Na região do sertão do São Francisco, moradores cercados por roças clandestinas convivem hoje com tráfico e repressão policial
Salgueiro é um ponto estratégico no meio do sertão nordestino. Conhecido como a “Encruzilhada do Nordeste”, o município pernambucano é equidistante das principais capitais da região; gasta-se o mesmo tempo para chegar dali a Recife ou a Fortaleza, por exemplo. Por esse motivo, a cidade tem grande importância na economia do Nordeste. O ponto central das operações da ferrovia Transnordestina fica no município, agora cortado pelos canais da transposição do rio São Francisco.
É também em Salgueiro que
a BR-232 e a
BR-116 se encontram, as rodovias que compõem a rede que escoa
para o resto do país boa parte dos produtos agrícolas da região –
incluindo a maconha produzida nas margens do rio São Francisco. Com
os municípios de Cabrobó, Orocó, Petrolina, Carnaubeira da Penha, Belém de São
Francisco, Betânia, Floresta e Santa Maria da Boa Vista, em Pernambuco; e
Juazeiro, Paulo Afonso, Glória e Curaçá, na Bahia, Salgueiro compõe a região
conhecida como o Polígono da Maconha.
Há relatos da presença da
cannabis na região desde o século XIX, mas o auge da produção se deu nas
décadas de 1980 e 1990, quando chegou a produzir 40% da maconha
brasileira, de acordo com o
pesquisador da Universidade de Juiz de Fora Paulo Fraga. Os
agricultores familiares, que subsistiam em meio à briga por terra entre os
poderosos que financiavam suas disputas políticas com a produção de maconha,
passaram a conviver com um negócio cada vez mais associado ao crime organizado
de fora da região.
A repressão policial ao
plantio e ao tráfico também se intensificou nesses 20 anos. Os produtores de cannabis,
camuflada nas roças de mandioca, associaram-se ao crime organizado, a maconha
perdeu qualidade pela pressão para escoar a carga e, de acordo com a
superintendência da Polícia Federal em Pernambuco, passou-se a utilizar a
região como porta de entrada para outros tipos de droga.
A violência também explodiu –
os moradores a comparam ao período do cangaço. Em 1998, segundo
pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco, a taxa de
homicídios de Carnaubeira da Penha, por exemplo, atingiu 145,06 por 100 mil
habitantes, e Floresta registrou 127,49. Para se ter uma ideia do que isso
significava, no mesmo ano a taxa de homicídios no Rio de Janeiro era de 44,3.
Guerra dos clãs
As violentas disputas
políticas travadas entre os grandes proprietários de terra da localidade teve
início no fim os anos 1980; o cultivo e a venda de maconha surgem nesse período
para financiar a guerra entre clãs.
O surto de violência teria
começado no fim da década de 1980 com uma briga de adolescentes dentro de um
bar da cidade de Belém de São Francisco. Após uma discussão, um jovem da
família Gonçalves foi baleado por um membro da família Benvindo. Na retaliação,
quem morreu foi um membro da família Araquan. Depois desses episódios, a
matança prosseguiu os anos 1990, vitimando quase cem pessoas. A região entre
Belém de São Francisco e Cabrobó foi partilhada em dois clãs.
De um lado, se aliaram os
Gonçalves e os Araquan e, do outro, formou-se uma aliança entre as famílias
Benvindo, Nogueira, Simões de Medeiros (também chamada de “Russo”) e Gonçalves
da Silva (conhecida como “os Cláudios”). A forma que os dois grupos encontraram
para municiar o seu conflito foi trocar a maconha por armas que
vinham do Rio de Janeiro.
Outra forma de conseguir
dinheiro para continuar a guerra entre os clãs foi a prática de assaltos no
sertão. “O pessoal diz que não, mas era crime organizado sim. Naquela época, a
própria polícia dizia que não era para as pessoas pegarem a BR de noite porque
poderiam ser assaltadas. Os ônibus que vinham de Recife ou de Petrolina tinham
que ser escoltados pela PM”, lembra um comerciante da cidade de Cabrobó que
preferiu não se identificar.
O conflito só teve fim
após um termo de
paz assinado na Assembleia Legislativa de Pernambuco, marcando
o encerramento de mais de uma década de ataques violentos. O acordo foi mediado
pela Igreja Católica, Ministério Público e Poder Judiciário e fez parte do
relatório final da CPI do
Narcotráfico em Pernambuco.
