Analisando letras · Por Érika Freire
Sucesso na voz de Gal Costa, a música Vaca Profana foi escrita por Caetano Veloso atendendo a um pedido da própria cantora. O fato de Caetano ser o autor explica um pouco sobre a profundidade poética da canção, né?
Pelo estilo de composição, à primeira vista, os versos da música parecem não ter um sentido ou um entrelaçamento lógico. Essa característica permite diferentes interpretações e torna a obra multifacetada.
O próprio Caetano explicou na edição dupla de seus livros Letra Só e Sobre as Letras que estava na Europa quando Gal lhe fez o pedido para compor. O cenário catalão, assim como as demais referências à cultura espanhola, aparecem na composição.
Caetano também se debruçou na própria persona de Gal e na imagem pública dela naquela época. A música acabou entrando como a primeira do lado A do álbum Profana, de Gal Costa, lançado em 1984.
O significado da música Vaca Profana
Música de “refrões mutantes que são difíceis de memorizar”. Assim descreveu Caetano ao comentar sobre a letra de Vaca Profana, escrita a pedido de Gal Costa.
Ao fazer a leitura dos versos, é possível explorar diferentes ângulos. A letra, bastante enigmática, permite que cada leitor ou ouvinte faça a sua própria interpretação, de acordo com sua cultura, visão de mundo, crença…
O próprio título da canção pode ser interpretado como uma possível provocação do compositor sobre o que pode ser considerado sagrado. Profano é tudo aquilo que não é sagrado, que está fora dos preceitos religiosos.
Ao falar sobre a letra de Vaca Profana no livro Sobre as Letras, Caetano comentou que se tratava também de uma canção sobre a própria Gal e que procura dialogar com a personalidade da cantora.
Por isso, os sentidos múltiplos da canção, que ainda hoje tornam a música um mistério para muitos. Vamos conferir agora a análise trecho a trecho da música Vaca Profana?
Análise da música Vaca Profana
Respeito muito minhas lágrimasMas ainda mais minha risadaEscrevo, assim, minhas palavrasNa voz de uma mulher sagradaVaca profana, põe teus cornosPra fora e acima da manadaVaca profana, põe teus cornosPra fora e acima da manadaÊ, ê, ê, ê, ê,Dona de divinas tetasDerrama o leite bom na minha caraE o leite mau na cara dos caretas
O primeiro verso fala sobre o antagonismo de sentimentos. Lágrimas, risos e como o personagem se comporta diante deles. Ele se respeita, acolhe seus dias tristes, mas sabe que a alegria precisa ser muito mais celebrada e respeitada do que a tristeza.
Não importa como o outro o aponta, ele parece estar bem consigo mesmo, está amadurecendo e se percebendo. Escreve e dá voz a si mesmo e parece brincar com os opostos quando menciona a mulher sagrada e a vaca profana.
A letra segue dizendo para que a vaca profana coloque os cornos, ou seja, os chifres para fora e acima da manada. É como se ela fosse a única capaz de se rebelar, de ter uma visão diferente dos demais, daqueles todos que seguem um padrão, um comportamento similar: para fora e acima. Ou seja, enxergar além do que se pode ver.
Derrama o leite bom na minha cara, e o leite mau na cara dos caretas pode ser compreendido como uma provocação para que o melhor fique com os descolados, e que o que é ruim seja derramado sobre os caretas, sobre aqueles que ainda não têm uma visão de transformação.
Segue a “movida madrileña”Também te mata BarcelonaNapoli, pino, pi, pau, punksPicassos movem-se por LondresBahia, onipresentementeRio e belíssimo horizonteBahia, onipresentementeRio e belíssimo horizonteÊ, ê, ê, ê, ê,Vaca de divinas tetasLa leche buena toda en mi gargantaLa mala leche para los “puretas”
Neste trecho, aparece uma verdadeira homenagem à Catalunha, à qual a letra faz diversas referências. Movida madrilheña, por exemplo, foi um movimento de contracultura que teve início em Madri, na década de 70, e permaneceu até o final dos anos 80. Se estendeu por diversas cidades da Espanha, daí a continuação também te mata Barcelona.
Caetano provavelmente ficou encantado com as obras de arte da região e incluiu na letra essas referências aos cantores Pi de lo Serra, Pau Riba e ao pintor Picasso.
