- Geena Truman
- BBC Travel
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Uma enorme cidade
subterrânea, que permaneceu ativa por milhares de anos quase sem interrupções,
repousa a mais de 85 metros de profundidade, abaixo das famosas "chaminés
de fadas" da Capadócia, na Turquia.
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ajadas de vento
violentas erguem o solo no ar enquanto passeio pelo Vale do Amor da Capadócia.
Colinas com tons de amarelo e rosa tingem o panorama marcado por profundos
cânions vermelhos e formações rochosas que parecem grandes chaminés e surgem à
distância.
O local é seco,
quente e o vento é forte. Mas a beleza é avassaladora.
Milênios atrás,
este volátil ambiente vulcânico esculpiu naturalmente os pináculos à minha
volta, até que eles atingissem seus formatos cônicos parecidos com cogumelos,
que agora atraem milhões de visitantes para caminhar ou andar de balão nesta
região central da Anatólia.
Mas, abaixo da
frágil superfície da Capadócia, encontra-se outra maravilha, também de
proporções gigantescas, que passou séculos escondida: uma cidade subterrânea
que podia abrigar por meses até 20 mil habitantes de cada vez.
A antiga cidade de
Elengubu, hoje conhecida como Derinkuyu, fica a mais de 85 metros abaixo da
superfície e inclui 18 níveis de túneis. É a maior cidade subterrânea escavada
do mundo.
Ela foi habitada
de forma quase constante por milhares de anos, trocando de mãos, dos frígios
para os persas e depois para os cristãos, na Era Bizantina. Até que foi finalmente
abandonada nos anos 1920 pelos gregos capadócios, que fugiram em massa para a
Grécia após a derrota na Guerra Greco-Turca de 1919-1922.
Os salões da
cidade espalham-se por centenas de quilômetros embaixo da terra, mas
acredita-se que mais de 200 pequenas cidades subterrâneas separadas, que também
foram descobertas na região, possam estar conectadas a esses túneis, criando
uma enorme rede subterrânea.
Aves
arqueólogas
Segundo Suleman,
meu guia, Derinkuyu foi "redescoberta" apenas em 1963 por um morador
local anônimo que estava perdendo suas galinhas. Enquanto ele reformava sua
casa, as aves desapareciam em uma pequena fenda criada durante a reforma e
nunca mais eram vistas.
O cidadão turco
decidiu investigar o que estava acontecendo e, depois de cavar um pouco, ele
desenterrou uma passagem escura. Foi a primeira de mais de 600 entradas para a
cidade subterrânea de Derinkuyu que foram encontradas em casas particulares.
As escavações
então começaram imediatamente. Elas revelaram uma emaranhada rede de moradias
subterrâneas, espaços de armazenagem de alimentos secos, estábulos, escolas,
vinícolas e até uma capela. Uma civilização inteira se escondia com segurança
embaixo da terra.
A cidade das
cavernas logo atraiu milhares de turistas turcos menos claustrofóbicos, até
que, em 1985, a região foi declarada Patrimônio Mundial da Unesco.
Os
responsáveis pela construção
A data exata da construção da cidade segue indefinida. Mas a referência mais antiga a Derinkuyu parece estar no livro Anábase, do historiador grego Xenofonte de Atenas, escrito em cerca de 370 a.C.
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Legenda da foto,
Derinkuyu é
composta por 18 níveis de túneis que descem a mais de 85 metros abaixo da
superfície
Nele, Xenofonte
menciona o povo anatólio, que morava em casas escavadas no subterrâneo da
Capadócia ou perto dela, e não nas cavernas mais populares ao longo dos
rochedos, bem conhecidas na região.
Segundo Andrea De
Giorgi, professor de estudos clássicos da Universidade do Estado da Flórida,
nos Estados Unidos, a Capadócia é excepcionalmente adequada para este tipo de
construção subterrânea, devido à falta de água no solo e às suas rochas
maleáveis, que podem ser facilmente moldadas.
"A
geomorfologia da região convida para escavar espaços subterrâneos", afirma
ele. O professor explica que o tufo - a rocha do local - teria sido escavado
com relativa facilidade, usando ferramentas simples, como pás e picaretas.
O mesmo material
piroclástico foi moldado naturalmente nas chaminés de fadas e nos pináculos que
brotam da terra acima do solo.
Mas definir quem
construiu Derinkuyu permanece um mistério, ao menos parcialmente.
As bases da
extensa rede de cavernas subterrâneas costumam ser atribuídas aos hititas,
"que podem ter escavado os primeiros níveis na rocha quando foram atacados
pelos frígios, perto do ano 1200 a.C.", segundo A. Bertini, especialista
em moradias em cavernas no Mediterrâneo, no seu estudo sobre a arquitetura
regional em cavernas.
Fortalecendo esta
hipótese, foram encontrados artefatos hititas no interior de Derinkuyu.
Mas a maior parte
da cidade provavelmente foi construída pelos frígios, que eram arquitetos muito
habilidosos na Idade do Ferro e tinham os meios para construir instalações
subterrâneas.
