“Eu
sinto que somos como um pássaro que faz um ninho para viver e passa o tempo
construindo-o, mas de repente impotente vê os outros destruí-lo”. Essas foram
as palavras de Zarmina Kakar, uma ativista pelos direitos das mulheres em
Cabul, ao falar sobre a volta do talibã ao poder.
Para
entender melhor o processo de fundação dessa organização, voltemos ao período
conhecido como Guerra Fria, momento em que os Estados Unidos e União Soviética
disputavam hegemonia econômica, bélica e ideológica no mundo.
O
Afeganistão, um país pobre e deserto, teve o azar de se formar ao lado de
potências do Oriente Médio como Paquistão e Irã. Durante o final dos anos 70 e
início dos anos 80, a União Soviética ocupa o local por 10 anos. Os Estados
Unidos, por sua vez, passam a patrocinar guerrilhas locais para combater o
Exército Vermelho. Essas milícias receberam o nome de mujahedeen. Participaram
delas pessoas como Osama Bin Laden, que, na época, era aliado da potência
americana. A luta dos mujahedeen contra os soviéticos é mostrada no filme
“Rambo”. Na época, a presidência norte-americana e a CIA, organizaram,
treinaram e encheram de armas os combatentes afegãos.
Esses
combatentes, geralmente, eram recrutados entre estudantes e passavam por um
processo de fanatização, proporcionada pela interpretação mais radical do Islã:
a Sharia.
O
líder responsável pela fanatização dos jovens era Mulá Mohammed Omar, um homem
mal, extremamente cruel, de discurso afiado e muito, muito intolerante.
Então,
com armas na mão, após a expulsão dos soviéticos, o Talibã passa a tomar
territórios afegãos e a implantar, de forma violentíssima, suas ideias e
projeto de poder. Em 2001, as tropas americanas invadiram e o governo talibã
chegou ao fim.
No
dia 15 de agosto de 2021, porém, o grupo extremista reassumiu o poder do
Afeganistão e o sentimento de medo e impotência se espalhou pelo país.
Especialmente as mulheres temem viver novamente o horror que marcara as suas
vidas quando viviam sob o domínio talibã e tinham seus direitos usurpados,
vendo-se sob o jugo de um regime marcado por proibições e violência.
Em
meio ao fundamentalismo religioso, qualquer ação se torna crime e as punições
são sempre extremas: chicotadas, apedrejamento e morte.
Proibições,
muitas proibições, isso é o que define o tratamento dados às mulheres
submetidas ao comando do talibã. Elas não podem trabalhar fora de casa; só
podem sair de casa acompanhadas por alguém do sexo masculino, seus corpos
sempre devem estar completamente cobertos pela burca, não é permitido que
mulheres recebam atendimento de médicos do sexo masculino, elas não podem
estudar em escolas, faculdades ou qualquer outra instituição de ensino que não
sejam os seminários religiosos mantidos pelo talibã. Rir em voz alta, usar
cosméticos, sapatos de salto, roupas coloridas ou qualquer outro adereço é
totalmente proibido. É vetado também praticar esportes, participar de
transmissões de rádio, TV ou qualquer tipo de reunião pública ou evento
festivo. As mulheres sequer podem ser vistas das janelas de suas casas ou
apartamentos. Enfim, os talibãs praticamente proíbem a existência das mulheres,
submetendo-as a castigos como chicotadas e apedrejamento, considerando-as
criminosas simplesmente por terem qualquer traço de feminilidade exposto.
Muito
mais do que ter seu corpo coberto pela burca, a mulher afegã tem a sua vida
apagada, seus direitos básicos violados, a sua voz silenciada e qualquer
possibilidade de se opor ao regime é reprimida e imediatamente sufocada.
A
cena de professores da Universidade de Cabul se despedindo de suas alunas ou de
milhares de pessoas desesperadas no aeroporto, tentando sair dali a todo custo
mostram o pavor que domina a quem já viveu na pele um regime extremista e não
quer enfrentar novamente todas as restrições que lhes serão impostas.
Enquanto
pessoas desesperadas tentam fugir, já começam a surgir relatos de integrantes
do talibã exigindo que famílias lhes entreguem meninas e mulheres solteiras
para serem esposas de seus combatentes. Agressões e retaliações começam a ser
divulgadas, o período de terror vai sendo relembrado e, junto com ele, o medo
de que muitos outros dias sombrios passem a vigorar no país.
