- Thais Carrança - @tcarran
- Da BBC News Brasil em São Paulo
CRÉDITO,REPRODUÇÃO O GLOBO/ACERVO DIGITAL
Legenda da foto,
Benefício completa
60 anos em 2022 e foi conquistado sob protesto de empresários e do mercado
financeiro
Em 1962, o Brasil conquistou o bicampeonato na Copa
do Mundo. O título veio num 3 a 1 de virada contra a Tchecoslováquia, com
Garrincha jogando com febre de 38 graus e o time desfalcado de seu principal
craque — Pelé havia se lesionado ainda no segundo jogo.
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as pouca gente conhece a história de uma outra
conquista daquele ano: a do 13º salário, benefício garantido em lei sancionada
pelo presidente João Goulart em 13 de julho de 1962.
"O 13º salário é um desses casos de
reivindicação surgida no chão da fábrica, legitimada nas relações costumeiras
entre patrões e empregados em algumas firmas, transformada em lei às custas de
greves, demissões, abaixo assinados, prisões e cuja memória é depois ofuscada
pelo brilho da lei que supõe-se, como toda lei, deve ter sido iniciativa de
algum presidente, deputado ou senador", escreve o historiador Murilo Leal
Pereira Neto.
Conheça a história de como, num ano de inflação em
alta e embates aguerridos entre direita e esquerda na política, trabalhadores
foram à greve geral 18 dias após o bicampeonato mundial e conquistaram o
benefício que deve injetar R$ 250 bilhões na economia este ano.
Tudo isso aconteceu sob protestos dos empresários e
do mercado financeiro da época, conforme registrou o jornal O Globo, que no dia
26 de abril de 1962 estampou na sua manchete: "Considerado desastroso para
o País um 13º mês de salário".
O desastre não veio e hoje 85,5 milhões são
beneficiados com o rendimento adicional, segundo o Dieese (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).
Origem do abono de
Natal e início da luta no Brasil
A gratificação de Natal é uma tradição que tem
origem em países de maioria cristã, onde alguns patrões tinham o costume de
presentar seus funcionários com cestas de alimentos na época das festas de fim
de ano.
Essa doação antes voluntária se tornou obrigatória
na Itália em 1937, durante o regime fascista de Benito Mussolini, quando o
acordo coletivo de trabalho nacional passou a prever um mês adicional de
salário para os empregados das fábricas.
Em 1946, o benefício seria estendido às demais
categorias de trabalhadores italianos, sendo consolidado através de decreto
presidencial em 1960.
No Brasil, os primeiros registros de greves e
demandas pelo abono de Natal são de 1921, na Cia. Paulista de Aniagem e na
indústria Mariângela, ambas empresas do setor têxtil.
Sob inspiração da Carta del Lavoro (1927)
da Itália fascista, o Brasil aprovaria em 1943 sua Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), mas dela não constava o 13º salário.
Naquele mesmo ano, no entanto, o abono de Natal foi
conquistado pelos trabalhadores da fabricante de pneus Pirelli, o que levaria a
uma greve geral no ano seguinte em Santo André (SP) pelo pagamento do
benefício.
"Na onda de greves que se alastrou de dezembro de 1945 a março de 1946, a luta pelo prêmio de final de ano era a principal reivindicação na maioria delas, envolvendo categorias como ferroviários da Sorocabana, trabalhadores da Light, tecelões, metalúrgicos, gráficos e químicos em São Paulo", lembra Pereira Neto, em sua tese de doutorado A reinvenção do trabalhismo no 'vulcão do inferno': um estudo sobre metalúrgicos e têxteis de São Paulo.
CRÉDITO,ACERVO DO MUSEU FERROVIÁRIO REGIONAL DE BAURU
Legenda da foto,
Ferroviários de Bauru (SP) em greve pela
gratificação natalina
"Os patrões ganhavam aquele dinheiro no fim do
ano, tudo, chegava e dava um panetone e dava um vinho ruim pro cara. Então nós
mostramos a realidade: o trabalhador também precisava passar um Natal
melhor", conta João Miguel Alonso, líder metalúrgico, em depoimento
recuperado por Pereira Neto, sobre os argumentos usados com os patrões à época.
