Região publica hoje, na sequencia de uma série de trabalhos de importância histórica ligados ao célebre rei do cangaço, a única entrevista concedida por Lampião em casa do poeta popular João Mendes de Oliveira, no Juazeiro, em março de 1926. É autor da célebre entrevista o médico e jornalista do Crato Dr. Otacílio Macêdo (já falecido). O trabalho do arguto e inteligente jornalista foi publicado, na época, em duas edições sucessivas do jornal “O Ceará” do qual era o Dr. Otacílio Macêdo um dos mais brilhantes e destacados colaboradores.
Revista Região – Fevereiro de 1972
Eis a transcrição:
Na tarde do dia 4 do corrente, correu célere a notícia de que Lampião com os seus asseclas acantonaram em Barbalha, de passagem para o Juazeiro.
As notícias trazidas pelos viajantes, não eram de todo alarmantes: os bandoleiros comportaram-se bem em Barbalha, tendo Lampião à saída da cidade, se dirigindo de loja em loja, de bodega em bodega, indagando se alguns dos seus rapazes haviam comprado mercadoria fiada. Onde o fato se verificou, Lampião pagou generosamente o débito.
Estes acontecimentos verificados exatamente à hora em que às informações oficiais do governo de Pernambuco e de toda a imprensa do Nordeste dava o célebre facínora como morto em combate com a polícia pernambucana, deixaram nas populações do Cariri, um misto de estupefações e terror.
A proporção, porém, que os fatos se esclareciam, desaparecido o pânico da incursão dos facínoras em nosso meio, por se positivarem os intuitos pacíficos, a curiosidade substituiu as impressões, guiando o povo, em verdadeira romaria, à casa onde se hospedara Lampião.
EM JUAZEIRO
Os bandoleiros chegaram nesta cidade, via Barbalha, na tarde do dia 4 corrente, acoitando-se nas imediações da fazenda do deputado Floro Bartolomeu, até às 10 horas da noite quando se transportaram ao centro da cidade, hospedando-se em casa de um dos tipos mais “sui-generis” do Juazeiro, o poeta popular João Mendes de Oliveira, que se intitula jocosamente “historiador brasileiro” e negociante.
O BANDO SINISTRO
Compõe-se este de quarenta e nove homens e o famoso facínora, perfazendo um total de 50 bandoleiros. Estes estão muito bem armados e municiados: vestem, na maioria, brim kaki, alpercata de rabicho, chapéu de couro “quebrado” e lenços de cores diversas, predominando verde e encarnada, amarrados no pescoço. O armamento é rifle e fuzil mauser, revólver e punhal; à cintura trazem três a quatro cartucheiras acondicionando nelas, cada homem, um total de quatrocentas balas.
A maioria dos bandidos é de origem pernambucana, dos municípios de Vila Bela, Triunfo, Floresta, e Pajeús das Flores. Surgiram deste recanto dos sertões nordestinos banhados por aquele famigerado afluente do Rio São Francisco – o riacho do Navio – lendário no conselho popular pela valentia pródiga dos seus habitantes dentre os quais se tem os mais perigosos cangaceiros do norte.
A exceção de três, “Xumbinho”, Mariano e outro de que não nos recordamos o nome, de origem vibroca, todos são moços de boa aparência, de cor branca, de 18 a trinta anos de idade, outros dez tostados pelo sol, alguns carrancudos, outros são afáveis... Um deles, Manoel Gaio, rapaz de vinte e dois anos, aloirado, competição de Hércules, com quase dois metros de altura, lembra nos traços físicos um típico descendente de holandês, tão comum nos Estados do norte, onde o Príncipe Maurício de Nassau implantou o domínio nos idos coloniais. Todos são solteiros, apenas dois casados.
Falam do “ofício” com entusiasmo e narram com palavras jocosas as principais façanhas praticadas. Nenhum se confessa arrependido da vida costumeira, elogiam-na todos porque a “profissão é boa”.
