- Mariana Alvim
- Da BBC News Brasil em São
Paulo
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ONGs pedem a criação de um fundo
de ao menos US$ 440 milhões para compensar imigrantes que foram vítimas de
abusos e fatalidades nos trabalhos da Copa do Mundo no Catar
Sete federações de
futebol de países classificados para a Copa do Mundo já manifestaram apoio à
proposta de um fundo de compensação para trabalhadores imigrantes que morreram
ou foram vítimas de abusos nos preparativos do evento no Catar — e nenhuma das
federações é da América Latina.
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fundo, idealizado por várias ONGs internacionais, recebeu a adesão das federações dos Estados Unidos e de seis países europeus (Bélgica, França, Inglaterra, Alemanha, Holanda e País de Gales).
O fundo proposto
pode chegar a ao menos US$ 440 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões), o equivalente
à soma de todos os prêmios a serem dados às seleções competidoras da Copa, e
seria direcionado para trabalhadores que sofreram abusos aos seus direitos ou
aos familiares daqueles que morreram nos preparativos do evento.
ONGs como a Human
Rights Watch (HRW), Anistia Internacional e FairSquare cobram a Federação
Internacional de Futebol (Fifa) e o governo do Catar pelo financiamento do fundo.
Nenhum dos dois concordou até agora com a proposta das ONGs, mas representantes
da Fifa já afirmaram que a entidade está estudando formas de compensação para
trabalhadores imigrantes que atuaram na Copa.
Segundo o
escritório da ONG HRW no Brasil, uma carta pedindo apoio à iniciativa foi
enviada à Confederação Brasileira de Futebol (CBF) em setembro deste ano e
nunca foi respondida.
"O que a gente tem visto na América Latina é um silêncio vergonhoso em relação ao que está em jogo nessa Copa do Catar", diz Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil.
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'O que a gente tem visto na
América Latina é um silêncio vergonhoso em relação ao que está em jogo nessa
Copa do Catar', diz Maria Laura Canineu, diretora da HRW no Brasil
"Nós latinos
somos muito apaixonados pelo futebol, mas temos uma dificuldade muito grande de
apontar violações graves a direitos humanos relacionadas ao esporte. Acho que a
gente tem uma cultura de separação das duas coisas."
"É uma pena,
pela responsabilidade e pelo peso que essas seleções têm ao redor do mundo,
especialmente em países de trabalhadores impactados pela construção
absolutamente abusiva da infraestrutura da Copa", completa Canineu,
afirmando que o Brasil tem muitos fãs na Índia, Bangladesh e Nepal, origem de
muitos dos imigrantes que buscaram trabalho no Catar, inclusive durante a
preparação para a Copa.
A diretora da HRW
afirma que, no Brasil, uma exceção à regra de "silêncio" que ronda a
CBF é uma fala do técnico da seleção masculina brasileira, Tite, que respondeu
à pergunta de um jornalista estrangeiro sobre o fundo durante entrevista
coletiva em setembro.
"Eu me
considero um humanista, acima de tudo", afirmou, na ocasião, o técnico
brasileiro. "Eu gostaria que tivesse sempre um sentido de igualdade social
maior, eu gostaria sempre que tivesse um respeito à mão de obra, que seja
respeitada e valorizada no seu devido tamanho."
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Em entrevista coletiva recente,
o técnico da seleção masculina brasileira, Tite, apoiou fundo de compensação
para trabalhadores da Copa
"Não só no
Catar. Lá em São Braz [em Caxias do Sul, RS], onde eu nasci, se for, eu vou
apoiar."
"Em relação
ao fundo também? Também", completou Tite.
Maria Laura
Canineu afirma que, apesar a importância da declaração, ela foi "bastante
individual" e deveria ser endossada pela CBF.
Desde quarta-feira
(16/11), a BBC News Brasil tenta contato com a assessoria de imprensa da CBF
via e-mails, telefone e WhatsApp. Até a publicação desta reportagem, as
solicitações de posicionamento não foram atendidas.
Números
divergentes sobre mortes
Anunciado em 2010
como país a sediar a Copa de 2022, o Catar ergueu uma grande infraestrutura
para o evento desde então, incluindo sete estádios, um novo aeroporto e novas
estradas.
Mas a mão-de-obra
empregada nesta expansão, como era de se esperar em um país que tem 85% da sua
pequena população composta por imigrantes, foi em grande parte de pessoas de
outras nacionalidades.
Dado um histórico
de acusações relativas aos direitos humanos e aos direitos dos trabalhadores, a
situação de imigrantes trabalhando nos preparativos da Copa foi acompanhada por
organizações internacionais.
Em fevereiro de
2021, o jornal britânico The Guardian publicou que pelo
menos 6.500 trabalhadores imigrantes da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e
Sri Lanka morreram no Catar entre 2010 e 2020.
