos. Vai além disso. Existe uma questão de representação que está ameaçada”, pondera.


Para o estudioso, algumas agremiações correm riscos reais de desaparecer caso nada seja feito para socorrer o setor: “Não existe uma lei que repasse verbas para as comunidades que estão enfrentando apertos tão grandes. Escolas pequenas, que sobrevivem disso, podem simplesmente desaparecer”. 

E a crise atinge também escolas grandes e tradicionais. A Portela, por exemplo, perdeu 20% da receita sem os eventos na quadra, como as tradicionais feijoadas. A agremiação se valeu dos programas de redução de jornada do governo federal para manter os funcionários administrativos e os profissionais fixos dos desfiles, como mestre-sala, porta-bandeira e mestre da bateria. Também sem receita, em julho, a Mangueira e a Viradouro comunicaram a demissão de funcionários por conta da indefinição em relação ao carnaval de 2021.

Para Moratelli, existe ainda um projeto de governo para sufocar a folia. Candidato à reeleição, Marcelo Crivella (Republicanos) terminará o primeiro mandato como o único prefeito do Rio de Janeiro a permanecer distante da Marquês de Sapucaí. Bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, o gestor costuma dizer que “o carnaval é um bebê parrudo que precisa ser desmamado e andar com as próprias pernas”, prefere fugir de dar explicações quando indagado quanto ao porquê da ausência da festa, e sempre negou resistência religiosa. 


Valmir Moratelli, pesquisador e roteirista, acredita que existe um projeto para acabar com o carnaval

“Escolas que já passam tradicionalmente por problemas de recursos são escolas que estão tendendo a desaparecer. E digo mais: elas estão desaparecendo por vontade política” (Valmir Moratelli)
A presença de prefeitos nos desfiles é protocolar na rotina da cidade, e a ausência de Crivella, independentemente da questão religiosa, é vista como uma espécie de descaso com a agenda local. “Existe uma vontade política nos últimos anos para se dizimar o carnaval. E é um projeto realizado no sentido mais cruel possível, que é sufocar a festa, para que uma manifestação popular e negra deixe de existir naturalmente”, avalia o estudioso, que roteirizou e dirigiu o documentário 30 Dias – Um carnaval entre a alegria e a desilusão, que discute a dificuldade das escolas do Grupo de Acesso para fazer o carnaval acontecer.

Em 2019, a prefeitura pagou R$ 500 mil por agremiação do Grupo Especial para a preparação dos desfiles. No ano anterior, com o auxílio de uma empresa de aplicativo de transporte, cada escola recebeu R$ 1,5 milhão. Até 2016, a subvenção chegava a R$ 2 milhões por escola. No entanto, em 2020, o aporte foi zerado. “Pela primeira vez na história, a Prefeitura do Rio não passou nenhuma verba. As escolas precisaram trabalhar com reciclagem e reaproveitamento. O resultado foi que o carnaval de 2020 teve um declínio absurdo de qualidade estética”, comenta o especialista.

Carnaval de rua

A multidão de foliões fantasiados é outra imagem característica do Rio de Janeiro. Mas, assim como shows e baladas, o carnaval de rua é movido a aglomeração. Ainda que sejam ao ar livre, os eventos se caracterizam pela proximidade física. Por isso, os blocos decidiram seguir a decisão da Liesa e também colocaram a festa em modo de espera. Para Rita Fernandes, presidente da Associação Independente dos Blocos de Carnaval de Rua da Zona Sul (Sebastiana), a decisão da liga foi “super acertada” e sem vacina e, principalmente, sem segurança para a saúde da população, os blocos não irão desfilar. 

“Diante do momento que a gente tá vivendo, fazer carnaval, seja de escola de samba, seja de bloco, enfim, qualquer um que a gente tenha aglomeração de pessoas, sem o anúncio de uma vacina, sem um plano para poder vacinar a população e essa população poder ficar em condições de segurança, eu acho que não dá de jeito nenhum”, argumenta. A Sebastiana reúne 11 dos mais tradicionais blocos do Rio: Ansiedade; Barbas; Carmelitas; Escravos da Mauá; Gigantes da Lira; Imprensa que eu gamo; Meu bem, volto já; Que merda é essa?; Simpatia é quase amor; Suvaco do Cristo e Virtual.


Neste ano, os 453 blocos da capital fluminense levaram 7,082 milhões de foliões às ruas. Os 77 palcos com apresentações musicais pela cidade, além de outros locais com bailes populares, reuniram mais 3 milhões, totalizando 10,63 milhões de pessoas.

Representantes de outros blocos defendem que o carnaval seja realizado em outro mês do ano, entre maio e junho. “É preciso uma articulação mais organizada para definir uma data melhor. Também não é justo o carnaval prejudicar o São João, que esse ano já não tivemos. O ideal seria buscar um calendário unificado para todo o país, e ainda no primeiro semestre do ano”, acredita Pedro Ernesto Marinho, organizador do bloco de carnaval mais antigo do Rio de Janeiro, o Cordão da Bola Preta. Inclusive, a primeira vez que esse bloco saiu às ruas foi no histórico carnaval de 1919, quando o Rio comemorava a recuperação da gripe da espanhola. A agremiação havia sido fundada um ano antes, em 1918.


Pedro Ernesto Marinho, organizador do Bloco Cordão da Bola Preta, o mais antigo do Rio de Janeiro (Foto: José Iuricci/Divulgação)

O Bola Preta não é um bloco conhecido pela presença de personalidades, embora uma ou outra apareça por lá. Nem tampouco venda de camarotes e abadás, apesar de ambulantes e barraqueiros improvisarem áreas VIPs no trajeto, a contragosto de muitos. É um desfile que materializa a folia de rua. A agremiação mantém estreita a relação com a cidade, e se tornou patrimônio do lugar, mesmo sendo um elemento vivo, e não monumental.

“Nesses 102 anos de história, nunca deixamos de desfilar. Então, vamos quebrar uma série histórica. Mas, em contrapartida, pensamos que a vida é mais importante. Com vida, outros carnavais virão”, arremata Marinho.

Impactos econômicos

Ainda que com todas as dificuldades, o carnaval de 2020 foi o mais rentável dos últimos cinco anos, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Para atender a demanda gerada pela festa, foram criadas mais de 25,4 mil vagas de empregos temporários entre janeiro e fevereiro, sobretudo nos setores ligados à alimentação, hospedagem e transportes. O número de contratações neste ano representou 2,8% a mais do que no carnaval de 2019.

