Disputas
por poder e terras, rivalidades cultivadas de geração em geração. Brigas
mortais entre famílias marcaram o Brasil Colônia, mas algumas pendengas
sobrevivem até hoje
POR MOACIR ASSUNÇÃO
Brigas entre famílias no Brasil Colônia - Arquivo
Aventuras
Ilustrações Elly
Walton
Largo da Matriz, São Paulo de
Piratininga. Naquela manhã de fins de agosto de 1640, gritos e impropérios trocados
entre dois homens poderosos, Pedro Taques e Fernando de Camargo, o Tigre, tomam
o centro da vila, transformada rapidamente em um campo de batalha. Parentes,
agregados e índios - escravos das famílias Pires, à qual Taques era ligado, e
Camargo - juntam-se à contenda e enfrentam-se armados de espadas, lanças e
adagas. A pancadaria invade becos e largos vizinhos num torvelinho de sangue.
"De repente era Romeu e Julieta, Ato I, Cena I", afirma Roberto
Pompeu de Toledo em A Capital da Solidão - Uma História de São Paulo das
Origens a 1900.
Há vários mortos e feridos, mas os brigões originais escapam ilesos. Ambos
representam os mais importantes clãs da região, chefes políticos e militares,
donos de enormes fazendas de trigo na serra da Cantareira. A rivalidade na
disputa pelo comando da Câmara era a razão primeira do conflito. Um ano depois,
distraído, conversando com um amigo ao lado da mesma igreja, Taques foi morto
pelo Tigre com um golpe de adaga nas costas.
A contenda entre os Pires e os Camargos se arrastaria por duas décadas. E é só
a primeira de sucessivas lutas sangrentas entre famílias na história do Brasil.
Principalmente no período colonial, por causa da distância da metrópole
portuguesa e da influência limitada de seus representantes, em muitos casos
cabia aos "sobrenomes" aplicar alguma forma de justiça. Segundo o
sociólogo Luiz da Costa Pinto, autor de Lutas de Famílias no Brasil, a coroa
tinha sérias dificuldades para impor sua vontade no vasto território
brasileiro. Especialmente no sertão, a vingança privada se sobrepunha com
sobras à atuação da administração colonial, concentrada nas capitais e cidades
litorâneas.
Havia uma hipertrofia de clãs ligados por laços de sangue. Os mais poderosos
montavam verdadeiros exércitos particulares de escravos negros e índios, muito
bem equipados e armados, para fazer valer seus interesses uns sobre os outros.
Lavando a honra
Perto de 1650, outro episódio levou a rixa entre os Pires e os Camargos ao
ápice. (Dizem que o ódio dos últimos era tanto que nas suas casas os adereços
de louça usados sob as xícaras de café foram abolidos). No início das festas de
entrudo (o avô do Carnaval), o jovem Alberto Pires brincava com sua mulher,
Leonor de Camargo Cabral, quando, sem querer, matou-a com uma pancada na testa.
Para encobrir o crime, convidou o cunhado, Antônio Pedroso de Barros,
bandeirante casado com sua irmã, para visitá-lo e partilhar a diversão. Quando
apontou na entrada da fazenda, Antônio foi morto numa tocaia, a disparos de
bacamarte, e seu corpo arrastado para o lugar onde estava o de Leonor. Alberto,
então, chamou os familiares e mostrou os dois cadáveres, dizendo que os flagrou
em adultério e matou para limpar a honra. Os Pires até aplaudiram o feito. O
assassino era filho de Inês Monteiro de Alvarenga, a Matrona, e Leonor,
sobrinha do Tigre. Os Camargos, irredutíveis e dispostos a vingar a morta,
sitiaram a fazenda de Inês em Juqueri, aliados aos Barros. Queriam sangrar
Alberto "ou pelos fios do ferro das espadas ou pelas bocas das espingardas",
no relato do cronista do século 18 Pedro Taques de Almeida Pais Leme,
descendente do homônimo citado alguns parágrafos antes.