LAMPIÃO
Encontramo-lo, à primeira visita, adiante algumas casas da estrada em que se acoitava o grosso de sua gente. Era o casebre de seu irmão, semelhante a todos os casebres de Juazeiro, habitado por elementos do povo.
À porta, estacionava uma multidão enorme procurando ver Lampião, o homem que se refere de igual para igual aos governos de Estados federados do Brasil. Introduzido na casa por alguém das relações do bandido, rompemos caminho no meio da massa popular e penetramos na sala.
Feitos os cumprimentos e apresentações, entramos de cheio nos assuntos mais palpitantes, da vida do facínora. Palestra inculta, mas desembaraçada, Lampião expressa-se com acentuado respeito para o seu interlocutor parecendo medir o efeito de suas palavras, ciente e consciente de sua importância de grande homem às avessas.
Foi no correr da conversação que procuramos esboçar num relance de observação cuidadosa, o perfil macabro do homem que é o terror dos sertões do Nordeste, pintando aqui com as mais fortes características do celerado o seu curioso.
RETRATO
Estatura mediana, constituição franzina, crânio dolicocéfalo, ângulo facial aberto, rosto oval arrematado por queixo pontiagudo, tórax e membros regularmente proporcionados, eis os traços antropométricos mais incisivos do bandido.
Contrastando com os homens do seu grupo, Lampião é de todos eles o de cor mais “carregada”, aproximando-se mais do negro do que do tipo comum do caboclo no Norte. Descendente legítimo, do tapuio, misturando-se lhe na pele a pigmentação do negro e o bronzeado do índio autóctone, demonstrando nos gestos e nas atitudes uma desconfiança nativa, a astúcia do selvagem e a impulsão do cossaco alternando a vida com atos de bravura extrema com surtos de extrema generosidade o bandido parece gozar sobremaneira a curiosidade popular que o rodeia.
Cebeleira farta, preta luzida, cortada à americana, cangote raspado, deixando a nuca descoberta num misto grotesco e irritante , a impressão que se tem do facínora, neste primeiro balancear de traços humanos, a do mulato pernóstico do litoral.
Mas esta impressão vai mudar-se depois.
Dedos munido de anéis de preço, engastados de pedra preciosas, verifica-se, facilmente, no indicador e no anular, um topázio, um rubi, três brilhantes, de regular tamanho e uma esmeralda, símbolos irônicos das profissões liberais do Brasil.
Trajava calça de zuarte e paletó de brim escuro, listrado, chapéu de feltro ordinário, alparcata de rabicho de meia, ao pescoço um lenço verde, enxadrezado.
Lampião usa óculos com vidros enfumaçado, engastados em tartaruga e ouro, com o fim de encobrir um extenso “leucoma” de córnea do olho direito.
Durante todo o tempo que conversou conosco – e foi por espaço de mais de uma hora – não riu uma vez e manteve-se em circunspecção, compenetrado das suas responsabilidades e da fama de seu nome. Não abandonou um momento seu mosquetão legendário – sentando em tamborete, apegado à arma homicida, chapéu na cabeça, cobrindo os cabelos longos e pretos, respondendo apenas as perguntas que lhe são feitas, face sisuda, Lampião nesta atitude, dá assim a impressão de um buda chinês, ou de uma dessas inúmeras “cabeças falantes” que os empresários espertos embobacam a ingenuidade do povo.
Foi debaixo dessa atmosfera grotesca, de absoluto respeito dos circunstantes, que solicitamos de Lampião para a imprensa.
UMA ENTREVISTA
Coisa curiosa, o facínora, devido o peso dos apetrechos bélicos que conduz, caminha pouco corcunda, o que não impede de irradiar saúde e mocidade, não aparentando mais de vinte e dois anos de idade.
- Que idade tem?
- Vinte e sete anos.
- Há quanto temPo está nesta “vida”?
- Há nove anos, desde 1917.
- Quando me ajuntei ao grupo do Senhor Pereira.
- Não pretende abandonar a profissão?