É difícil mensurar quanto do valor total, estimado em R$ 4 bilhões, se transformou em impostos para os cofres públicos, mas presume-se que serviços como transporte por aplicativo, hospedagem, alimentação — geradores diretos de tributos para o município por meio do ISS (Imposto Sobre Serviços) — ultrapassam os R$ 70 milhões dispendidos pela Prefeitura do Rio.

É por isso que, economicamente, o cancelamento do carnaval pode ser desastroso. De acordo com a Liesa, só os barracões das escolas do Grupo Especial empregam cerca de 4 mil pessoas durante a preparação do evento. Mas os estragos vão além da Sapucaí. O carnaval gera mais empregos que o Natal. Considerando que o desemprego é um temor para qualquer sistema econômico, a folia momesca ganha ainda mais importância no cenário carioca.

Desde o início da pandemia não há turistas estrangeiros com a mesma intensidade dos anos anteriores, e bares e restaurantes lutam para sobreviver ou fecharam as portas. O desemprego, que já era alto antes, explodiu nos setores culturais. O segmento só não parou por causa dos fenômenos das lives da internet, nem sempre remuneradas, mas que ajudam os artistas a ficarem em evidência.

No setor hoteleiro, o cenário é catastrófico. “Só para você ter ideia de como foi desastroso o coronavírus aqui no Rio de Janeiro, a gente, na primeira quinzena de março, tinha 70% de ocupação e acabamos o mês com 5%. Na sequência, 90 empreendimentos suspenderam a operação, entre eles, o maior hotel do Rio, o Copacabana Palace. Isso significa que fechamos cerca de 20 mil postos de trabalho”, lamenta Alfredo Lopes, presidente do Sindicato dos Meios de Hospedagem do Rio de Janeiro (SindHoteisRio). “É um ano perdido em vários aspectos e também um ano de muita dor para diversas famílias”, acrescenta.

“O coronavírus foi desastroso para o Rio de Janeiro, que é uma cidade que depende do turismo. Essas perdas não podemos mais recuperar, e, no caso de não acontecer carnaval em 2021, o prejuízo pode dobrar” (Alfredo Lopes)

Como a rede hoteleira não trabalha com estoque, as perdas já são efetivas. No entanto, o setor aposta no mercado local e nacional para virar o jogo. “O carnaval movimenta milhões. Já passamos do bilhão em perdas, e, sem a festa, a gente dobra esse número. Mas acho que teremos uma grata surpresa com o turismo nacional. Vamos esperar, torcer e trabalhar”, afirma Lopes.

Os impactos econômicos também castigam os pequenos realizadores do carnaval. As bordadeiras de Barra Mansa, sul do estado do Rio, sabem bem disso. O grupo começa a receber os pedidos das escolas de samba em agosto, mais de seis meses antes da folia começar. Mas neste ano, até agora, não recebeu nenhuma encomenda.


Janice Custódio, bordadeira há mais de 30 anos, tem esperanças de que o carnaval possa ser realizado em outro período do ano (Foto: Arquivo pessoal)

Agora, elas precisam fazer outros trabalhos para complementar a renda e sobreviver. É o caso de Janice Custódio, de 58 anos, que substituiu os paetês e linhas pela cozinha. Dona Janice começou ainda menina no carnaval, enfiando miçanga em uma confecção. Depois, aprendeu a bordar e, até o ano passado, trabalhava com outras 30 mulheres confeccionando peças para escolas tradicionais, como Salgueiro e Portela. “Essa é a nossa principal renda e até agora, com tudo parado, não trabalhamos ainda. Mas a gente faz outras coisas para sobreviver, faço salgadinhos e vendo”, conta.

A vida de Roberta Oliveira também girou sempre em torno da festa. Dona do próprio ateliê de costura, ela confecciona fantasias para as escolas de samba que, ano após ano, deslumbram o mundo. Em tempos normais, seria possível ver ali uma intensa agitação. Mas agora há apenas silêncio. O local está fechado desde março e, desde então, ela não consegue pagar sequer o aluguel do espaço: “A pessoas pensam que carnaval é só folia, é só brincadeira, mas não é. O carnaval é uma fonte de renda. A minha vida toda foi em volta ao carnaval”.

Apesar do panorama desolador, ela acredita que cancelar o evento foi a melhor opção diante da pandemia que já matou quase 160 mil brasileiros. “Eu acho que foi a melhor decisão, porque é muita gente trabalhando, é muito perigoso. Então era a única forma (de evitar a propagação da doença) Se Deus quiser, vamos sair dessa e vamos tocando a vida devagarzinho”, diz, com esperança e expectativa.

São Paulo: adiamento e articulação por data única

Prefeitura da capital paulista foi a primeira a confirmar a mudança de data da folia em 2021. Objetivo é escolher um período em comum com outras cidades carnavalescas

Foto: Edson Lopes Jr

São Paulo foi a primeira grande cidade brasileira a tomar uma decisão sobre o carnaval de 2021. Em julho, o prefeito Bruno Covas (PSDB), após tratativas com os setores que envolvem a folia, anunciou que a capital paulista optou pelo adiamento da festa devido às incertezas da pandemia de covid-19. Uma data específica ainda não foi determinada. Há uma negociação interna entre os municípios do estado e também com outras cidades brasileiras em que o festejo momesco é tradição e tem impactos econômicos.

“Estamos definindo, tanto com os blocos quanto com as escolas e com as outras cidades, a nova data, que deve se dar a partir de maio do ano que vem. Muito dificilmente ocorrerá em junho, porque coincide com os festivais de São João no Nordeste. Estamos definindo ou final de maio, ou começo de julho para realização do carnaval na cidade de São Paulo”, afirmou Covas, à época do anúncio.

A nova data, é claro, está condicionada à imunização da população. “A ideia é que haja uma articulação com todas as capitais carnavalescas, como a que estamos fazendo com Salvador e que se estenda para Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife, para que o carnaval possa ter toda a sua potência, turística inclusive. Mas, é importante ressaltar: sempre levando em consideração o calendário imunizante”, pontua Alê Youssef, secretário executivo do gabinete do prefeito Bruno Covas e ex-secretário de Cultura, que esteve à frente dos carnavais de 2019 e 2020.

As negociações ocorrem principalmente entre São Paulo e Salvador. O prefeito soteropolitano, ACM Neto (DEM), por exemplo, disse que gostaria de uma data em junho ou julho, mas que a definição depende do debate com as outras prefeituras. “Esta é uma decisão que precisa ser debatida com outros colegas prefeitos que têm grandes carnavais, como o Rio de Janeiro, Recife, São Paulo, só para citar algumas cidades”, afirma.