A viúva Matrona apareceu na porta empunhando um enorme crucifixo de ferro e
pediu, em lágrimas, que seu filho fosse poupado. Os membros do cerco acabaram
aquiescendo e somente prenderam Alberto para que o Tribunal da Relação, em
Salvador, o julgasse. Acompanhado por alguns inimigos, o assassino foi levado a
Santos, de onde partiria de barco para a Bahia. Nesse ínterim, sua mãe, a cavalo,
juntamente com a milícia particular, se preparava para, quem sabe, resgatá-lo
em Parati, onde a barcaça pararia antes de seguir viagem. Ao ter notícia da
chegada da mulher, os Camargos enforcaram o assassino e o jogaram ao mar.
A partir daí, era a guerra. A capitania de São Paulo dividiu-se em duas tal o
poder dos rivais. Só em 1660 o representante d’el Rei, o ouvidor Pedro de
Mustre Portugal, conseguiu fazer os líderes Fernão Dias Pais, o caçador de
esmeraldas, e José Ortiz de Camargo assinarem um acordo efetivo de paz. Nele
estava expresso que os clãs, esgotados pela batalha, repartiriam igualmente os
cargos na Câmara e o controle da vila. Um grupo de Camargos já havia se
deslocado para a vizinha Santana de Parnaíba e para Taubaté na tentativa de se
afastar da polêmica.
Nordeste
As guerras de famílias, marcas distintivas de sociedades rurais, são tão velhas
quanto a Humanidade. No sul brasileiro, os estudiosos deram às disputas o nome
de vendeta, numa referência aos episódios da tradição europeia, ocorridos
principalmente na Itália, Córsega e Espanha. No Nordeste, chamam-se questão ou
guerras de parentelas e se faziam em brigas por terras, aguadas (cursos de
água), poder político ou em razão de desfeitas de um líder a outro.
"Nessas regiões, o Estado não estava presente. São áreas distantes, de
difícil acesso. O poder estatal (colonial, imperial ou republicano) só aparece
em momentos de crise. O poder central e suas instituições são vistos como algo
externo àquelas comunidades", afirma o historiador Marco Antonio Villa, da
Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
No século 18, entre muitas ocorrências, estranharam-se Montes e Feitosas, do
sertão dos Inhamuns, no Ceará. O líder dos primeiros era o capitão-mor Geraldo
de Monte Silva, de Penedo (AL), que arrebanhou, a troco de presentes, um grande
número de tribos a seu serviço. Entre os adversários, o pernambucano Lourenço
Alves Feitosa dava as ordens. Ligados por laços de casamento, os clãs logo se
desentenderam numa disputa de terras e "por razões de negócio de honra de
família", escreveu o sociólogo Costa Pinto. Francisco Feitosa firmou
aliança, então, com os índios jucás. Os índios inhamuns, por sua vez,
integravam a vasta clientela dos Montes e, ao lado deles, lutaram com grande
valentia.
A disputa perdurou por quase todo o século. De tão renhida, mudou até o nome de
acidentes geográficos da região. Um atentado contra o ouvidor José Mendes
Machado, que deu a vitória final na Justiça aos Feitosas, fez com que o lugar
do ocorrido ficasse conhecido como Emboscada - até hoje. Não foi o único.
Também há registros de paragens com os curiosos nomes de Riacho de Sangue,
Riacho do Juiz (onde foi atacado pelos Montes outro magistrado tido como
parcial aos Feitosas) e o sítio das Tropas, entre outros. Em uma das batalhas
mais violentas, na fazenda das Cabaças, no Piauí, nove integrantes da família
Monte foram mortos de uma só vez.
Pernambuco é, talvez, o estado onde mais houve lutas de famílias. E a mais
famosa só terminou recentemente, em 1981, e opôs os Alencares aos Sampaios e
Saraivas, em Exu, na fronteira entre o Ceará e o Piauí. Iniciada em 1949,
quando José Aires de Alencar, o Zito, matou Romão Sampaio Filho, o coronel
Romãozinho, depois de uma discussão banal, a contenda entre os ricos grupos
levou a 33 mortes de ambos os lados. Houve vítimas no Recife e no Rio de
Janeiro, numa demonstração de que a rixa não tinha fronteiras. A pedido do rei
do baião Luiz Gonzaga, parente distante dos Alencares, o então vice-presidente
da República, Aureliano Chaves, acionou o governador, Marco Maciel, que mandou
desarmar os representantes de cada lado uma semana depois do apelo.
