Moradora de Sorocaba (SP), Maria Célia da Cunha Oliveira, de 52 anos, morreu de Covid-19 após ficar 30 dias internada em tratamento com a doença. No período em que esteve no hospital, antes de ser intubada, ela começou um diário com relatos da rotina da enfermaria e mensagens para os familiares.
Por Pâmela Ramos, g1 Sorocaba e Jundiaí
Em meio ao vai e vem de passos nos corredores do hospital, Maria Célia da Cunha Oliveira, de 52 anos, observava os detalhes mais sutis do ambiente e escrevia as memórias em um caderno enquanto esteve internada com Covid-19. Antes de não resistir à doença, ela chegou a deixar um bilhete para uma técnica de enfermagem e um diário com mensagens para a família.
Maria Célia lutou contra o coronavírus durante 30 dias, em Sorocaba (SP). Ela chegou a ser intubada, mas não resistiu à doença e morreu no dia 28 de junho deste ano, se tornando parte das 600 mil vítimas da Covid-19 no Brasil.
O bilhete deixado por Maria para uma técnica de enfermagem que cuidou dela na UPA do Éden, em Sorocaba, foi enviado pela filha da paciente, Mariane Alves, por meio de um aplicativo de mensagem.
"Rose, querida. Você não faz a menor ideia do quanto me segura quando estou no seu plantão e seu pão o melhor do mundo. Te adoro. Deus te abençoe sempre. Me desculpe ter te pedido tanto, você já faz parte da minha família. Te adoro. Deus abençoe você e sua linda família", escreveu Maria.
Ao g1, a funcionária Roseli Pires Gonçalves, de 52 anos, contou que se emocionou ao saber do recado (veja abaixo).
"Ela falava que escrevia para se distrair. Era tanta correria que a gente nem via. Eu só soube depois do bilhetinho, mas quando li fiquei muito feliz. Eu até chorei naquele dia, porque não ficou em vão o que a gente fez. Vou guardar pra sempre, não tem como esquecer".
Roseli trabalha na área da enfermagem há mais de 15 anos e relata que a pandemia foi o período mais difícil de sua carreira. Ela chegou a pensar em desistir algumas vezes, mas o amor pela profissão e pelos pacientes a motivou a continuar.
Ela lembra que Maria Célia foi internada junto com a irmã dela, Rosa Cunha Domingues, no mesmo quarto, e que sempre conversavam sobre a família e as saudades que sentiam de casa.
"Quando a Rosa foi embora, a irmã dela e eu vibramos. Ela ficou nervosa de ter que ficar sozinha, aí ela voltou para emergência e foi intubada. Foi muito rápido. Eu me apeguei muito com ela, estava muito assustada com as coisas, com medo", relata.
Segundo Roseli, em certo dia, as irmãs estavam com vontade de tomar café e comer pão com margarina. Por causa da falta de ar, elas não podiam tomar café, mas a técnica conversou com os médicos para realizar o pedido e eles não se opuseram.
"Eu sabia que não podia, mas, mesmo assim, peguei meu lanche que tinha levado para mim e café fresquinho, pouca coisa, e entreguei para elas. As duas ficaram muito agradecidas."
Um dia antes de Maria Célia ser intubada, Roseli ajudou ela a fazer uma chamada de vídeo para os filhos e aquele foi o último momento em que ela conversou com eles.
"Eu só soube do bilhete uma semana depois, mais ou menos. Foi uma das pacientes que mais me marcou. A enfermagem é uma missão. Tem médico que fala que a gente está aqui para servir e é verdade. Mesmo assim, tem que se colocar ao lado de paciente. Vou levar ela para a vida."
Diário encontrado
Filha encontra diário da mãe escrito durante internação em hospital de Sorocaba — Foto: Arquivo Pessoal
A filha de Maria Célia, Mariane Alves, de 30 anos, contou ao g1 que a mãe permaneceu 15 dias na UPA do Éden. Ela foi intubada no dia 12 de junho e depois foi transferida para a UTI da Santa Casa de Sorocaba.
Um dia antes de a mãe ser intubada, a filha relata que teve um sonho que a ajudou a encontrar o diário.
"Eu sonhei com ela e no sonho eu vi ela, perfeitamente. Ela me disse que havia escrito para mim e que eu precisava encontrar. Eu fui na UPA do Éden, mas não entregaram nada. Fui à Santa Casa, mas só entregaram uma coberta dela. Eu mandava cartas para ela todos os dias e isso não voltou pra mim."