Acadêmicos do Baixo Augusta reúne há pelo menos três anos cerca de um milhão de pessoas: o bloco não pretende sair às ruas enquanto não houver condições seguras (Foto: Nelson Almeida/AFP) 

Crescimento do carnaval

Atualmente, a capital paulista é a segunda cidade quando se fala em número de foliões. Segundo os dados oficiais da prefeitura de São Paulo, por meio da pesquisa do Observatório do Turismo, neste ano, 16 milhões foram às ruas, distribuídos nos mais de 600 blocos carnavalescos nos 8 dias de festa, incluindo pré e pós-carnaval, se tornando o maior carnaval da história de São Paulo.

Desse grande número de pessoas nas ruas, pelo menos um milhão se reúne em um dos mais tradicionais blocos, o Acadêmicos do Baixa Augusta, fundado em 2009 no bairro — hoje reconhecido pelas manifestações culturais e boêmias — e que teve papel fundamental na retomada do carnaval de rua de São Paulo. Para o grupo, o adiamento era a única opção. “Não dá para sair na rua sem ter uma responsabilidade em relação à covid-19. Lógico que a gente que faz carnaval gostaria de sair, mas não tem outra coisa a se falar além do controle do contágio. Seria uma irresponsabilidade muito grande”, avalia Ale Natacci, diretor executivo do bloco.

Ele conta que as entidades, que foram consultadas pela prefeitura, acolheram a decisão. “A gente só pode concordar até que se tenha alguma coisa que nos garanta a segurança”, afirma, citando a possibilidade de uma vacina que imunize a população. Natacci acredita que o ideal é que as cidades carnavalescas cheguem a uma data em comum da folia em 2021. “O carnaval é uma festa nacional. As pessoas viajam entre as cidades. No carnaval paulistano mesmo, vem muita gente de fora, assim como muita gente sai. Então, o ideal seria que todas as prefeituras e cidades estivessem alinhadas”, completa o diretor executivo do Acadêmicos do Baixa Augusta. Não existe, por enquanto, ideias de versões intimistas ou em formato on-line sendo levantadas pelos blocos na cidade.


Com enredo, samba e figurinos decididos, as escolas de São Paulo estão paralisadas: as agremiações projetam espetáculo menor em 2021 (Foto: Nelson Almeida/AFP)

As escolas de samba, que começam o trabalho do próximo ano sempre após o fim de um carnaval, vivem uma situação mais dramática. Por mais que entendam e concordem com o adiamento, percebem que a pandemia terá uma influência grande nos desfiles, que não poderão seguir o formato de sempre, além de terem um impacto no carnaval também de 2022, sendo feito de forma mais “atrasada”. As agremiações, em geral, trabalharam até agosto de forma remota para escolher enredo, o samba e definir os figurinos, mesmo com a decisão do adiamento. Porém, pararam quando perceberam que as verbas destinadas pela prefeitura e pela televisão não chegariam. 

“O problema, agora, é a execução disso, que depende de verba. E, claro, como não tem uma vacina ainda para a covid-19, tudo está indeciso. Pode até ser que tenha um espetáculo no ano que vem, mas de uma forma bem menor. As escolas trabalharam normalmente até onde deu, mas não sabemos se o que fizemos em 2020 será usado só em 2022”, lamenta Junior Dentista, como é conhecido o diretor geral da Mocidade Alegre, escola paulista que venceu 10 vezes o Grupo Especial do carnaval de São Paulo, disputado anualmente no Sambódromo do Anhembi.

Existe uma expectativa da Liga das Escolas de Samba de que uma verba anunciada pelo prefeito Bruno Covas para a área da cultura possa também ter uma parcela destinada às agremiações. Mesmo assim, os diretores das escolas se mostram aflitos, porque a falta de público no desfile teria impacto direto na arrecadação. “No Grupo Especial, a gente trabalha com a verba da prefeitura, da televisão e da bilheteria (de venda de ingressos). Não tendo público, não tendo uma verba de televisão que não vai apostar no escuro num ano de Olimpíadas, só contando com o dinheiro da prefeitura será um espetáculo bem inferior ao que a gente sempre proporcionou”, projeta Junior.

A escolha de uma nova data para o carnaval de 2021 pode resultar numa folia diferente, ao menos do ponto de vista do desfile das escolas. “Carnaval normal, com público, eu acredito que aconteça só em 2022. Para 2021, acredito apenas em um espetáculo bem menor”, decreta o diretor geral da Mocidade Alegre, que também integra a Liga de São Paulo.


Alê Youssef, secretário executivo do gabinete do prefeito Bruno Covas e ex-secretário de Cultura: “O carnaval de 2021 está condicionado à imunização da população”(Foto: Francio de Holanda/Divulgação)

Apesar da insegurança das escolas, o secretário executivo do gabinete do prefeito garante que a festa será feita da mesma forma que antes. “A dinâmica do carnaval, quando ele acontecer, vai ser mantida. A ideia é manter os mesmos formatos tanto para escolas de samba, como para blocos que se comprovaram exitosos e que renderam para a cidade de São Paulo R$ 2,7 bilhões de retorno financeiro em 2020, que gerou milhares de empregos e posicionou nossa cidade com um dos maiores centros carnavalescos do país”, elenca Youssef.

“Todos os representantes das principais instituições carnavalescas se alinharam imediatamente à cidade de São Paulo e concordaram que carnaval só com vacina” (Alê Youssef)

Perspectiva da folia

Responsável pelo site Carnaval2021.com, portal que reúne informações sobre a folia paulista para o público, Flávio Carvalho, do Webgocontent, diz que percebeu uma divisão na receptividade em relação ao adiamento. “O folião se divide entre aqueles que querem curtir a festa independentemente do que está acontecendo ao seu redor e aqueles que sabem que a segurança deve ser o foco. Como, infelizmente, em tudo o que vemos hoje no Brasil, a receptividade ficou polarizada”, revela.

Por acompanhar o cenário carnavalesco e ser um profissional ligado ao festejo, ele vislumbra um volumoso impacto econômico: “Grandes eventos como o carnaval geram receitas que vão além daquilo que é visível, como a arrecadação com bilheteria de desfile ou o pagamento para comprar uma fantasia e desfilar. O vendedor ambulante sofre. O dono do hotel, também. Companhia área, donos de imóveis que estão disponíveis em aplicativos, motoristas de aplicativos, donos de projetos que giram em torno do carnaval... É uma cascata que vai impactar todo mundo. Até quem não gosta de carnaval, já que não poderá reclamar da festa”.

Carvalho entende que, para o carnaval ser realizado de forma segura no país, será preciso uma decisão unificada entre as principais cidades em que a folia ocorre. “Acredito que a festa pode acontecer (em 2021). Mas é fundamental que haja uma união nacional para que o evento seja simultâneo em todas as cidades, principalmente naquelas onde a festa tem proporções gigantes. O carnaval é importante, não só para as pessoas que curtem o momento, mas também para a economia”, pondera.