O
pavor é tão grande que uma mulher chegou a declarar a uma agência de notícias
que estava chorando dia e noite sem parar e que tiraria a própria vida se fosse
obrigada a se casar com um integrante do talibã.
Para
compreender todo esse pânico, é preciso olhar para a história que o talibã
construiu no Afeganistão. Na década de 1990, o grupo tomou o poder prometendo
paz, estabilidade econômica e o fim da divisão do país. Não foi isso, porém, o
que se viu na prática. Durante cinco anos, o grupo extremista espalhou o
terror, impondo uma visão totalmente restrita do Islã, espalhando ódio e
vingança por onde passava e pregando a islamização radical da sociedade afegã.
Ao
longo desses 20 anos em que esteve fora do poder, o Talibã se reestruturou,
encampou a luta contra os Estados Unidos e se articulou com lideranças rurais
do país, se fortalecendo e buscando formas de retomar o poder. As conquistas do
país em termos de direitos humanos e de justiça social podem ser desintegradas
em uma velocidade imensa se o talibã decidir retomar a repressão, a crueldade e
o espírito vingativo que ainda está tão vivo na memória dos afegãos.
Como
garantir que os direitos conquistados não sejam destruídos rapidamente? Como
proteger as meninas e as mulheres de um grupo que historicamente as subjugou,
cometendo abusos que permanecem vivos na memória de quem viveu aquela época?
Por
mais que líderes talibãs digam o contrário, numa tentativa de não sofrer
retaliações e ter o seu governo reconhecido, quando os talibãs tomaram o poder
no distrito de Balkh, panfletos com diversas proibições começaram a ser
distribuídos, dando uma pequena amostra de que a situação não parece que vai
ser muito diferente do tenebroso período entre 1996 e 2001, quando o talibã
governou o país.
Ao
assumir o controle de Cabul, aquele regime de horror vai se tornando real e as
políticas em relação às mulheres permanecem muito semelhantes ao período
anterior. As cenas de mulheres apedrejadas sob a alegação de que eram
adúlteras, os açoites por causa das vestimentas, os casamentos forçados com
crianças, a obrigação de fazer sexo com o marido mesmo contra a vontade, tudo
isso vai se naturalizando, como se à mulher só coubesse realmente o papel de se
sujeitar ao que lhe foi imposto, sem ter a menor possibilidade de levantar a sua
voz.
Aos
homens também são impostas muitas restrições. Durante o período em que o talibã
ocupou o poder, ouvir música, assistir a filmes ou TV era proibido, pessoas que
tivessem nomes não islâmicos deveriam mudar seus nomes. Os jovens deveriam
estar sempre com os cabelos cortados e os homens com barbas longas. Todos
deveriam participar dos momentos de oração nas mesquitas cinco vezes por dia.
Criar
pombos ou brincar com pássaros era punido com prisão. Soltar pipa era proibido.
A leitura era censurada e quem fosse flagrado com um livro proibido seria
executado. Seguir qualquer outra religião que não fosse o Islã também era
motivo para execução. Acessar a internet era totalmente proibido. O
fundamentalismo era a única realidade vivida no Afeganistão e se opor a esse
poder era decretar uma sentença de morte.
Diante
desse cenário tão vivo ainda na lembrança dos afegãos, pensar em passar
novamente por esse regime de terror fez com que o medo e o desejo de deixar o
país se espalhassem freneticamente. Principalmente mulheres e crianças temem
seguir vivendo em um país no qual não existe a menor possibilidade de exercer a
sua liberdade e viver sem uma longa lista de proibições e abusos.
Os
pedidos de socorro se espalham pelas redes sociais, ativistas dos direitos
humanos pedem uma mobilização para que não haja retrocessos, mulheres imploram
para que os direitos conquistados a duras penas não se extingam em meio ao
extremismo e ao fanatismo religioso que moldam todas as ações de quem agora
reassume o poder.
Fonte: Adriana de Paula/Iconografia da História
Referências:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58222236
https://revistahegemonia.emnuvens.com.br/hegemonia/article/view/46/28
https://core.ac.uk/download/pdf/82225532.pdf
https://periodicos.fclar.unesp.br/perspectivas/article/view/6617/4864
Blog do Paixão