O caderno apenas chegou às mãos de Mariane após a morte da mãe. Ela tentou recuperar o pertence duas vezes e, no dia 29 de de junho, disse aos funcionários do hospital que não iria sair do local se não entregassem as cartas e o diário que a mãe havia deixado.
"Depois, realmente, veio escrito assim: 'Para Mariane'. Foi o que me confortou porque eu estava arrasada e ainda estou. A gente se confortou por ver o quão forte ela foi. Minha mãe nunca gostou de coroa de flores, ela disse que era para comprar pizza no velório, que pizza ela gostava muito. Ela foi tão forte nas palavras."
Segundo Mariane, na primeira vez que ela fez videochamada com a mãe, ela prometeu que mandaria cartas todos os dias, que foi um pedido feito pela mãe. Ao todo, a filha enviou 17 cartas, fotos dos filhos, desenhos, tudo para acalentar o coração diante da saudade que a distância provocava.
"Minha mãe era muito fechada, ela nunca escreveu, até em rede social nunca teve hábito de escrever. Ela mais falava, mandava áudio, mas escrever era raro e escrever dessa maneira que ela escreveu. Se eu não tivesse sonhado eu nem iria imaginar."
'Vida nunca mais será a mesma'
Entre as paredes do hospital e o som dos respiradores a todo instante, Maria Célia depositava no diário os sentimentos que pairavam sobre o ambiente e também no coração. Em algumas vezes os relatos eram sobre a rotina, em outras eram orações.
"Estou escrevendo agora cedo, a respiração está boa, estou conseguindo porque tem horas que nem isso consigo fazer, mas Deus é maior e vamos vencer esse mal. Meus amigos de quarto, quase todos intubados, só escuto o som do respirador e um monte de aparelhos. Essa semana vai ser revigorante, vou vencer. Cada vez que lembro o quanto é difícil respirar, lembro que usar duas máscaras para ir ao mercado não é nada", escreveu Maria Célia no diário.
Mariane gravou um vídeo fazendo a leitura de alguns trechos do diário e enviou aos familiares.
Foram 15 páginas escritas por Maria Célia, no bloco de notas que foi entregue por Mariane. Cada capítulo começava com a data em que estava escrevendo, seguido pelo nome do funcionário do hospital que estava de plantão naquele período.
"A noite é difícil com os extubantes, só Deus, coitados dos profissionais da saúde! Não é fácil a noite aqui. Enquanto a cidade dorme, eles lutam para salvar vidas, sem muito recurso. E nós, no meio de tudo isso, então, valorizamos a noite de descanso. Obrigada senhor porque o sol já vai nascer e com ele, a esperança de dias melhores", escreveu.
Em meio aos relatos, Maria Célia aconselha os filhos a viverem intensamente e cuidarem da família. Ela planejava como deveria ser o primeiro aniversário da neta, Helena, e falava da saudade do neto Lucas, ou "Luquinhas", como ela o chamava.
"Superando minhas ansiedades e aprendendo a respirar. Obrigada senhor, meu Deus e meu pai Jesus, e todos os anjos e santos por mais esse aprendizado. A vida nunca mais será a mesma, vou sempre valorizar as coisas simples que vêm de graça e nem percebemos o quanto é bom e necessário. Obrigada senhor, obrigada meu pai."
Internação
Segundo Mariane, outras três pessoas da família morreram de Covid-19 durante a pandemia. Inclusive, a prima dela, Daniele Priscila Batista, de 32 anos, que foi intubada com a doença um dia depois da morte de Maria Célia.
Além disso, uma das pessoas da família que não resistiu à doença em outubro do ano passado foi a irmã de Maria Célia, Aparecida Marcelino da Cunha. Ambas eram muito próximas uma da outra.
Na última vídeochamada que Maria Célia fez com a filha, ela chegou a retirar a máscara de oxigênio e disse para Mariane que ela ficar muito mais forte do que já era. No dia seguinte, ela foi intubada com a doença.
"Foram dias terríveis. É difícil a gente esquecer. Ficamos esperando o telefone para saber o boletim médico. Do outro lado da linha, só tem a voz do médico para dizer o que está acontecendo. É uma dor muito difícil. Ficamos totalmente debilitados, apenas orando para Deus para que isso passe."
Blog do Paixão