Em 2020, o carnaval de São Paulo movimento R$ 2,75 bilhões com os festejos de rua e no Sambódromo do Anhembi (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Impacto econômico

Neste ano, o carnaval de rua de São Paulo gerou R$ 2,75 bilhões. No Sambódromo do Anhembi, os desfiles das escolas tiveram impacto econômico de R$ 227 milhões — o que totalizou numa movimentação de R$ 2,97 bilhões para a cidade, que gastou R$ 36,6 milhões e que teve R$ 21,9 milhões de patrocínio da Ambev. De acordo com dados do Observatório do Turismo, a movimentação financeira inclui gastos com transporte, alimentação, compras, hospedagem e lazer, considerando-se o público oficial, composto de 73,6% de moradores de São Paulo e 26,4% de turistas.

Por esse motivo é que os profissionais do setor hoteleiro e de alimentação estão atentos às decisões relacionadas ao carnaval. “A situação se complicou muito. Estima-se que quase 40% dos empreendimentos fecharam e não retornarão na pandemia. Então está todo mundo ansioso pela retomada e pelo carnaval, que, para nós, é importante por envolver o turismo e movimentar o setor”, explica Rubens Fernandes da Silva, secretário geral do Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo e Região (Sinthoresp).

Ele diz que, com o crescimento, a festa em São Paulo tem sido importante para a movimentação econômica do setor e para a geração de empregos. Até por isso, o preocupa a situação ainda indefinida, sem uma data específica. “O carnaval é um período interessante, porque o número de turistas aumenta. Agora, com essa situação toda, a gente sabe que a perspectiva para o setor é ruim e ficará pior para os trabalhadores”, acrescenta.


Rubens Fernandes da Silva, do Sinthoresp, acredita que é preciso ser criativo e reinventar o carnaval de 2021 (Foto: Arquivo pessoal)

O secretário geral do Sinthoresp afirma ainda que a categoria entende o adiamento, mas cobra das autoridades uma decisão criativa para manter a folia de outra forma. “A gente está na expectativa de uma vacina. É preciso tempo e paciência. Mas também é preciso que as autoridades consigam pensar em algo diferenciado, para que as pessoas possam brincar e se divertir no carnaval. Estamos reinventando tudo, por que não até mesmo a forma de pular carnaval?”, questiona.

O vice-presidente jurídico do Sindicato dos Restaurantes, Bares e Similares de São Paulo (SindResBar), Carlos Augusto Pinto Dias, analisa que o setor entendeu o adiamento do carnaval e só poderá ter conclusões do impacto da decisão quando, de fato, passar pelo momento: “Tem dois lados aqui em São Paulo. Ao mesmo tempo em que o carnaval pode trazer o público de fora e aumentar a demanda de restaurantes, tem o lado de que as pessoas da cidade saem e não estão consumindo. A gente não sabe efetivamente se ter carnaval, no nosso caso, é bom ou é ruim. Vamos aguardar”.

Enquanto o setor alimentício não tem certeza se haverá prejuízo, a área hoteleira sente que haverá impacto, caso o evento não ocorra em 2021. “Se não houver carnaval, terá menos dinheiro na economia, os hotéis ficarão mais vazios. É todo um ciclo. São Paulo vive muito de negócios como o carnaval, as feiras... Então há uma expectativa em torno da realização (em outra data) para que seja retomado o nível de emprego”, comenta Cícero Lourenço Pereira, presidente da Federação Interestadual dos Trabalhadores Hoteleiros de São Paulo e Mato Grosso do Sul (Fetrhotel).

Mesmo assim, ele aponta que esperança, agora, é na vacina. “O pessoal recebeu a decisão do adiamento com naturalidade, com a situação que o Brasil se encontra e o fato de São Paulo ter sido um dos estados mais afetados pelo coronavírus. Está todo mundo, na realidade, na expectativa da vacina e de que ela resolva a situação, porque perdemos muito com a pandemia. Até agora a retomada do setor, que foi o primeiro a parar, tem sido difícil”, arremata.

Recife e Olinda: adaptar para resistir

Em busca de um equilíbrio entre economia, falta de data para adiamento e preservação da cultura, entidades cogitam fazer um carnaval ajustado às necessidades que a pandemia impõe, mas no período correto.

Foto: Diego Galba

Pelo grande número de canais que cortam a cidade, e pela consequente quantidade de pontes ligando um ponto a outro, Recife é conhecida como a Veneza brasileira. Os dois locais também guardam uma outra semelhança: as famosas festas carnavalescas. Mas, neste caso, é Veneza quem deveria ser conhecida como o Recife italiano, visto que a folia na capital pernambucana é uma das maiores do planeta. 

Fosse em tempos normais, a farra já teria começado em setembro, com as prévias que seguem até fevereiro. Nas primeiras horas do sábado de Zé Pereira, o Galo da Madrugada — consagrado em 1994 pelo Guinness Book como o maior bloco do mundo — anunciaria o início oficial da folia de Momo, arrastando cerca de 2 milhões de pessoas, por cerca de 9 horas, ao som de muito frevo. Horas mais tarde, na madrugada de domingo, o Homem da Meia Noite percorreria as ruas da vizinha Olinda, a menos de 10 km de distância. 

Nos dias seguintes, os horários costumam se inverter. De manhã e à tarde, é o momento de acompanhar os blocos por entre as ladeiras da cidade histórica — em meio ao calor típico do verão nordestino. Para quem ainda tiver pique, a festa continua à noite no palco montado no Marco Zero, no Recife Antigo. O sonho de carnaval só acaba na quarta-feira de cinzas, no Bacalhau do Batata, em Olinda, ou n’Os Irresponsáveis, na capital. 


Mapa mostra a proximidade de Olinda e Recife, bem como a formação geográfica que rendeu à capital pernambucana o apelido de Veneza brasileira 

Mas em 2021, por conta da pandemia de covid-19, a realidade deve se impor antes mesmo da quarta-feira ingrata. Embora ainda não haja uma definição formal — as prefeituras de Olinda e do Recife informaram que vão aguardar as eleições municipais para anunciar uma decisão —, é pouco provável que o evento ocorra nos moldes que os foliões conhecem: ou haverá uma adaptação significativa ou uma mudança de data. 