Em seguida, Caetano lembra da importância da Bahia, do Rio e de Belo Horizonte para a sua formação como artista e indivíduo e, provavelmente, de Gal também.
É como se ele unisse agora todas as culturas, enfatizando que cada uma delas tem a sua importância. Os dois versos finais da estrofe são repetições em espanhol.
Quero que pinte um amor BethâniaStevie Wonder, AndaluzMas do que tive em Tel-AvivPerto do mar, longe da cruzMas em composição cubistaMeu mundo thelonius monk’s bluesMas em composição cubistaMeu mundo thelonius monk’s bluesÊ, ê, ê, ê, ê,Dona das divinas tetasQuero teu leite todo em minha almaNada de leite mau para os caretas
Agora, a música ganha um novo ritmo. A sonoridade fica mais rock and roll, mais alegre, diferente do som dramático da primeira parte. Ele menciona Pintar um amor Bethânia e esse trecho pode ser compreendido como um amor à moda, ao estilo de Bethânia, sua irmã.
O trecho segue ainda dando a ideia de um amor de liberdade, longe de julgamentos. Perto do mar, longe da cruz.
A composição cubista é a própria forma que ele cria a letra, com frases que parecem desconexas. Ele volta a Picasso, um dos fundadores do movimento.
É uma espécie de miscelânea de tudo o que ele gostava e se identificava na época; prova disso é quando surge o nome de Thelonious Monk, um dos maiores pianistas e compositores de jazz.
Sou tímido e espalhafatosoTorre traçada por GaudiSão Paulo é como o mundo todoNo mundo, um grande amor perdiCaretas de Paris, New YorkSem mágoas, estamos aíCaretas de Paris e New YorkSem mágoas estamos aíÊ, ê, ê, ê, ê,Vaca das divinas tetasTeu bom só para o oco, minha faltaE o resto inunde as almas dos caretas
As reflexões do personagem agora se voltam para ele mesmo, como se estivesse elucidando, evoluindo a visão que tem sobre si.
Se reconhece tímido e ao mesmo tempo espalhafatoso, assim como se parecem as obras de Gaudi, mais uma figura importante da Espanha.
Por tantas referências, alguns apontam a música como uma ode à Espanha. Observa São Paulo como um mundo e todas as suas nuances.
Mas eu também sei ser caretaDe perto, ninguém é normalÀs vezes, segue em linha retaA vida que é “meu bem, meu mal”No mais, as “ramblas” do planeta“orxata de xufa, si us plau”No mais, as “ramblas” do planeta“orchata de chufa, si us plau”Ê, ê, ê, ê, ê,Deusa de assombrosas tetasGotas de leite bom na minha caraChuva do mesmo bom sobre os caretasLa mala leche para los “puretas”Nada de leite mau para os caretasE o leite mau na cara dos caretasChuva do mesmo bom sobre os caretasE o resto inunde as almas dos caretas
Repare que os versos vão ganhando uma certa humildade. Antes, ele jogava diretamente com os caretas em tom de imposição, apontando como uma forma ruim de se colocar no mundo.
Agora, ele reúne todos, os de Paris, os Nova York, sem mágoas. Ou seja, em todo lugar há caretas e ele também se vê como um de vez em quando.
No final da canção, é como se o cantor se despisse de toda razão, da arrogância em julgar os demais e se reconhece também como um careta. Muitos consideram como uma música que fala sobre o amadurecimento pessoal.
A música começa com a rebeldia juvenil e finaliza como uma compreensão mais aprofundada sobre tudo o que cerca a si mesmo e sobre quem somos nós para definir o que é sagrado e o que é profano?
Letra censurada
Como podemos observar, Vaca Profana não é uma obra fácil. Mas, talvez, ela seja até mais simples do que podemos imaginar.
Fala não apenas da cultura catalã, citando pintores, cantores e costumes da região, mas também pega embalo na personalidade de Gal que, para a época, não poderia ser compreendida como uma artista de múltiplas facetas. O preconceito pode ter sido a grande barreira para entender todo o seu universo.
Provavelmente, a mentalidade predominante naquele período não permitiria uma visão ampliada sobre quem era Gal Costa que, certamente, era tudo, menos aquilo que a família tradicional brasileira queria.
Tanto que a música foi censurada, porque de acordo com a Divisão de Censura de Diversões Públicas, a letra feria a moral e os bons costumes.
Blog do Paixão