A Operação Mandacaru
Foi quando o governo federal
abriu os cofres para uma das maiores ações já realizadas no Nordeste
brasileiro. A Operação Mandacaru mobilizou cerca de 1.500 agentes do Exército,
Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, entre novembro de 1999 a janeiro
de 2000, tendo um custo total de R$ 7,5 milhões (R$ 27 milhões em valores de
hoje) para os cofres públicos.
“A cidade ficou cheia de
gente do Exército. Era policial por todo canto, parando caminhão na estrada e
abordando as pessoas. Melhorou muito na questão da segurança aqui em Salgueiro.
Botaram até uma delegacia da Polícia Federal aqui, mas a gente sabe que o povo
continua plantando maconha aqui na região”, comenta o caminhoneiro Marcos
Natalício, entrevistado no posto de gasolina do trevo entre as BR-116 e 232.
Durante a Operação Mandacaru,
foram presas 204 pessoas e destruídos 544.424 pés de maconha encontrados em 255
roças. A operação previa também ações estratégicas como a instalação de uma
delegacia da PF em Salgueiro e uma unidade do Incra para regularizar as terras
na região.
À época, o custo e a
efetividade dessas ações foram alvo de questionamentos, registrados na
imprensa. Um ano antes do início da Operação Mandacaru, a Superintendência da
Polícia Federal havia planejado uma ação orçada em menos de R$ 695 mil, que
teria um ano de duração – a Mandacaru foi feita em dois meses. O Ministério da
Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso rejeitou o plano. “Nosso projeto
previa a permanência de 60 agentes federais na região”, afirmou na época para o jornal Folha
de S.Paulo o delegado da Polícia Federal Francisco Martins.
Houve também desentendimentos
entre a PF e a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Segundo uma reportagem da
revista IstoÉ, na época da operação, o pivô dessa briga
eram os dólares enviados pelo governo norte-americano através da Drug
Enforcement Administration (DEA), órgão de repressão a entorpecentes nos EUA.
Segundo a matéria, o dinheiro, que antes era repassado diretamente aos
policiais federais, passou a se destinar à Secretaria Nacional de Drogas no
período da Operação Mandacaru.
Procurada pela Pública,
a Senad declarou que não tem mais nenhuma parceria com órgão norte-americano e
trabalha coordenando a atual política brasileira para drogas, incluindo a
“prevenção do uso indevido de drogas, a atenção e a reinserção social de
usuários”, além de realizar “ações no campo da formação, pesquisa e
disseminação de informações” sobre o tema. A Polícia Federal e o DEA foram
contatados, mas não quiseram falar sobre as atuais parcerias entre as duas
instituições.
Novos donos
Se em um passado não
muito distante as famílias poderosas usavam a produção de maconha para
financiar suas disputas políticas e territoriais à base da violência, hoje elas
dividem esse espaço com grupos organizados, que têm origem fora da Nordeste, e
atuam em diferentes práticas criminosas, como assaltos a banco, explosões de
caixas eletrônicos e abordagens a carros-fortes.
Desde os anos 2000, a delegacia
especializada da PF em Salgueiro centraliza a investigação sobre o tráfico, mas
o fato é que a produção de maconha continua firme. Segundo o professor Paulo
Fraga, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que estuda a região há quase
dez anos, as erradicações das roças feitas pela polícia são compensadas por um
aumento na produtividade da maconha, já que os produtores passaram a usar novas
técnicas para o plantio.
Para os pequenos agricultores,
sobretudo os que sobrevivem com dificuldade na agricultura familiar, a
profissionalização do tráfico torna-se oportunidade de emprego, tanto na
produção de maconha – que oferece uma remuneração maior do que as roças de
mandioca predominantes na região – como na vigilância. Segundo, o professor
José Maria Nóbrega, do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade Federal
de Campina Grande, o sistema de plantio da cannabis não difere muito de outras
culturas feitas na região; a diferença está na rede clandestina de distribuição
do produto.
Tráfico e campanhas políticas
De acordo com Nóbrega, a
distribuição só é possível com a ajuda de agentes do Estado. “Sem a
participação desses atores dentro do poder legislativo, executivo, na polícia
regional, dificilmente há sucesso da prática criminosa”, diz. “Na questão da
logística é preciso uma engenharia sofisticada, como a gente encontra com as
facções criminosas que atuam dentro dos presídios. Esses grupos oferecem
matéria-prima e mão de obra para o tráfico e recebem facilitações de agentes
estatais e atores políticos, principalmente do poder legislativo. O dinheiro do
tráfico financia campanhas políticas, levando pessoas que participam desses
esquemas para dentro do poder público, vindo a facilitar a logística e
engenharia desses grupos criminosos. Quando há investigações mais profundas
sobre o tráfico, os delegados são pressionados pelos políticos para maneirar
suas investigações, havendo até ameaças veladas de transferências”, conta o
professor.