Qualquer que seja a decisão tomada, ela implicará em consequências graves. Enquanto não há anúncio oficial do governo, os diversos atores envolvidos se esforçam para equacionar três fatores e chegar ao resultado que represente menores prejuízos. O primeiro é a economia. Em 2020, o carnaval de Pernambuco movimentou R$ 457,8 milhões, de acordo com a Confederação Nacional do Comércio (CNC), sendo o 5º maior mercado do país, atrás de Rio de Janeiro (R$ 2,32 bilhões), São Paulo (R$ 1,95 bilhão), Bahia (R$ 1,13 bilhão) e Minas Gerais (R$ 748,9 milhões). 

O adiamento seria uma opção de mitigar as perdas financeiras. Mesmo assim, é visto como insuficiente. Representantes do setor hoteleiro — para o qual o período carnavalesco chega a significar 30% do faturamento anual — preferem manter a esperança de que a folia ocorra na data planejada, desde que haja, é claro, segurança sanitária para tal. “Adiar é um prejuízo menor (do que não ter), mas acredito muito no trabalho que está sendo feito, com uma vacina chegando e sendo distribuída. Acho que seria o ideal que permanecesse”, opina Nerteval dos Santos, presidente do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado de Pernambuco (SHRBS-PE). 

“Carnaval tem uma data muito certa na cultura das pessoas. Se muda a data, tira um pouco do brilho da festa. Fica meio sem propósito se acontecer dias depois, meses depois”, emenda Luciano Novaes,vice-presidente do Sindicato de Habitação de Pernambuco (Secovi-PE), entidade que responde por parte dos casarões históricos alugados para temporada em Olinda. 

O discurso que mescla otimismo e cautela encontra eco entre os trabalhadores autônomos. Coordenador da Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis (Coocencipe), Luiz Mauro Paulino da Silva diz que, além dos 56 trabalhadores fixos, o grupo contratou mais 800 catadores para a folia de 2020, e que, para alguns integrantes da categoria, os 4 dias de festa equivalem a 70% da renda de todo o ano. Diante disso, ele avalia que uma eventual alteração “mudaria o cenário”, e espera que a programação se mantenha. Mas pondera: “Se ver que tem um pequeno riscozinho, eu sendo gestor suspendia o carnaval”. 


Noites são de festa no Recife Antigo: em 2020, polo Marco Zero recebeu nomes como Elza Soares, Pitty e Paralamas do Sucesso, além de Alceu Valença e Elba Ramalho (Foto: Camila Leão/PCR) 

Choque de patrimônios 

O segundo fator é a falta de data para um possível adiamento. Diferentemente de estados que já dão quase como certa a transferência da folia para outro mês, Pernambuco vê uma limitação por conta das festas juninas, que chegam a ser tão ou mais fortes que o carnaval. O ciclo junino se inicia em maio e vai até julho — e vale lembrar que ele não se realizou em 2020. 

Dono dos principais festejos juninos do estado e um dos maiores do país, ao lado de Campina Grande (PB), o município de Caruaru, a 130 km do Recife, ainda contabiliza os prejuízos de um ano sem São João. “A cidade se prepara o ano todo para receber turistas de vários cantos. É uma festa que movimentava cerca de R$ 400 milhões e estava em crescimento. Foi muito doloroso para todos nós”, lembra Hérlon Cavalcanti, gerente da Fundação de Cultura e Turismo de Caruaru. Sobre uma eventual mudança do carnaval, ele é taxativo: “Vai atropelar todo um calendário cultural”. 

Um dos fundadores e atual presidente do Galo da Madrugada, Rômulo Meneses entende que a data só poderia ser transferida para um ou dois meses à frente. “Se adiar para março ou para abril, não vejo grandes transtornos. Para maio, junho e julho, esvazia, já começa a misturar uma cultura com a outra. Se for para fazer depois de junho, é melhor cancelar, não faz muito sentido”, crava. 

Meneses ainda afasta a ideia de o maior bloco da Terra converter a tradicional celebração em um espetáculo virtual: “Não estamos pensando nisso. Não faz sentido fazer live. Só vejo sentido no carnaval com o povo junto”. 

“Carnaval começa no Galo da Madrugada”: bloco anuncia o início oficial da folia em Pernambuco (Foto: Allan Torres/PCR) 

Cultura ameaçada 

A possibilidade de fazer um evento adaptado às normas de distanciamento social, porém, é vista com bons olhos por outras entidades. Isso porque há a preocupação com o terceiro fator envolvido na equação: o prejuízo cultural de um fevereiro sem a folia momesca. Diretor do Elefante de Olinda, um dos mais tradicionais blocos da cidade histórica, Anax Botelho ressalta que a entidade “tem a sensibilidade do momento” — “carnaval é alegria, não pode estar associado a morte” —, mas, pessoalmente, enxerga o adiamento como um risco à cultura e à história. 

“O Elefante existe desde 1952 e é uma das poucas instituições de Olinda que nunca deixou de desfilar. Todo domingo de carnaval ele esteve na rua, uns anos mais pobrezinho, outros mais luxuoso, e pesa muito para a gente não ter nada. Ele é um dos responsáveis pela festa como conhecemos e não pode ficar omisso, tem que se movimentar, fazer algo. Então a gente vai ocupar esse espaço do domingo, nem que seja de forma virtual”, garante. “Queremos fazer alguma coisa, mas alguma coisa respeitando as vidas das pessoas”, acrescenta. 


“O Elefante exaltando as suas tradições”: há 68 anos ininterruptos, entidade desfila pelas ladeiras históricas no domingo de carnaval (Foto: Célio Gouveia/Reprodução/Facebook) 

Outro que pode trocar as ladeiras pelas telas é o Homem da Meia Noite. “Uma não saída envolve um sentimento popular de muita tristeza”, pontua o presidente, Luiz Adolpho, destacando os 89 anos de história do calunga, que é o mais antigo gigante de Olinda. “Só que é um momento extremamente delicado, no qual a gente tem que pensar acima de tudo na vida das pessoas”, completa. 

Calunga é uma entidade ligada ao candomblé. O Homem da Meia Noite é assim considerado por, entre outras coisas, ter nascido em 2 de fevereiro, dia de Iemanjá 

As tratativas para uma live, aliás, já começaram. Segundo Adolpho, há negociações até para transmissão em canais de TV, que tradicionalmente acompanham a saída do bloco, exatamente à meia-noite do sábado para o domingo de carnaval. “Estamos tentando fazer alguma coisa para, de certa forma, amenizar essa perda. Tentar manter viva essa chama e dizer: ‘olha, pessoal, aguarda aí que daqui um ano a gente está junto novamente.” 