"Os frígios
formaram um dos impérios mais importantes da antiga Anatólia", ensina De
Giorgi. "Eles se desenvolveram ao longo da Anatólia ocidental por volta do
final do primeiro milênio a.C. e costumavam transformar formações rochosas em
monumentos e criar notáveis fachadas cortadas na rocha. Seu misterioso reino
incluía a maior parte da Anatólia ocidental e central, incluindo a região de
Derinkuyu."
No início, Derinkuyu provavelmente era usada para armazenar mercadorias, mas seu propósito principal era servir de abrigo temporário contra invasores estrangeiros. A Capadócia sofreu um fluxo constante de impérios dominadores ao longo dos séculos.
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"A sucessão
de impérios e seu impacto sobre o panorama da Anatólia explicam o motivo de
recorrer a abrigos subterrâneos como Derinkuyu", segundo De Giorgi.
"Mas foi na época dos ataques islâmicos [ao Império Bizantino,
predominantemente cristão, no século 7°] que essas moradias foram mais
utilizadas."
Cidade
planejada
Embora os frígios,
persas e seljúcidas, entre outros povos, tenham habitado a região e se
expandido pela cidade subterrânea nos séculos seguintes, a população de
Derinkuyu atingiu seu maior nível durante a Era Bizantina, com cerca de 20 mil
pessoas morando embaixo da terra.
Hoje, você pode
sentir a realidade angustiante da vida subterrânea por apenas 60 liras turcas
(cerca de US$ 3,30 ou R$ 17). Enquanto descia pelos túneis estreitos e mofados,
com suas paredes escurecidas pela fuligem acumulada por séculos de iluminação
com tochas, comecei a perceber a estranha sensação de claustrofobia.
Mas a
engenhosidade dos diversos impérios que se expandiram em Derinkuyu logo se
tornou evidente. Corredores curtos e intencionalmente estreitos forçam os
visitantes a caminhar inclinados e em fila indiana - claramente, uma posição
incômoda para os intrusos - pelo labirinto de corredores e moradias.
Levemente
iluminadas pelas lâmpadas, rochas circulares de meia tonelada bloqueavam as
portas entre cada um dos 18 níveis e somente podiam ser movidas pelo lado de
dentro. Pequenos orifícios perfeitamente redondos no centro dessas portas
imensas permitiam que os moradores atacassem os invasores com lanças, mantendo
a segurança do perímetro.
"A vida no
subterrâneo provavelmente era muito difícil", afirma Suleman, meu guia.
"Os moradores descansavam em jarros de argila vedados, viviam à luz de
tochas e descartavam os cadáveres em áreas [designadas]."
Cada nível da
cidade era cuidadosamente projetado para fins específicos. Os animais de
criação viviam em estábulos mais perto da superfície, para reduzir o cheiro e
os gases tóxicos, oferecendo ainda uma camada viva de isolamento térmico para
os meses frios.
As camadas mais
internas da cidade continham moradias, adegas, escolas e espaços para reuniões.
Uma escola missionária bizantina tradicional, completa com cômodos adjacentes
para estudo, foi identificada pelos seus tetos característicos em forma de
abóbada e encontra-se no segundo piso.
Segundo De Giorgi,
"as evidências da produção de vinho baseiam-se na existência de adegas,
tanques de pressão e ânforas [jarras altas, com duas alças e gargalo
estreito]." Esses cômodos especializados indicam que os moradores de
Derinkuyu estavam preparados para passar meses abaixo da superfície.
Mas o mais impressionante sobre Derinkuyu é o complexo sistema de ventilação e o poço protegido, que teriam fornecido ar fresco e água limpa para toda a cidade. De fato, acredita-se que a cidade tenha sido construída inicialmente em volta destes dois elementos essenciais.
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Legenda da foto,
Derinkuyu tinha
muitas entradas e mais de 600 delas foram encontradas em casas particulares
Mais de 50 colunas
de ventilação permitiam o fluxo de ar natural entre as muitas moradias e
corredores de Derinkuyu. Elas eram distribuídas por toda a cidade, para evitar
um ataque ao fornecimento de ar, que poderia ser fatal.
Já o poço tinha
mais de 55 metros de profundidade e podia ser facilmente isolado de baixo pelos
moradores da cidade.
A construção de
Derinkuyu realmente foi genial, mas ela não é a única cidade subterrânea da
Capadócia. Com 445 km², ela é apenas a maior das pelo menos 200 cidades subterrâneas
encontradas abaixo das planícies da Anatólia.
Mais de 40 dessas
cidades menores têm três ou mais níveis abaixo da superfície. Muitas são
conectadas a Derinkuyu por túneis cuidadosamente escavados, alguns com até 9 km
de extensão. Todos eles são equipados com saídas de emergência, que oferecem
retorno imediato à superfície em caso de necessidade.
Mas nem todos os
segredos subterrâneos da Capadócia foram escavados. Em 2014, uma nova cidade
subterrânea, talvez ainda maior, foi descoberta na região de Nevsehir, também
na Anatólia central.
A fuga dos gregos
capadócios em 1923 pôs fim à história viva de Derinkuyu. Mais de 2 mil anos
depois da provável criação da cidade, ela foi abandonada pela última vez e sua
existência foi esquecida pelo mundo moderno - até que as galinhas errantes da
Capadócia fizeram a cidade subterrânea brilhar mais uma vez.
Leia a versão original desta
reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-62799096
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