Com ele concorda o cientista
político Adriano Oliveira. Em sua tese de doutorado na Universidade Federal de
Pernambuco, Oliveira demonstra que os agentes estatais recebem diversos tipos
de benefícios em troca da proteção oferecida ao crime organizado, que por sua
vez tem influência dentro das instituições. “Um sujeito criminal pode favorecer
um parlamentar com o ganho de votos ou um delegado com uma promoção. Esses
benefícios são os mais visíveis, mas existem outros não tão visíveis. Um
magistrado pode conceder a proteção institucional a um comerciário de drogas em
troca de uma futura transferência para a capital de Pernambuco”, diz Oliveira.
Ele não se refere apenas à
distribuição da maconha brasileira, mas também de drogas que vêm de fora e têm
de circular internamente. Segundo um estudo da Junta
Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, órgão ligado à ONU,
80% da maconha consumida no país em 2012 veio do Paraguai.
Não se sabe exatamente qual o
volume de produção local, mas a participação do Polígono no mercado nacional é
estimada em torno de 30%, por alguns pesquisadores. “Acredito que esteja nesse
patamar”, diz Nóbrega. “Porém não é possível cravar isso porque esses dados não
existem formalmente. Temos números de operações das polícias e do exército, mas
não temos um banco de dados disponível. O que temos é acréscimo do tráfico de
drogas em todos os estados nordestinos. Segundo dados que levantei junto
Sistema Nacional de Estatística, Segurança Pública e Justiça Criminal, da
Secretaria Nacional de Segurança Pública, em Pernambuco, entre 2009 e 2013,
houve um crescimento de apreensão de drogas em 56,7% e na Bahia, no mesmo
período houve um crescimento 32,4%. Mas isso é um dado geral. Não um
detalhamento para saber o quanto disso corresponde a maconha ou a outras
substâncias”, explica o professor.
O fato é que a maconha prensada do Paraguai já
é mais encontrada em cidades no Nordeste onde prevalecia o “soltinho” ou
“camarão de Cabrobó”. E circula também na região do Polígono. “A maconha
prensada é encontrada na região. Já houve apreensões desse tipo de droga, que
varia a forma de distribuição dependendo do grupo de traficantes”, afirma
Afonso Marangoni, chefe da delegacia da Polícia Federal em Salgueiro. Segundo
ele, nos últimos dez anos a Polícia Federal erradicou 9,4 milhões de pés de
maconha no Polígono. Um único pé produz em média três quilos de maconha.
Repressão x produção
Hoje há uma nova estratégia de
plantação porque as áreas de cultivo diminuíram e há o monitoramento por
satélite”, diz o professor Paulo Fraga. “Por outro lado, houve um aumento de
produtividade por conta da utilização de elementos químicos. Uma mostra disso é
que se tem diminuído o número de pessoas detidas e aumentado a quantidade de
material apreendido”, analisa Fraga.
Grande parte das plantações
está localizada nas diversas ilhas do rio São Francisco, e a necessidade de
escapar da polícia também levou a produção para o alto de algumas serras. Com o
sol do sertão e a água abundante do rio, a planta fica apta para colheita
entre 90 e 120 dias após o plantio, mas alguns produtores têm colhido
a planta antes da maturação para fugir da vigilância policial, segundo o
delegado da Polícia Federal Dário Márcio Sá Leitão, responsável pela área de
entorpecentes em Pernambuco.
“A gente acompanha esse
crescimento da planta e, quando vemos que elas estão perto de atingir o nível
de maturação, fazemos a erradicação quebrando este ciclo. Por isso, a droga
plantada no sertão pernambucano não tem mais uma boa qualidade, porque
interrompemos esse processo antes do tempo de colheita. Um pé que antigamente
atingia 2 metros de altura, hoje não chega a 1 metro e meio”, diz o delegado.
Para dificultarem a
localização dos plantios, os produtores da cannabis fazem a rotatividade das
plantações, camuflam as ervas nas roças de macaxeira (evitando que sejam
identificadas por sobrevoos e imagens aéreas) e usam espantalhos simulando
trabalhadores rurais. Também preferem utilizar terras públicas para o plantio –
como as ilhas e matas –, evitando perder suas propriedades em caso de flagrante
policial; segundo a Lei 11.343, os terrenos utilizados para plantação de
maconha devem ser expropriados e destinados à reforma agrária.