“Deu meia-noite, são doze em ponto”: saída do Homem da Meia Noite tem transmissão pela TV e contagem regressiva à la réveillon (Vídeo: Troça Carnavalesca A Vaidosa) 

Entre os artistas, o compasso é de espera, mas jamais de apatia. “Em nós, há um sentimento de que esse carnaval está vivo e será feito com muito amor caso se efetive”, define o cantor André Rio, que promete fazer “uma grande festa, seja virtual, seja presencial nos moldes que estão liberando (com respeito às normas de distanciamento social)“. 

Ante a inédita indefinição, fervilham ideias sobre o que fazer para marcar a folia de Momo. “No São João, a prefeitura colocou uma frevioca (espécie de carro de som) circulando pelas ruas, fez um evento itinerante, passando pelas casas das pessoas. É uma forma de manter viva a nossa cultura, sobretudo nessa geração mais nova, que é bombardeada por informações de internet”, aventa Bia Villa-Chan, para quem um eventual cancelamento total seria “desastroso”. 

“Estivemos na Assembleia Legislativa e eles abraçaram o pleito. Disseram que o orçamento para o carnaval do ano que vem seria mantido, e a gente apresentou soluções que poderiam ser adotadas, como usar os teatros de Pernambuco, estruturas físicas, para transmitir essa festa pela televisão e por plataformas digitais. A gente sabe que não vai ser como queríamos, mas pelo menos ameniza e fomenta as pessoas que vivem e dependem da arte. São maneiras de passar por esse perrengue até que venha uma vacina”, emenda Almir Rouche, que integra a associação de artistas Coletivo Pernambuco. 

Se são muitas as formas de se adaptar a folia, o objetivo é um só: preservar a tradição e as mais diversas manifestações típicas do estado, como o frevo e o maracatu. “Carnaval em Pernambuco é em fevereiro. Quer colocar para julho? Não tem sentido. É melhor fazer adaptado do que mudar de data”, resume Rouche. “Há de se achar possibilidades para que a cultura não vire folclore.” 


André Rio (esq.), Bia Villa-Chan (centro) e Almir Rouche (dir.): artistas buscam alternativas seguras para celebrar o carnaval no período correto (Fotos: Angélica Souza/Divulgação; Verner Brenan/Divulgação e Reprodução/Facebook) 

Brasília: luta para reverter o cancelamento 

Diferentemente de outras cidades, a capital federal optou por cancelar o carnaval em 2021. Blocos, escolas de samba e setor privado trabalham em alternativas, entre elas, uma folia digital 


(Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A.Press) 

Há relatos de que as primeiras folias de carnaval em Brasília surgiram antes mesmo inauguração oficial da capital. No fim dos anos 1950, em locais como o Brasília Palace Hotel e em acampamentos na antiga Cidade Livre (atualmente Núcleo Bandeirante), já era possível ver comemorações durante a época festiva. No entanto, oficialmente, o primeiro carnaval no quadradinho, inspirado na temática carnavalesca do Rio de Janeiro, ocorreu em 1961, com pioneiros vindos dos mais diferentes estados. Naquele ano, a farra tomou conta de clubes do Plano Piloto e da Cidade Livre. A festança era um desejo de Israel Pinheiro, o administrador de Brasília na época. 

De lá para cá, a passos curtos, Brasília foi se tornando um importante polo carnavalesco. Muito dessa fama veio na esteira do crescimento do carnaval de rua nos últimos anos. Em 2019, por exemplo, a capital reuniu mais de um milhão de foliões. Mas a ascensão da grande festa pode ser freada por causa da pandemia de covid-19. 

Com mais de 200 mil casos confirmados e 3,6 mil mortes em decorrência do novo coronavírus, o Governo do Distrito Federal anunciou que não realizará as tradicionais festas de réveillon e de carnaval em 2021. A decisão, tomada em consenso pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec) e pelo governador Ibaneis Rocha, ainda não é definitiva segundo o secretário Bartolomeu Rodrigues. “O adiamento do carnaval segue como parcial, pois necessita de um decreto para ser definitivamente cancelado, mas a Secec e o GDF não podem, nesse momento de pandemia, sem vacina, estimular aglomerações na rua. Logo, seguem na linha do cancelamento que deve ser oficialmente anunciado em breve”, explica. 

Neste cenário, a folia de Momo na capital federal nunca chegou tão perto de não ser realizada, visto que o governo anunciou ainda que não fornecerá a liberação de área pública nem subsídios para tais eventos em 2021. “Não haverá financiamento do carnaval, nem recurso público empregado em atividade que ofereça risco de saúde à população”, afirma Rodrigues. 

Em 2020, iniciativas de diversos formatos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC) do Carnaval 2020, lançado pela Secec, contemplaram 51 atividades realizadas em sete Regiões Administrativas do Distrito Federal que, ao total, receberam mais de R$ 3,9 milhões. Estima-se que a folia injetou mais de R$ 200 milhões nos cofres do DF, e gerou cerca de 18 mil postos de trabalho. 

Agora, diante do iminente cancelamento por conta da pandemia, os setores envolvidos nas comemorações falam quase que praticamente a mesma língua, prezando pela segurança e saúde da população. 

O presidente do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Brasília, Jael Antonio da Silva, reforça que apesar do prejuízo que o setor enfrentará com o cancelamento, o pensamento de proteção da população tem de ser prioridade. “Nós lamentamos profundamente, por conta do carnaval ser uma cultura do brasileiro e pelo grande prejuízo na rede hoteleira, de bares e restaurantes, mas neste momento a segurança tem de vir em primeiro lugar”, defende. 

Em 2020, a expectativa da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis do DF (Abih/DF) foi de que a taxa de ocupação dos hotéis estivesse em 32%, um aumento de 24% em relação a 2019. A capital ainda figurou em 2º lugar na lista de destinos mais em conta com passagens e hospedagens durante o período de carnaval, segundo o levantamento do site de buscas Kayak. 


Liga dos Blocos Tradicionais se articula para um adiamento ou para uma versão digital no período do feriado (Foto: Minervino Junior/CB/D.A Press) 

Festa nas ruas 

Grande parte da recente ascensão do carnaval do Distrito Federal vem da autenticidade dos blocos de rua. Com tradição desde 1978, os famosos bloquinhos bateram recorde de inscrições neste ano, com 180 grupos cadastrados espalhados por diversas regiões. A diversidade de ritmos, cores e até mesmo sabores faz com que entidades tradicionais como Asé Dúdú, Baratinha, Baratona, Bloco dos Raparigueiros, Galinho de Brasília, Mamãe Taguá, Menino de Ceilândia, Pacotão e Suvaco da Asa dividisse espaço com uma “nova geração”, representada, entre outros, por Divinas tetas, Eduardo e Mônica e Essa boquinha eu já beijei. 