Em Recife, ainda sem saber de nada, Gonzagão foi desaconselhado por um amigo a
viajar para Exu: "Não vai não, que os caras lá tão querendo te
capar". As tropas estaduais haviam acabado de invadir as fazendas para
recolher armas. O sanfoneiro deplorou a guerra na música Rio Brígida. Antes da
intervenção estadual, um acordo entre as famílias, patrocinado pelo arcebispo
primaz do Brasil, dom Avelar Brandão Vilela, havia suspendido as hostilidades
só por dois meses. Outra tentativa, feita pelo Exército, também tinha
fracassado. Em 1990, o prefeito José Peixoto de Alencar foi o primeiro a
terminar o mandato na cidade sem registro de mortes.
Cerca de um século antes, desde 1894 até 1923, enfrentaram-se os Pereiras e os
Carvalhos na terra natal de Lampião, Serra Talhada. Os primeiros descendiam de
Andrelino Pereira, o barão de Pajeú, enquanto os demais eram prósperos
comerciantes e fazendeiros. "Em geral, as lutas terminam pela exaustão
econômica de um dos contendores ou por mudança no zoneamento. Na guerra entre
os Pereiras e os Carvalhos, por exemplo, os Pereiras acabaram se fixando no
campo, enquanto os Carvalhos se tornaram mais urbanos e mercantis, passando a
viver na cidade", diz o historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor
de Guerreiros do Sol, que trata do banditismo nordestino.
Desde criança
Entrevistado pelo pesquisador Leonardo Mota na Penitenciária de Fortaleza, um
Pereira, preso acusado de matar um dos desafetos, resumiu assim a situação:
"Só possuo uma vida e essa é livre. Sou homem de honra e acostumado a
falar de cabeça erguida. Essa primeira humilhação que estou sofrendo não me
enfraquece e não há governo que dê jeito na minha luta com os Carvalhos. Isso é
uma questão de sangue! Só quando Deus acabar com o último Pereira é que
Carvalho deixa de ter inimigo nesse mundo. O senhor quer saber de uma coisa? Lá
no meu Pajeú, quando um menino da família Pereira começa a crescer, vai logo
dizendo: tomara já ficar homem para dar cabo de um Carvalho. A mesma coisa
dizem os meninos deles". E nem parentes em comum eram capazes de
interromper esse ciclo vicioso. O que, aliás, se repetia nas contendas de
muitas outras famílias.
Iniciada em 1913, a guerra entre os Novaes e os Ferraz, em Floresta do Navio,
também levou a várias mortes. Em 2000, o assassinato do soldado da Polícia
Militar Carlinhos Novaes (em represália à execução do prefeito Oscar Ferraz
Filho) parece ter sido o último lance do conflito. Para Mello, o caso diverge
um pouco dos anteriores porque é mais uma disputa política que de sangue. Até
hoje, na Igreja do Rosário de Floresta, Ferraz se sentam à direita e Novaes à
esquerda. Mas, como prova de pacificação, a atual prefeita chama-se Rosângela
Maniçoba Novaes Ferraz. "Faço questão de dizer que sou Rorró Maniçoba.
Essa briga entre as famílias é de um pequeno grupo. Não faço parte dessa
rixa", afirma a primeira mulher a comandar a cidade, no sertão do rio São Francisco.
Também duelaram em Pernambuco Morais e Cabrais, em Garanhuns, e Honoratos e
Barros, no sul do estado. Omenas e Calheiros lutaram em Alagoas, assim como os
Fortes Nunes e os Maltas. No Ceará, além dos Montes e Feitosas, combateram
Mourões contra Moquecas e os Geraldos e os Leites. Brilhantes e Limões e
Viriatos e Morais brigaram no Rio Grande do Norte, Cavalcanti Aires e Nóbregas
combateram na Paraíba e os Maias estranharam-se com os Suassunas no eixo CE, RN
e PB. No Sudeste, em Patos de Minas (MG), há registros de embates sangrentos
entre Barcelos e Quintinos.