Mesmo com a repressão
policial, o plantio de maconha continua lucrativo, segundo Nóbrega. “O governo
tem que tomar duas posições. Ou ele vai regulamentar o plantio, consumo e
comércio da maconha ou ele vai fazer uma repressão mais qualificada, diminuindo
os espaços das operações. A região é grande geograficamente, mesmo com o
efetivo policial adequado, não tem como está em todos os lugares fazendo ações
porque isso tem um custo. Levantar um helicóptero para patrulha em uma
determinada região custa uma fortuna para o erário. Então isso não vai ser
feito corriqueiramente. Tem que haver a implantação de políticas públicas
eficientes, principalmente voltadas para a agricultura familiar ou então a
regularização do comércio. Não defendo bandeira nenhuma, mas analiso do ponto
de vista prático”, diz.
Para o professor Paulo Fraga,
uma eventual legalização da maconha poderia favorecer a região do sertão do São
Francisco. “É necessário olhar a questão da cannabis por outro ponto de vista.
Hoje ela serve para produção de vários produtos, inclusive para remédios. E
seria importante que essa região tivesse o monopólio da produção para ser uma
alternativa de renda legal para os agricultores que estão envolvidos”, diz.
Já o professor José
Maria Nóbrega é cauteloso ao avaliar os benefícios que a legalização traria
para a região. “Se houver uma regulamentação, a tendência é que as atividades
ali fiquem mais transparentes e fáceis de controlar. Mas isso não quer dizer que
de uma hora para outra vai se resolver. Isso é arriscado demais afirmar. No
Brasil tudo é muito complicado. A regulamentação poderia gerar um novo conflito
de terras como há no Norte do país.”
Integrante do movimento
antiproibicionista em Pernambuco, a militante Ingrid Faria defende que a
regulamentação do uso de entorpecentes seja trabalhada com a questão da
propriedade da terra no país. “O projeto de legalização das drogas no Brasil
também passa pela reforma agrária. O Estado precisa pensar como será esse
cultivo e distribuição da maconha. Se deixar na mão do agronegócio, só quem vai
ter acesso à maconha será a burguesia e os jovens de periferia continuarão na
margem de tudo isso”, diz.
DAS MARICAS AO
TRÁFICO
Os primeiros relatos
conhecidos sobre a presença da cannabis no sertão nordestino foram feitos em
1869 pelo explorador inglês Richard Burton no livro Exploration of the
highlands of the Brazil. Burton identificou as plantas às margens do São
Francisco, mas, de acordo com ele, a fibra do cânhamo é que era utilizada para
a confecção de tecidos, o que era comum em boa parte do mundo naquela época.
Gilberto Freyre, em um dos
capítulos de Casa-grande & senzala discorre rapidamente
sobre o consumo da erva entre os mais pobres no começo do século XX e a
repressão policial. “Como o seu uso se tem generalizado em Pernambuco, a
polícia vem perseguindo com rigor os seus vendedores e consumidores – os quais
fumam-na em cigarros, cachimbos e alguns até a ingerem em chás… Entre
barcaceiros e pescadores de Alagoas e Pernambuco verificamos que é grande ainda
o uso da maconha.”
Mas a maconha só passou a ser
considerada um entorpecente – e proibida – no governo Vargas, com a publicação
do Decreto Lei no 891, em 25 de novembro de 1938. Segundo o documento que
completa oito décadas no próximo ano, são proibidos a produção, o tráfico e o
consumo de “cânhamo cannabis sativa e variedade índica (maconha, meconha,
diamba, liamba e outras denominações vulgares)”.
Na década de 1950, em trabalho
encomendado pelo governo federal, o sociólogo norte-americano Donald Pierson
constatou a existência de plantações clandestinas de maconha na região. Segundo
ele, a erva era utilizada pelas populações tradicionais do São Francisco de
forma ritualística, fumada em maricas (espécie de narguilé). O pesquisador
descreveu também os primeiros indícios de tráfico de maconha no Brasil.
“Depois que as sumidades ou
bolotas ficam floridas, são colhidas, secadas, e vendidas em pacotes de 100
gramas. Um barbeiro local recebe-os de um município vizinho, levando-os a uma
cidade rio acima onde, segundo se diz, são vendidos nos navios que partem para
o Sul a fim de serem revendidos, especialmente em Salvador, Rio e Santos. Como
contrabando, as flores são misturadas com os galhos da planta”, relata Pierson
em documento publicado em 1972.
Por Agência Pública
Blog do Paixão