"Nós sempre levantávamos esse problema desde
antes: o trabalhador, no fim de ano, precisava comprar um sapato melhor pro
filho, precisava comprar um vestido pra mulher. 'Oh, meu deus do céu, vocês têm
que entender, vocês não vão dar a empresa para eles, vocês vão dar apenas o
essencial para esse coitado viver, passar um Natal melhor com a família'."
Benefício pago em
laranjas
Larissa Rosa Corrêa, professora do Departamento de
História da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro),
observa que a luta dos trabalhadores brasileiros por uma gratificação de Natal
não começou já conquistando um salário extra logo de cara.
No artigo Abono de Natal: gorjeta, prêmio
ou direito? Trabalhadores têxteis e a justiça do trabalho, ela resgata o
relato do líder sindicalista Antonio Chamorro. Ele conta que, quando era operário
numa fábrica têxtil em 1946, a primeira vez que os trabalhadores reivindicaram
ao patrão uma gratificação de fim de ano, receberam em troca sacos de laranja.
No ano seguinte, pediram cortes de tecido no lugar
das laranjas, mas receberam panos considerados de má qualidade e muito quentes
para o final de ano. No ano seguinte, os trabalhadores reivindicaram um tecido
mais leve e adequado ao verão.
"Aí ele [o patrão] cedeu. Foi uma outra vitória nossa", contou Chamorro, em depoimento ao Centro de Memória Sindical, recuperado pela historiadora.
CRÉDITO,REPRODUÇÃO VOZ OPERÁRIA/ACERVO BIBLIOTECA NACIONAL
Legenda da foto,
O líder sindical têxtil Antonio Chamorro em recorte
do jornal Voz Operária (RJ), de 1954
"É interessante observar como os trabalhadores
organizados aproveitavam todas as brechas deixadas pelos patrões", observa
a professora da PUC-Rio, no estudo. "No caso relatado, o empregador cedeu
uma vez; na próxima ele não teve argumentos para não fornecer o benefício
novamente, e, desta vez, a gratificação teria que ser melhor, e assim por
diante."
A luta pelo abono de Natal atravessaria a década de
1950 e chegaria fortalecida nos anos 1960, em meio ao avanço da inflação,
empoderamento dos sindicatos e contexto político inflamado pelas disputas
ideológicas da Guerra Fria.
O Brasil dos anos
1960
Naquele início dos anos 1960, uma série de fatores
contribuíam para uma crise econômica profunda. Entre eles: um endividamento
externo crescente, herdado das políticas desenvolvimentistas do governo
Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados déficits comerciais; e um aumento da
inflação que se agravava desde o final dos anos 1950.
Em 1960, a inflação acumulada foi de 30,5%; no ano seguinte, de 47,8%. Em 1962, ano da conquista da lei do 13º salário, a alta de preços chegaria a 51,6%.
"É um momento de alta inflação e os
trabalhadores sentiam que o custo de vida vinha aumentando drasticamente",
diz Larissa Rosa Corrêa, em entrevista à BBC News Brasil.
"É um Brasil que estava enfrentando a dívida
externa, todas as dívidas provocadas pelo governo Juscelino, com a construção
de Brasília", lembra a professora da PUC-Rio.
"Ao mesmo tempo, a indústria nacional passava
por um processo de expansão. Então, de um lado os trabalhadores estavam
perdendo poder de compra, lutando pela melhoria do custo de vida e, do outro,
observavam o lucro das empresas. Embora, no discurso patronal, os empregadores
reclamassem sistematicamente da dificuldade de sobrevivência do empresariado
brasileiro, sempre argumentando incapacidade financeira."
Na conjuntura internacional, o mundo estava
bipolarizado entre Estados Unidos e União Soviética, com um anticomunismo
crescente que, no Brasil, se desdobraria no golpe militar de 1964, observa a
historiadora.
"Por outro lado, temos a ascensão do movimento
sindical e dos movimentos sociais, tanto no campo como no espaço urbano, com
sindicalização crescente e muitas greves que marcaram esse período", diz
Corrêa, citando como exemplos a Greve dos 300 mil de 1953, a Greve dos 400 mil
em 1957 e a Greve dos 700 mil em 1963.
É nesse contexto que João Goulart chega à
presidência em 1961, sucedendo Jânio Quadros, que renunciou após apenas sete
meses. Jango assume, porém, destituído de parte dos poderes presidenciais, sob
um regime parlamentarista, com Tancredo Neves como primeiro-ministro.
