Novembro.
Circulam
folhetos de cordel em homenagem ao pistoleiro que fez sua própria justiça no
Alto do Sertão de Pernambuco:
“Filho de Serra Talhada/ No sertão de terra quente/ onde nasceu Lampião/ Natureza de serpente/ Agora tem Vilmar Gaia, feio, disposto e valente/ Dizem que ele se encanta/ Num pé de mandacaru/ Vive também envultado/ Numa onça canguçu/ Extasiando maior assombro no Vale do Pajeú/ Só tem 26 anos/Esta é a sua idade/Mas dizem que ele briga/De 110 qualidade/ Briga dentro da caatinga e luta em qualquer cidade/Já fez 32 mortes/Abraçou a miséria e deu coice na sorte/ É o maior cangaceiro que temos aqui no Norte”.
David Jurubeba. Foto: Reprodução
– Vim para matar. Venho das terras de Nazaré e só voltarei quando for eliminada a raça dos Gaias. Eu sou do clã dos Ferraz Jurubeba. Minha vida é no mundo perseguindo bandido. Se esse tal de Vilmar é valente como falam eu o perseguirei até a morte. Quero cortar a cabeça desse cabra como fizemos com Lampião. Batista era coiteiro e família que protege o cangaço não merece o perdão. Estou pronto para a luta.
– Onde está
Vilmar Gaia?
– Respondam bandidos!
No milharal
da fazenda, as mulheres vêem aquela cena e pedem de joelhos proteção a São
Tomás de Aquino, a Frei Damião e a Padre Cícero. As crianças cantavam orações.
De longe dali se ouvia a cantoria que só não era mais forte que o som dos
gritos do fuzilamento.
Fogo nos bandidos!
Como nenhum dos irmãos fala sobre Vilmar, os policiais apertam o gatilho. Os
tiros fizeram mulheres e crianças correrem e os animais da fazenda corriam
juntos para todos os lados. Mas os Gaias continuam de pé. O fuzilamento fora
uma ameaça. Os tiros passaram rentes à cabeça de Enoque e ele permaneceu como
estava, o olhar fixo nos olhos do carrasco.
Indiferente, mudo, parece tranqüilo. Enoque está tão calmo que Jurubeba, o
carrasco, assustado, muda de tática. Amarra os pulsos de Enoque e a mesma corda
é amarrada nas encilhas do cavalo. Assim ele começa a ser arrastado pelas
terras do distrito de São João, a norte de Serra Talhada.
O cavalo de Jurubeba é um animal selvagem que corre a trotes largos em direção
às montanhas. A estrada é de pedregulhos e o corpo de Enoque se mantém um pouco
atrás das patas do cavalo, os braços esticados, a cabeça erguida, o peito
arrastando, já sem botas e sangrando. Nas poucas vezes que abre os olhos, o que
vê é poeira e patas. O cavalo abre caminho. Enoque ainda ouve o relincho quando
cruza os milharais.
Enoque ainda vive.
– O cavalo de Jurubeba é arisco, selvagem. Mas não consigo imaginar a que velocidade anda. Sei que andava rápido quando começou a malvadeza. Naquela hora você não sente dores. Eu estava sendo arrastado de bruços e sentia as pedras que batiam no meu corpo, sentia as pedras entrando na minha carne. Os galhos secos eram espinhos grandes e a terra queria devorar a minha barriga. Meu corpo estava mole, saltava como borracha.
Mas um
homem nesta hora ainda sente muita força.
– Nunca me passou a ideia de trair o meu sobrinho. Eu sabia que estava sofrendo a malvadeza por causa dele. Mas eu sou dos homens que não sabem trair o irmão de sangue. Dizer onde está Vilmar Gaia é desprezar a nossa grande vingança. Seria uma atitude de homem que não preza amor da família. Que as patas me furem os olhos, mas eu não falo. Podem me chutar a boca, que me quebrem os dentes porque eu não digo. Vou proteger a pele do menino Vilmar até a morte se for preciso. É certo que Vilmar é pistoleiro e bandido. Mas também é certo que um homem só é afoito e valente se antes ele foi revoltado e corajoso. O caso de Vilmar é de revolta pela morte do pai. Ele fez sua própria justiça aqui no sertão. A justiça que os homens tiveram medo de fazer. Jamais vou trair um menino assim. Eu esperava pela morte porque a morte me salvaria daquele momento. Eu queria que a morte viesse depressa para não dizer o esconderijo de Vilmar, queria a morte como salvadora, como uma aliada contra o inimigo.
O sol é
forte no sertão quando Jurubeba desata a corda do pulso de Enoque desfalecido.
A roupa está úmida do sangue que escorre do rosto, a sobrancelha puída pela
terra, a cabeça de Enoque é uma grande ferida. O couro cabeludo foi pelado, os
fios de cabelo ficaram pelo caminho da tortura. E aquelas perguntas
continuam...
Os habituais interrogatórios aos Gaias tornam-se trágicos. Maria Aparecida, uma
tia de Vilmar, morre de colapso cardíaco quando vê o corpo de Enoque torturado.
Ninguém denuncia, mas David Jurubeba continua a perseguição. Oferece um Volks
para o Gaia que delatar Vilmar.
Blog do Paixão