A esta pergunta, Lampião respondeu-nos com outra:
Se o senhor estiver em um negócio e for se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo?
- Pois é exatamente o meu caso, porque vou me dando bem com este “negócio” ainda não pensei em abandoná-lo.
- Em todo caso, espera passar a vida toda neste negócio?
- Não sei... talvez ... preciso, porém, “trabalhar” ainda uns três anos. Tenho algus “amigos” que quero visita-los, o que ainda não fiz esperando uma oportunidade.
- E depois que profissão adotará?
- talvez a de negociante.
- Não se comove em extorquir dinheiro e “avariar” propriedades alheias?
- Oh! Mas eu nunca fiz isto. Quando preciso de alguns dinheiro mando pedir “amigavelmente” à alguns camaradas.
(Nesta altura chegou o 1°. Tenente do batalhão patriótico de Juazeiro e chamou Lampião para um particular. De volta, avisou-nos o facínora):
- Só continuo fazer este “depoimento” com ordem do meu superior. (Sic!)
- E quem é seu superior?
- ! !
_ Está direito...
Quando voltamos, algumas horas depois à presença de Lampião, já este se encontrava instalado em casa do “historiador brasileiro” João Mendes de Oliveira.
Rompida, novamente, a custo, a enorme massa popular que estacionava defronte à casa, penetramos por um portão de ferro, onde veio Lampião, ao nosso encontro dizendo:
- Vamos para o sótão, onde conversaremos melhor.
Subimos uma escadaria de pedra até o sótão. Aí notamos seguramente uns quarenta dos homens de Lampião, uns descansando em redes, outros conversando em grupos; todos, porém, aptos à luta imediata: rifle, cartucheiras, punhais e balas...
- Desejamos um autógrafo seu, Lampião!
- Pois, não!
(Sentado próximo de uma mesa, o bandido pegou da pena e estacou embaraçado)
- Que qui escrevo?
- Eu vou ditar.
E Lampião escreveu com mãos firmes, caligrafia regular.
“Juazeiro, 6 de março de 1926
Para ... e o Coronel ...
Lembranças de EU.
Virgulino Ferreira da Silva
Vulgo Lampião.
Os outros facínoras observavam-nos com um misto de simpatia e desconfiança. Ao lado, como um cão de fila, velava o homem de maior confiança de Lampião, Sabino Gomes, o seu lugar-tenente, mal-encarado.
- É verdade rapazes! Vocês vão ter os nomes publicados nos jornais em letras redondas.
(A esta afirmativa, uns gozaram o efeito dela, porém parece, não gostaram da coisa).
- Agora Lampião, pedimos para escrever os nomes dos rapazes de sua maior confiança.
- Pois não. E para não melindrar os demais companheiros todos me merecem igual confiança, entretanto poderia citar o nome dos companheiros que estão há mais tempo comigo.
E escreveu.
- Luiz Pedro.
- Jurity.
- Xumbinho.
- Nuvueiro.
- Vicente.
- Jurema.
E o estado maior:
- Eu, Virgulino Ferreira.
- Antônio Ferreira.
- Sabino Gomes.
Passada a lista para nossas mãos fizemos a “chamada” dos cabecilhas fulano, cicrano, etc.
Todos iam explicando a sua origem e os seus “feitos” de quando chegou a vez de “Xumbinho”, apresentou-nos um rapazola, quase preto, sorridente de 18 anos de idade.
- É verdade, “Xumbinho”.Você, rapaz tão moço foi incluído por Lampião na lista dos seus “melhores” homens...Queremos que você nos ofereça uma lembrança...
“Xumbinho” gozou o elogio. Todo humilde, tirou da cartucheira uma bala e nos ofereceu como lembrança.
- No caso de insucesso com a polícia, quem o substituirá como chefe do bando?
- Meu irmão Antônio Ferreira ou Sabino Gomes.
- Os jornais disseram ultimamente que o tenente Opptato, da polícia pernambucana tinha entrado em luta com o grupo, correndo a notícia oficial da morte de Lampião.