O jornal chegou a
esse número com dados dos governos desses países, mas não foi possível
especificar quantas dessas vítimas estavam atuando nos preparativos para a
Copa.
O governo do Catar
afirma que esses dados podem incluir mortes naturais de trabalhadores e que as
fatalidades estão de acordo com o esperado para o tamanho e a para as
características demográficas do país, embora tenha escrito ao jornal britânico
que "toda vida perdida é uma tragédia e nenhum esforço é poupado na
tentativa de evitar qualquer morte" no país. Segundo o país árabe, entre
2014 e 2020 houve 37 mortes de trabalhadores que atuaram na construção de
estádios — mas 34 delas não estariam "relacionadas ao trabalho".
A Organização
Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, compilou dados e
afirmou que em 2020 houve pelo menos 50 mortes e 500 ferimentos graves relacionados
ao trabalho no Catar — não especificando os números referentes a projetos da
Copa. Cerca de dois terços dos ferimentos graves ligados ao trabalho no Catar e
três quartos dos ferimentos leves a moderados foram sofridos por imigrantes de
três países: Bangladesh, Índia and Nepal.
No relatório,
porém, a organização afirmou que há muitas lacunas e divergências nos dados,
fazendo com que "ainda não seja possível apresentar um número categórico
de lesões ocupacionais fatais" no país.
Mas além dos
números de vítimas, o Catar já é há anos monitorado pelas altas temperaturas
sob quais os trabalhadores atuam, pelas longas horas de trabalho, pela dedução
punitiva de salário e pela extrema subordinação de funcionários imigrantes.
Um símbolo disso
foi o sistema "kafala", que dava aos patrões controle quase total
sobre a movimentação e a situação de imigração dos trabalhadores. Embora a
kafala tenha sido oficialmente extinta, a Anistia Internacional afirma que
alguns resquícios permanecem.
Se sob este regime
os trabalhadores antes precisavam da permissão do patrão para deixar um
trabalho, hoje eles ainda enfrentam enormes burocracias quando decidem deixar
seus postos, segundo a ONG.
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Terreno em obras em área
fronteiriça do Catar, destinado a se tornar um estacionamento para torcedores
da Copa
Maria Laura
Canineu reconhece que, nos últimos anos, autoridades do Catar fizeram reformas
que ampliaram as garantias dos trabalhadores, mas afirma que tais mudanças
foram "insuficientes, restritas e tardias".
De acordo com a
diretora da HRW no Brasil, o Catar teria todas as condições e documentos para
mapear e compensar migrantes vitimados na preparação da Copa.
Além de pedir
apoio de um total de 32 federações de futebol, as ONGs que estão reivindicando
o fundo também procuraram 14 patrocinadores oficiais do evento. Apenas quatro
deles demonstraram apoio à proposta: AB InBev/Budweiser, Coca-Cola, Adidas e
McDonald's.
CBF
e Fifa pedem 'foco no futebol'
Em uma carta
enviada recentemente às seleções que vão competir, a Fifa pediu "foco no
futebol". A BBC Sport teve acesso ao
documento, o qual pede que o futebol não seja "puxado para toda batalha
ideológica ou política que exista".
"Sabemos que
o futebol não existe no vácuo e estamos igualmente conscientes de que há muitos
desafios e dificuldades de natureza política ao redor do mundo", diz o
texto.
"Na Fifa,
tentamos respeitar todas as opiniões e crenças, sem dar lições de moral ao
resto do mundo. Nenhum povo, cultura ou nação é 'melhor' do que qualquer
outro."
Dias depois da
carta da Fifa vir à tona, a CBF publicou um texto com título "Foco no
futebol", afirmando: "Concordamos com o pedido da Fifa para que o
principal foco da comunidade desportiva esteja no futebol antes e durante a
próxima Copa do Mundo."
Canineu afirma que
a ONG da qual é diretora não defende o boicote e nem que as pessoas deixem de
celebrar "um evento tão importante como a Copa do Mundo".
"A gente
entende que o esporte é um lugar propício para respeito, solidariedade,
fraternidade e principalmente o respeito à dignidade da pessoa humana. Então o
esporte é uma forma muito importante para promover direitos humanos, e por isso
que a gente vem desde o começo pressionando a Fifa para que ela incorpore
regras mais rígidas de inspeção dos países que vão receber a Copa",
afirma.
"O que a
gente está pedindo não é que a CBF pague o fundo com seus recursos, mas
pressione a Fifa, que vai lucrar com a Copa do Mundo, para que minimamente
dedique recursos para recompensa das famílias que tiveram seus entes queridos
mortos por conta da construção da infraestrutura da Copa."
"As federações (de futebol) também lucram com a Copa do Mundo, e a gente entende que assim como a Fifa, elas também têm obrigações com direitos humanos."
Blog do Paixão