"O contexto aí era de embate entre um governo
reformista nacionalista e as forças da UDN [União Democrática Nacional, partido
conservador], da direita, que resistiam aos projetos das reformas de
base", lembra Murilo Leal Pereira Neto, atualmente professor da Unifesp
(Universidade Federal de São Paulo).
Pressionado pelo conservadorismo, Jango fortaleceu o sindicalismo e os movimentos sociais como base de apoio para seu projeto reformista, o que se configurou num ambiente propício às conquistas trabalhistas.
Legenda da foto,
Mobilização pelas reformas de base teve sempre
forte vigilância das Forças Armadas
A greve pelo abono
de Natal de 1961
Em 1951, um projeto do deputado Muniz Falcão
(PSP-AL) sobre a gratificação natalina foi considerado inconstitucional pela
Comissão de Constituição da Câmara, que avaliou que a Constituição Federal não
permitiria "a interferência do Estado nos encargos financeiros de
particulares".
Em 1959, um novo projeto sobre o tema foi
apresentado pelo deputado Aarão Seteinbruch (PTB-RJ), já num cenário de acúmulo
de lutas por esse direito no chão de fábrica. Assim, já a partir de 1960, a
mobilização se concentra em pressionar o Congresso pela aprovação da lei.
Em 13 de dezembro de 1961, os trabalhadores vão à
greve pelo abono de Natal, com a mobilização puxada pelos sindicatos dos
metalúrgicos e dos têxteis de São Paulo.
"A greve foi um resultado de um processo de
luta que durou cerca de oito anos. Durante todos os anos passados, o abono de
Natal tinha constado das listas de reivindicações nos dissídios coletivos e
sido pauta nas assembleias dos sindicatos", escreve a professora da
PUC-Rio.
"Os trabalhadores tinham consciência de que a
gratificação jamais seria fruto das negociações com os patrões e muito menos de
uma decisão da Justiça do Trabalho", aponta Corrêa, citando avaliação de
Afonso Delellis, ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo,
cassado pelo golpe militar de 1964.
A greve foi duramente reprimida, com ao menos 1.300 presos, 50 sindicalistas detidos e o Sindicato dos Metalúrgicos cercado e mantido incomunicável pela polícia.
Legenda da foto,
Cerco policial ao Sindicato dos Metalúrgicos na
greve deflagrada por metalúrgicos e têxteis em São Paulo para lutar pelo 13º
salário
Já no dia 12, o ministro da Justiça, Alfredo
Nasser, declarou o movimento grevista ilegal. A Câmara dos Deputados, que havia
aprovado o projeto em primeira votação, entrou em recesso, alegando estar sendo
coagida e adiando a segunda votação, relata Pereira Neto.
Após a greve, a Fiesp recomendou que seus membros
pagassem voluntariamente o abono, em um boletim de dezembro de 1961, mas não
admitia a aprovação do projeto de lei, acusando o governo de demagogia por
apoiá-lo, lembra o professor da Unifesp.
O projeto só viria a ser aprovado em segundo turno
na Câmara em 24 de abril de 1962 e no Senado, em 27 de junho daquele ano. Mas ainda
faltava a sanção presidencial.
E então veio a greve geral de 5 de julho de 1962.
A greve geral de
1962 e a conquista do 13º salário
Em meio à pressão crescente, o primeiro-ministro
Tancredo Neves renuncia e João Goulart indica San Tiago Dantas para substituí-lo.
Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua
indicação foi vetada pelos conservadores.
Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convoca a greve geral de 5 de julho.
CRÉDITO,MEMORIAL DA DEMOCRACIA
Legenda da foto,
Manifestação de bancários grevistas no Rio de
Janeiro, em 1961
"A greve, deflagrada 18 dias após o Brasil
conquistar o bicampeonato mundial de futebol — o que desmente análises
rasteiras que vinculam os sucessos no futebol a uma 'apatia sócio-política' da
população —, afetou sobretudo empresas estatais ou sob controle do governo,
embora o setor privado não tenha passado incólume", escreve Rubens Goyatá
Campante, doutor em sociologia pela UFMG e pesquisador do Núcleo de Pesquisas
da Escola Judicial do TRT-3ª Região, no artigo O 13º veio de uma greve
geral.