Há uma relação das lutas entre famílias com a milenar Lei do Talião, o
"olho por olho, dente por dente"? O historiador Frederico Mello
explica: "A guerra entre clãs é mais primitiva ainda, até porque a
desproporção entre a ofensa e a vingança é muito grande. Em pouquíssimas
ocasiões, o dano causado ao inimigo não superou a perda inicial".
Porta de entrada para o cangaço
Refregas levaram ao banditismo
Alguns dos principais personagens da historiografia sertaneja estiveram, de uma
forma ou outra, envolvidos em lutas de famílias. Virgulino Ferreira da Silva
apoiou os Pereiras em sua luta contra os Carvalhos em Serra Talhada. A própria
trajetória de Lampião no cangaço se iniciou após uma questão entre sua família,
Ferreira, com os vizinhos Barros, mais conhecidos como Saturninos e aliados dos
Carvalhos. Já os Ferreiras tinham parentesco com os Pereiras. Também o
cangaceiro potiguar Jesuíno Brilhante se iniciou no banditismo após matar
Honorato Limão. A vítima era líder de uma família rival, em guerra contra os
Calados, clã do qual Jesuíno fazia parte. Antonio Silvino, antecessor de
Lampião, cujo nome verdadeiro era Manuel Batista de Moraes, foi outro que
estreou no cangaço por questões de parentela. Antonio Vicente Mendes Maciel, o
Antonio Conselheiro, antes de se tornar líder messiânico, esteve indiretamente
envolvido na luta entre os Maciéis e os Araújos em sua Quixeramobim natal. Os
Araújos eram uma família poderosa da região que, súbito, viu seu poder ser
contestado pelos rivais, gente pobre, mas valente.
Um mundo de desavenças
Só na Albânia, milhares já morreram
O Gênesis, no Antigo Testamento, descreve a vingança radical de Simeão e Levi
contra Sichem, filho de Menor, que deflorou Dinah, filha de Jacó. Os irmãos da
moça trucidaram a família do infeliz. Confúcio, o sábio chinês, estabelece em
suas prédicas: "Não vivas sob o mesmo céu com o assassino do teu pai; se o
encontrares na feira ou na reunião, não percas tempo em voltar e buscar
armas". A China foi um dos lugares onde mais prosperou a vingança privada.
No Egito, diz Luiz de Aguiar Costa Pinto, havia um costume semelhante:
"Não mates para que não te matem. O que matar será morto, e o que der ordem
de morte morrerá também".Nas regiões rurais da Espanha, Portugal e Itália,
as contendas familiares eram comuns. A guerra entre os Médicis e os Sforzas, no
Renascimento, ficou famosa. Na Albânia, sobrevive até hoje o Kanun, um código
de honra não escrito, que determina aos familiares de um homem assassinado
"lavar a honra" com o sangue do inimigo ou de seus parentes, num
ciclo sem fim. O fenômeno é descrito por Ismail Kadaré no livro Abril
Despedaçado. O Kanun, que existe há mais de 500 anos, foi declarado ilegal durante
o governo do ditador comunista Enver Hoxha. Mas, após a sua morte, em 1985, a
prática voltou com força no país. Desde 1991, o Comitê Nacional de
Reconciliação trabalha para acabar com as rixas familiares. A ONG calcula que
9,5 mil pessoas foram mortas, nas últimas décadas, com base no código.
Saiba mais
LIVROS
Lutas de Famílias no Brasil, Luiz de Aguiar Costa Pinto, Brasiliana,
1980
Uma das principais obras dedicadas ao tema, escrita na década de 1940.
A Capital da Solidão - Uma História de São Paulo das Origens a 1900,
Roberto Pompeu de Toledo, Objetiva, 2003
Narrativa cativante sobre a trajetória de São Paulo, que inclui a contenda
entre os Pires e os Camargos.
FILME
Abril Despedaçado, 2001, direção de Walter Salles
Adaptação para o Nordeste
brasileiro do livro homônimo do albanês Ismail Kadaré.
Faltou aquela dos Pimentel com os Arraes
ResponderExcluirBlog do Paixão