- E o tenente é um “corredor” ele nunca fez diligência de se encontrar “com nós”; “nós é que lhe matemos alguns soldados mais afoitos”.
- E o cel. João Nunes, comandante geral da polícia de Pernambuco, que também já esteve no seu encalço?
- Ah, este é um “velho frouxo” pior do que os outros...
Neste momento chegou ao sótão uma “romeira” velha conduzindo um presente para Lampião. Era um pequeno “registro” e um crucifixo de latão ordinário. “Velhinha”, apresentando as imagens – “Está aqui seu coroné Lampião, que eu truve para vomecê”.
- Este santo livra a gente de balas? Só me serve si fôr santo milagroso.
Depois respeitosamente, beijou o crucifixo e guardou-o no bolso. Em seguida tirou a carteira uma nota de 10$000 e deu uma gorjeta a romeira.
- Que importância já distribiu com o povo de Juazeiro?
- Mais de um conto de réis.
A despedida, Lampião nos acompanhou até a porta. Pediu o nosso cartão de visita e acrescentou:
- Espero contar com os “votos” dos senhores em todo tempo!”
- Que dúvida ... respondemos.
LAMPIÃO LEGALISTA
Esta era a informação mais corrente e aceita em Juazeiro.
Justificava-se a presença do bandido dentro da cidade do Padre Cicero, policiada por mais de 800 homens do batalhão patriota, dizendo-se que ele fizera jus a estas imunidades por serviços prestados à legalidade.
Afirmava-se: quando foi do combate travado na Fazenda Cipó, em Pernambuco, entre os rebeldes e diversos contingentes e forças em certas fases da luta, teria sido sacrificada inteiramente a 1.ª Companhia do Batalhão Patriota do 1.º Tenente Chagas, se não fosse o eficaz e oportuno auxílio prestado por Lampião aos romeiros em apuros.
O combate fora recolhido e, como “troféu” da vitória, Lampião apresentou uma velha espada da “briosa” afirmando tê-la conquistado aos revoltosos.
O troféu parece pequeno demais para as circunstâncias da luta. Entretanto, a espada rebelde constituiu aos olhos do povo uma credencial a mais para atestar a valentia dos celerados.
Grato a tal auxílio, o tenente Chagas convidou Lampião a acompanhá-lo a Juazeiro. Fê-lo, segurando a corrente, sob sua própria responsabilidade e o Padre Cícero apenas teve conhecimento do fato, quando este já se consumara.
As autoridades policiais do Juazeiro quiseram agir à altura das circunstâncias; o delegado de polícia Manoel Antônio e o sargento da Força Pública, José Antônio reuniram-se imediatamente 400 homens armados para enfrentar o grupo de Lampião. Tiveram, porém, de recuar dos seus intentos, cedendo a pressão dos “segredos da natura”. Os elementos são do Juazeiro e as suas principais autoridades sentiram-se revoltadas contra semelhante afronta atirada à face da sociedade local também digna do amparo da lei.
O mal-estar no Juazeiro era patente: lado a lado dos soldados do batalhão patriota, confundiam-se os homens de Lampião, ostentando nas ruas os seus lenços característicos e os seus apetrechos de guerra.
Não há no vernáculo um adjetivo bastante forte que caustique a objeção deste fato.
A realidade é que Lampião, o homem fora da lei, perseguido pelas policias dos governos dos Estados do Nordeste, em nome da honra da família e do sossego público, da propriedade privada e do direito da vida, enfim dos princípios mais rudimentares da moral coletiva, estava no Juazeiro com a confiança e a calma de um cidadão que nada deve a justiça... e quase com honras de triunfador.
O PADRE CÍCERO EXPLICA-SE
Embora orientado por um ponto de vista demasiadamente cristão para não dizer cavalheiresco, o Pe. Cícero explica sua atitude, justificando sua atuação no caso, com aquela simplicidade de todos conhecida e com a bondade do coração que o caracteriza.