No Rio de Janeiro, a greve teria sérios impactos.
Diante da paralisação dos trens, em meio ao avanço da fome e à crise econômica,
a Baixada Fluminense explodiu em uma onda de saques, que deixaria 42 mortos, 700
feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos.
"Enquanto a greve se desenrolava no Rio de
Janeiro, e em outras unidades da Federação, uma comissão de líderes do comando
nacional de greve se encaminhou para Brasília, com o objetivo de manter
conversações com João Goulart sobre a crise política nacional e pressionar
pelas reivindicações da greve, ocasião em que o presidente também se
comprometeu a assinar a lei do 13º salário, que fora aprovada no Senado alguns
dias antes (em 27 de junho)", relata o pesquisador Demian Bezerra de Melo,
na tese de doutorado Crise orgânica e ação política da classe
trabalhadora brasileira: a primeira greve geral nacional (5 de julho de 1962).
Goulart cumpriria o compromisso alguns dias depois, em 13 de julho, quando foi sancionada a Lei 4.090 de 1962.
CRÉDITO,REPRODUÇÃO O GLOBO/ACERVO DIGITAL
Legenda da foto,
'Sancionado o projeto do 13º mês de salário',
noticiava o jornal O Globo em 14 de julho de 1962
Inicialmente, a lei só dava direito ao 13º aos
empregados urbanos do setor privado. Trabalhadores rurais e servidores públicos
não eram contemplados, lembra o Dieese.
Em 1963, João Goulart estende o direito aos
aposentados. E em 1965, já em plena ditadura, lei sancionada pelo presidente
Castello Branco estabelece o pagamento em duas parcelas, sendo a primeira entre
fevereiro e novembro, e a segunda até 20 de dezembro de cada ano.
A Constituição de 1988 garante o 13º a todos os
trabalhadores urbanos e rurais, direito formalmente estendido aos servidores
públicos por meio da Emenda Constitucional 19 naquele mesmo ano.
"Para nós hoje, o processo de conquista do 13º
causa estranheza", avalia Larissa Corrêa, da PUC-Rio.
"Estamos vivendo um contexto de alta
precarização do trabalho e aquelas lutas dos anos 1960 parecem quase um outro
mundo para a gente, haja visto a reforma trabalhista e todo o processo de
terceirização das relações de trabalho. Mas é curioso também que, na reforma
trabalhista de 2017, a lei do 13º permaneceu intocada. Isso diz muito sobre o
patrimônio das leis trabalhistas e o que elas representam até hoje",
acrescenta a historiadora.
Os aprendizados da
luta pelo 13º salário
Para Pereira Neto, da Unifesp, o principal
aprendizado da conquista do 13º salário é que as leis trabalhistas "não
nascem no Congresso".
"Temos uma ideia no Brasil de que as
conquistas trabalhistas não são conquistas, são um favor. Há um modelo
interpretativo de que o Estado ou a classe dominante fazem concessões, ao invés
de reconhecer direitos", diz o pesquisador.
"O que a luta pelo 13º mostra é que essas
pautas até podem começar como um favor [das empresas aos funcionários], mas
elas se constituem como um direito no percurso da experiência. E esse direito,
antes de se transformar em lei, vai sendo legitimado na sociedade. Então existe
uma construção política do direito", avalia o professor da Unifesp.
Para Larissa Corrêa, da PUC-Rio, a estratégia dos
sindicatos na luta pelo 13º também deixa um aprendizado.
"O movimento sindical naquele contexto atuava
nas duas frentes: tanto na parte jurídica, parlamentar, quanto nas greves e nos
movimentos de rua. Eles não apostavam no projeto de lei sem deixar de fazer
greve. Isso era uma estratégia muito importante e, de fato, foi bem
sucedida", avalia a historiadora.
Para Miguel Torres, atual presidente do Sindicato
dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes, da CNTM (Confederação Nacional
dos Trabalhadores Metalúrgicos) e da Força Sindical, a conquista do 13º salário
é uma referência para a luta dos trabalhadores até hoje.
"Essa conquista ensina que temos sempre que
estar lutando e que, se tem organização suficiente, a possiblidade de êxito é
muito maior", diz Torres.
"Para os trabalhadores, a luta faz a lei. Foi
o que aconteceu em 1962 — a luta fez a lei, que vigora até hoje."
Blog do Paixão