E é por meio dos bloquinhos, mais precisamente da Liga dos Blocos Tradicionais de Brasília, que ecoa um pedido de revisão do cancelamento da festa. Inicialmente, o grupo divulgou uma nota com alternativas para realização da folia. A primeira sugestão da liga, composta por oito blocos — Pacotão, Galinho de Brasília, Mamãe Taguá, Asé Dúdú, Menino de Ceilândia, Bloco dos Raparigueiros, Baratona e Baratinha — é a de que as comemorações sejam adiadas para agosto ou setembro de 2021, cumprindo todas as normas “sanitárias e científicas” em relação à pandemia. A segunda é a de que “sejam feitas audiências públicas virtuais com os agentes culturais carnavalescos e toda sociedade civil a respeito do tema”. 

Presidente da associação, Paulo Henrique de Oliveira afirma que as medidas alternativas propostas pelo grupo, em nota, são um direito dos blocos. “Sabemos que não tem condição e também não queremos ter carnaval a todo custo por conta da pandemia. O que estamos propondo é uma medida alternativa, em datas alternativas. Esperamos este fomento do governo, e a realização alternativa das festas, pois é o recurso que nos é garantido por lei”, pontua. 

Oliveira diz que os grupos também pensam em outras formas para marcar para o feriado em si. Ele acredita que será um modo de manter o brasiliense em casa durante os dias do carnaval, movimentando o comércio de forma criativa. “Estamos estudando uma maneira. Podemos propor concursos de fantasias e de casa enfeitadas. O feriado vai existir, as pessoas não vão ficar trancadas em casa”, comenta. E ainda faz um apelo: “Não podemos perder um ano de trabalho. Por isso mesmo estamos puxando uma ideia para a data, de fazer algo criativo. A Secec que tem na nomenclatura a palavra criativa, precisa pensar em algo criativo para o período do carnaval, desde que não coloque a população e os profissionais em risco. Podemos ter a folia digital”. 

O pensamento da liga vai ao encontro da opinião de responsáveis por organizar outros blocos de rua. Integrante de grupos brincantes como Rebu e o Bloco das Caminhoneiras, Dayse Hansa, uma das articuladoras do coletivo Fora do Armário (que conta com 36 blocos LGBTs), concorda que o cancelamento seria uma medida drástica do GDF. “A palavra cancelamento não é apropriada. O correto seria adiar o carnaval. Fazê-lo em junho de 2021. Isso porque estamos num contexto de pandemia que matou 150 mil pessoas. Não tínhamos a dimensão dos efeitos dela, que traz a questão das aglomerações. No âmbito do coletivo, isso tudo é preocupante”, opina. 

Os prejuízos em setores da economia também são destacados por Dayse. “Há pelo menos 10 anos, os blocos impactam o PIB (Produto Interno Bruto), a receita local, estando entre os maiores festejos do calendário da cidade. A verba maior é de origem pública. Não é possível ser bloco de rua, sem receita de bilheteria, e não contar com subvenção do estado. Rendemos de três a quatro vezes os aportes iniciais”, expõe. 

Procurada pela reportagem para comentar a reivindicação dos blocos, a Secec manteve a posição de cancelamento. “Em diálogo com o Governo do Distrito Federal, (a pasta) segue rumo ao cancelamento das comemorações, com recursos públicos, do carnaval 2021, evitando a possibilidade de geração de aglomerações comuns à festividade. O governo está tomando as providências cabíveis para o cancelamento oficial. A Secec ainda não recebeu solicitação da Liga dos Blocos para revisão do cancelamento, mas permanece dialogando com todos os grupos”, diz, em nota. 


Maior campeã do carnaval candango, Aruc defende que a folia não precisava ser cancelada por completo (Foto: Edilson Rodrigues/CB/D.A Press) 

Situação das escolas 

Se entre os blocos é observada uma tendência de crescimento recente, as escolas de samba do DF vivem uma estagnação. Já são seis anos sem que as agremiações — algumas das quais existem desde 1962 — desfilem em formato competitivo. Havia uma expectativa de uma programação no aniversário de 60 anos de Brasília, frustrada pela disseminação do vírus. Mesmo assim, há quem mantenha as atividades, focando no digital. Foi o que fez a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc), maior vencedora do carnaval candango. Em dois sábados, a escola promoveu lives para escolher o samba enredo. 

“A gente não esperava por um carnaval normal. Mas o que causou certo espanto foi a determinação ter sido dura. Não só não vão fomentar, como falaram em colocar a polícia nas ruas. O que a gente vê como certo é pensar em alternativas”, argumenta Rafael Fernandes, atual presidente da Aruc. Até por isso, a escola manteve a escolha do samba. “O carnaval é uma expressão popular. Não é preciso cancelar por completo. Podemos buscar meios e o poder público auxiliar nesse processo. Nós fizemos a escolha do samba, como comemoração do nosso aniversário e numa maneira de nos mantermos em atividade”, completa. 

Fernandes ainda aponta algumas ideias: “Não temos só a internet. Podemos pensar em vendas de camisetas, em oferecer produtos. O importante é manter essa chama acesa”. 

Na Acadêmicos da Asa Norte, o clima é de desesperança. Por causa da pandemia, a agremiação está com todas as atividades paralisadas e acumulando dívidas para manter a sede, antes alugada para eventos culturais. A notícia do cancelamento do carnaval não surpreendeu o grupo. “Nós e várias outras escolas estamos até hoje com materiais daquele carnaval em que os desfiles foram cancelados pela primeira vez. Criamos uma dívida com costureiras, carpinteiros. Foi um baque muito grande para as escolas e para um cenário que movimentava a economia com mão de obra. Então, não nos surpreendeu a decisão do cancelamento. Todos os anos, com ou sem pandemia, já não eram realizados os desfiles”, lamenta Robson Farias, vice-presidente, que também define como complicada a comunicação das agremiações com o órgãos governamentais. 


Responsáveis pelo Carnaval no Parque acreditam que a folia pode se reinventar na iniciativa privada (Foto: Minervino Junior/CB/D.A Press) 

Setor privado 

O carnaval de Brasília também vem sendo marcado por festas e bailes realizados por empresas da iniciativa privada. Entre estes, um dos mais populares é o Carnaval no Parque, da R2 Produções. A festa de grande produção mistura artistas famosos de todo o Brasil com cantores locais, em apresentações dos mais diversos gêneros musicais. O evento já teve quatro edições, sendo a última com oito dias de folia, mais de 50 atrações e 100 horas de festa, incluindo shows no período de pré-carnaval. 