Trazendo a público sua opinião, um destoante da austera responsabilidade social de um homem do seu prestígio social, respeitamos, entretanto, o seu modo de apreciar o fato, porque, antes de tudo, a sua exposição foi sincera e bem intencionada.
Interrogação porque não mandava repelir ou prender Lampião e seus asseclas, quando para isso bastava um simples aceno à autoridade policial, então amparada por mais de 800 homens armados das forças legais de Juazeiro, respondeu com a boemia de uma apóstolo que receia fazer o mal ao próximo.
- Não meu amiguinho! Lampião procurou Juazeiro, com intuitos patrióticos (sic!); ele pretende se alistar nas forças legais para dar combate aos revoltosos. Uma vez vitorioso, espera que o governo lhe perdoe os crimes. Este homem que veio ao Juazeiro, confiar em minha proteção, pretende se regenerar. Se não for possível alistá-lo nas forças legais, eu o encaminharei para Goiás, onde levará vida honesta, como já fiz com o Senhor Pereira e Luiz Padre. Está mais ou menos demonstrado que os governos de Pernambuco e Paraíba não conseguirão prender Lampião, entregando seu bando à justiça. O povo é sempre o prejudicado nessas coisas; é vítima de Lampião muitas vezes da polícia também... este estado de coisas pode ser modificado facilmente: - eu consigo que Lampião se vá embora para muito longe e, ficaremos livres deles.
Porém, mandar prendê-lo, aqui em Juazeiro nestas circunstâncias, era um ato de revoltante traição, indigno, de qualquer homem, quanto mais de um sacerdote católico.
Eu prevejo que muita gente agora e principalmente meus desafetos, vão dizer que eu estou mancomunado com Lampião, mas não é tal. Aqui no Juazeiro eu recebo todas as pessoas que me procuram e fico satisfeito em prestar assistência a um transviado da sociedade, procurando guia-lo no bom caminho.
- Mas, Padre Cicero, o governo pode anistiar ou perdoar criminosos comuns?
- Pode, meu amiguinho, pode.
LAMPIÃO PELA SEGUNDA VEZ AO “O CEARÁ”
De um dos nossos correspondentes, no Cariri, recebemos a seguinte entrevista concedida pelo célebre bandoleiro Lampião durante sua estadia em Juazeiro.
Sabedores de que Lampião se encontrava nas cercanias de Juazeiro, resolvemos entrevistá-lo a fim de transmitirmos aos leitores de “O CEARÁ” as impressões desse perigoso bandoleiro, cuja fama já se espalhou pelo Brasil inteiro.
Encontramo-lo em um velho sobrado nos arrabaldes da cidade com todo seu grupo que se compõe de 49 homens.
Anunciada a nossa qualidade de jornalista e o desejo que tínhamos de ouvi-lo, ele solicitamente se prontificou por atender dizendo que, apesar de muitos costumarem mentir os jornalistas, todavia estava à nossa disposição.
TRAÇOS FÍSICO E TRAJES DE BANDIDOS
Lampião é home moço e forte aparentando seus vinte e sete anos. Caboclo moreno, estatura regular, é franzino parecendo muito ágil, olhar perscrutador, vista sempre baixa, cabelos estirados e pretos, caídos sobre os ombros, cabeleira inteira, pele lisa, afigurando um tipo beduíno, com um sinal na face direita, uma vista perdida, uma pasta azulada cobrindo quase todo o globo ocular. Conversando, está sempre em movimento, ora sobre uma perna, ora sobre outra. Usa óculos pretos com aros de ouro. Traja calça e blusa de brim, uniforme muito bem acabado, grande anel de ouro, sapatos de lã e meias, relógios e corrente de ouro com uma libra esterlina pendente. Conduz nos dedos dois anéis sendo um de brilhante.
A ENTREVISTA
Feita a nossa apresentação, Lampião nos ofereceu uma cadeira colocada à cabeceira de uma mesa de jantar, onde sentamos em uma sala quase escura, colocando-se o bandoleiro de pé ao nosso lado, cercando-nos os seus companheiros que desconfiadamente nos olhavam. Entramos a dirigir perguntas ao renomado facínora que, em sua linguagem de quase analfabeto, nos foi respondendo desembaraçadamente.