Sócio e diretor comercial da R2, Bruno Sartório, idealizador do evento, acredita que a clandestinidade e o amadorismo podem tomar conta do setor caso o carnaval seja cancelado pelo governo. “É um prejuízo muito grande, levando em conta que diversas atividades já estão voltando. O setor de eventos continua sendo o mais prejudicado e o menos representado nos atos de liberação. Nós acreditamos que o grande risco é a clandestinidade. A partir do momento em que não se é permitido serem realizados eventos por profissionais ou empresas, esses eventos serão feitos por pessoas amadoras de forma clandestina”, antevê. 

O empresário, para quem a folia de 2021 é uma grande oportunidade, conta que a produtora está em contato com a Secec para conseguir a liberação para realizar as comemorações “dentro dos protocolos de segurança e saúde”. “Queremos mostrar para Brasília e para o GDF que essa é na verdade uma grande oportunidade para o carnaval privado da cidade. Tanto para fomentar a cadeia produtiva, quanto pela questão turística, já que algumas capitais que são referência de carnaval, como são Salvador e Rio de Janeiro, também estão querendo adiar. Lógico sempre respeitando os protocolos de saúde que estão vigentes.” 

Sempre folião, por Irlam Rocha Lima 


Irlam Rocha Lima e Aline Brito no bloco brasiliense Pauta na rua, que, em 2019, prestou homenagem ao jornalista (Foto: Barbara Cabral/Esp.CB/D.A Press) 

Quando o carnaval entrou na minha vida eu era pré-adolescente em Barreiras, no Oeste baiano. Durante o dia saía pelas ruas da cidade no embalo do bloco dos Caretas, usando fantasia rústica. Como não havia fiscalização, à noite, me esbaldava nos bailes promovidos pelo Dragão Social, clube que existia na época. Já morando em Brasília, em meados da década de 1960, achava estranho o fato de o chamado “tríduo momesco” ser restrito a associações como AABB, Iate Clube e Unidade de Vizinhança. Assim, quando chegava fevereiro sempre voltava à minha origem barreirense. 

Tempos depois, já como repórter do Correio, estava sempre presente no plantão carnavalesco, e pautado para cobrir o desfile do Pacotão, bloco do qual fui um dos fundadores, junto com outros companheiros jornalistas. Guardo na memória a marchinha — satírica — Aiatolá de 1979, composta por Moacyr de Oliveira (Moa) e Salomon Cytrynowicz (Samuca), que fustigava os generais da ditadura que governaram o Brasil. Trecho da letra diz: “Geisel você nos atolou/ O Figueiredo também vai atolar/ Aiatolá, Aiatolá/ Venha nos salvar/ Que este governo já ficou gagá”. 

A partir do começo dos anos 1990, com o advento da axé music, o carnaval de Salvador passou a ser objeto de consumo de foliões de todo o Brasil. De férias, durante 15 anos, no períodos dos festejos de Momo, meu destino era a capital soteropolitana, onde me aguardavam os blocos comandados pelo Chiclete com Banana e Banda Eva. Este tendo Ivete Sangalo e posteriormente Saulo Fernandes como vocalistas — com direito a seguir o desfile, entre o Campo Grande e a Praça Castro Alves, em cima do trio elétrico. Isso durante a tarde. À noite, no concorridíssimo camarote de Daniela Mercury, devidamente credenciado, dividia espaço com Jorge Amado, Zélia Gattai, Caetano Veloso, Nizan Guanaes (autor do clássico We are carnaval, cuja letra enaltecia os baianos e saudava os turistas), atores e atrizes da Globo e políticos em voga. Lá, mesmo de férias, apurava fatos de bastidores, para o Correio. 

Na década passada troquei o carnaval de Salvador pelo do Rio de Janeiro, onde estive por quatro anos seguidos. Achei interessante os foliões, nos bloquinhos, livres, leves e soltos, sem cordas para tolher os movimentos. Entre as centenas de blocos, cinco deles são meus preferidos: os tradicionais Cordão da Bola Preta, no centro da cidade, e a Banda de Ipanema, no mítico bairro da Zona Sul; onde também desfila o Simpatia é quase amor; além do Suvaco de Cristo, no Jardim Botânico; e o do Sargento Pimenta — que toca canções dos Beatles, com arranjos em que usa elementos de ritmos brasileiros. A apresentação reúne multidões no Aterro do Flamengo. 

Encantado com a mudança ocorrida na folia brasiliense, com a ocupação de espaços urbanos da capital por um número expressivo de blocos, a partir de 2016, optei por permanecer aqui durante o carnaval. Com muita disposição — haja energético! — tenho me jogado pelos setores bancários Sul e Norte e Eixo Monumental, na tentativa de assimilar ao máximo, a energia passada por blocos como Divinas Tetas (ao interpretar hits de Caetano Veloso, de outros tropicalistas e dos Novos Baianos), Eduardo e Mônica, que recria composições de Renato Russo; e pelas meninas do Esta Boquinha eu já beijei, pelos quais tenho predileção. 

Obviamente, jamais deixei de prestigiar o Pacotão. Aliás, neste ano, com muito atraso, recebi durante a concentração, na entrequadra 302/303 Norte, o diploma de sócio fundador do bloco, das mãos do cartunista Joanfi, membro do coletivo que, atualmente, bota na contramão da Avenida W3 o anárquico carnaval da nossa querida Sociedade Armorial Patafísica Rusticana — nome oficial do Pacotão. 

Diante da incerteza provocada pela pandemia, restam a esperança e a torcida para a volta da normalidade e para que, quando o carnaval chegar (seja lá quando isso for), nós, os foliões, possamos voltar a ocupar os setores, eixos e avenidas brasilienses e cair na farra como se não houvesse amanhã. Até porque há de haver uma recompensa para quem vive a realidade que nos é imposta em tempos de tanta insanidade neste país tropical cantado por Jorge Ben Jor. 

Irlam Rocha Lima é repórter do Correio há 45 anos e um dos fundadores do Pacotão, o mais antigo bloco de rua de Brasília. Cobriu, como jornalista, e participou, como folião, dos principais carnavais do país. Também é autor do livro Minha trilha sonora. 

Mural dos foliões 

O Correio pediu que apaixonados por carnaval enviassem comentários sobre a folia de 2021. Uma homenagem àqueles que são a alma da festa. 



EXPEDIENTE 

Reportagem 

Fernando Jordão 

Hellen Leite 

Adriana Izel 

Luiz Philipe Tassy (estagiário sob supervisão de Humberto Rezende) 

Edição 

Humberto Rezende 

Editores Executivos 

Plácido Fernandes e Vicente Nunes 

Diretora de Redação 

Ana Dubeux


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