SEU VERDADEIRO NOME E FAMÍLIA A QUE PERTENCE, MOTIVO PORQUE SE TORNOU CANGACEIRO
- Chamo-me Virgulino Ferreira da Silva e pertenço a humilde família Ferreira, do Riacho de S. Domingos, município de Vila Bela.
Meu pai sendo constantemente perseguido pela Família Nogueira e por José Saturnino, nossos vizinhos, resolveu retirar-se para o município de Águas Brancas, Estado de Alagoas. Nem por isso cessou a perseguição.
Em Águas Brancas, foi meu pai, José Ferreira, barbaramente assassinado pelos Nogueiras e Saturninos, no ano de 1917.
Não confiando na ação da justiça pública por isso que os assassinos contavam com a escandalosa proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu progenitor. Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar e efetivamente consegui dizimá-las consideravelmente.
GRUPOS A QUE PERTENCEU
Já pertenci ao grupo do Senhor Pereira a quem acompanhei durante dois anos. Muito me afeiçoei a este meu ex-chefe porque é um leal e valente batalhador, tanto que se ele ainda voltasse ao cangaço iria ser meu soldado.
LUGARES POR ONDE TEM ANDADO – AS POLÍCIAS DOS ESTADOS
Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas e uma pequena parte do Ceará. Com as polícias desses Estados tenho entrado em vários combates. A de Pernambuco é uma polícia disciplinada e valente que muito cuidado me tem dado; a da Paraíba, porém, é uma polícia covarde e insolente. Atualmente existe um contingente de força pernambucana em Nazaré que está praticando as maiores violências, muito se parecendo com a força paraibana.
OS PROTETORES
Não tenho tido propriamente protetores. A família Pereira de Pajeú, é que me tem protegido mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos que me facilitam tudo e me consideram eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos.
Senão tivesse de procurar meios para a manutenção dos meus companheiros, poderia ficar oculto indefinidamente sem nunca ser descoberto pelas forças que me perseguem.
De todos os meus protetores só um traiu-me miseravelmente. Foi o Cel. José Pereira Lima, chefe político de Princesa, homem perverso, falso e desonesto a quem durante anos servi, prestando os mais vantajosos favores da nossa profissão.
COMO MANTÉM O GRUPO
Consigo meios de manter o meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando a força aos usurários que miseravelmente se negam de prestar-me auxílios.
NÃO CONSEGUIU FAZER FORTUNA
Tudo quanto tenho adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as vultosas despesas do meu pessoal – aquisições de armas, convindo notar que muito tenho gasto também com a distribuição de esmolas aos necessitados.
COMBATES E VÍTIMAS
Não posso dizer ao certo o número de combates em que já estive envolvido. Calculo, porém, que já tomei parte em mais de duzentos. Também não posso informar com segurança o número de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e certeira do meu rifle. Entretanto, lembro-me, perfeitamente que, além dos civis, já matei três oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois da Paraíba. Sargentos, cabos e soldados eram-me impossíveis guardar na memória o número dos que foram levados para o outro mundo.
COMO TEM CONSEGUIDO ESCAPAR A PERSEGUIÇÃO DOS GOVERNOS
Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando como louco e correndo como veado quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito vigilante e confio sempre desconfiando, de modo que dificilmente me pegarão de corpo aberto.
Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda a parte e estou sempre avisado do movimento das forças.
Tenho também excelente serviço de espionagem embora, dispendioso, mas utilíssimo.
POR QUE COMETE DEPREDAÇÕES
Tenho cometido violências e depredações vingando-me dos que me perseguem e em represália a inimigos.
Costumo, porém, respeitar por mais humildes que sejam, e quando sucede, algum do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo severamente.
NÃO DESEJA ABANDONAR A VIDA
Até agora não desejei, ainda, abandonar a vida das armas com a qual já me acostumei e sinto-me bem.
Mesmo que assim se sucedesse não poderia deixa-la porque os inimigos não se esquecem de mim e por isso, eu não posso e nem devo deixá-los tranquilos.
Poderia retirar-me para um lugar longínquo, mas julgo que seria uma covardia e não quero nunca passar por um covarde.
CLASSE DA SUA SIMPATIA
Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de preferência as classes conservadoras – agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc. Por serem os homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigos dos telegrafistas, porque alguns, já me tem salvo de grandes perigos. Acato aos juízes porque são os homens da lei e não atiram em ninguém.
Só um classe eu detesto é a dos soldados que são os meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas vezes eles me perseguem porque são sujeitos e é justamente por isso que ainda poupo alguns quando os encontro fora da luta.
CANGACEIRO MAIS VALENTE NO NORDESTE
A meu ver o cangaceiro mais valente do Nordeste, foi Sinhô Pereira. Depois dele, Luiz Padre. Penso que, Antônio Silvinho foi um covarde, porque se entregou às forças do governo em consequência de um pequeno ferimento.
Já recebi ferimentos gravíssimos e nem por isto, me entreguei à prisão.
Conheci muito José Inácio, do “Barro”.
Era um homem de planos e o maior protetor de cangaceiros do Nordeste, em cujo convívio sentia-se feliz.
FERIMENTOS QUE TEM RECEBIDO
Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre estes, um na cabeça do qual só por um milagre escapei. Os meus companheiros também, vários desses têm sido feridos. Possuímos, porém, no grupo pessoas habilitadas para tratar dos ferimentos, de modo que, sempre somos convenientemente tratados.
Por isso, como o senhor vê, estou forte e perfeitamente sadio, sofrendo raramente ligeiros taques reumáticos.
DESEJA TER NUMEROSO GRUPO
Desejava andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não organizo conforme o meu desejo é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a manutenção do grupo – roupa, alimentação, etc.
Estes que me acompanham é de 49 homens todos bem armados e municiados e muito me custa sustenta-los como sustento.
O meu grupo nunca foi muito reduzido – tem sempre variado de 15 a 50 homens.
POR QUE POUPA O CEARÁ
Sempre respeitei e continuo a respeitar o Estado do Ceará porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal e ainda porque é o Estado do Padre Cícero.
Como deve saber, tenho a maior veneração por este santo sacerdote, porque é o protetor dos humildes e dos infelizes e sobretudo porque há muitos anos protege às minhas irmãs que moram nesta cidade.
Tem sido para elas um verdadeiro pai. Convém dizer que eu ainda não conhecia pessoalmente o Padre Cícero, pois, é esta a primeira vez que venho ao Juazeiro.
COMBATE AOS REVOLTOSOS – LAMPIÃO É LEGALISTA
Tive um combate com os revoltosos entre São Miguel e Alto de Areias.
Informado de que eles por ali passavam e sendo legalista, fui atacá-los, havendo forte tiroteio.
Depois de grande luta e estando apenas com 18 companheiros vi-me forçado a recuar, deixando diversos inimigos feridos.
O MODO DA SUA ATUAL VINDA AO CEARÁ
Vim agora ao Cariri porque desejo prestar os meus serviços ao governo da nação.
Tenho intuito de incorporar-me às forças patrióticas do Juazeiro e com elas oferecer combate aos rebeldes. Tenho observado que, geralmente, às forças legalistas não tem planos estratégicos e daí os insucessos dos seus combates que de nada tem valido. Creio que se aceitassem os meus serviços e seguissem os meus planos muito poderíamos fazer.
Demos por terminada a nossa entrevista e despedimo-nos do afamado “Lampião” que dando uma prova de cavalheirismo nos acompanhou até a porta de desejando-nos muitas felicidades disse-nos “estou às suas ordens.
As suas últimas palavras foram para nos pedir que lhe mandássemos alguns números do jornal que publicasse sua entrevista.
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