Em combate, está o faturamento milionário decorrente da exploração de mais de 40 pontos de jogo do bicho e 10 mil máquinas caça-níqueis, além do controle de uma rede de bingos e cassinos clandestinos na região mais rica da cidade
Por Rafael Soares — Rio de Janeiro
Nos fundos do Cemitério de Inhaúma, na Zona Norte do Rio, dois homens se esgueiram entre as lápides. Um deles segura uma espécie de controle remoto; o outro tem nas mãos um buquê de rosas — parte do disfarce da dupla de pistoleiros, que está ali numa missão de monitoramento de um alvo. “Tá altão o drone. Fuzil na laje não tem, eu vi aqui, e não tem”, informa o homem que carrega as flores, identificado como José Ricardo Simões, a um comparsa pelo WhatsApp. Naquele momento, na manhã de sexta-feira, 18 de novembro de 2022, o aparelho controlado pelos sicários sobrevoava a Favela do Guarda, colada no muro de trás do cemitério. “Zé, eles tão apontando para o alto aí, cara! Acho que tão vendo o drone. Não dá mole, mano! Senão eles vão mudar a rotina dele e vão f. com a gente”, respondeu o interlocutor, que acompanhava a movimentação na favela em tempo real por uma câmera de segurança. “Vou mandar abaixar”, respondeu Simões.
A troca de mensagens foi interceptada pela Polícia Civil. Um dia depois, o miliciano Marco Antônio Figueiredo Martins, o Marquinho Catiri, seria fuzilado por homens encapuzados ao sair de uma academia exatamente na região que o drone sobrevoara na véspera. Para o Ministério Público (MPRJ), a execução foi um capítulo decisivo da guerra entre bicheiros pelo monopólio do jogo ilegal na Grande Tijuca e na Zona Sul do Rio.
A chave da disputa
Em combate, está o faturamento milionário decorrente da exploração de mais de 40 pontos de jogo do bicho e 10 mil máquinas caça-níqueis, além do controle de uma rede de bingos e cassinos clandestinos na região mais rica da cidade. Mais de um ano após seu início, a disputa — que contabiliza, segundo levantamento do GLOBO, 13 mortos, cinco baleados em atentados e duas vítimas sequestradas cujo paradeiro é desconhecido — consolidou a ascensão de uma nova cúpula do jogo e já provoca mudanças no mapa da contravenção no Rio.
O homicídio de Marquinho Catiri foi um episódio central da guerra: pouco antes do crime, o miliciano — chefe de um grupo paramilitar que domina favelas nas zonas Norte e Oeste — havia sido alçado a lugar-tenente do então chefe do jogo da Tijuca e da Zona Sul, Bernardo Bello. Para o MPRJ, a aliança com Catiri, costurada em 2021, fazia parte de uma estratégia de Bello para reforçar sua segurança e se manter na chefia dos negócios diante da mobilização de seus rivais para tomar a área.
Ex-genro de Waldemir Paes Garcia, o Maninho — que era o mandachuva da região até ser morto em 2004 —, Bello geria o espólio criminoso dos Garcia há uma década, apesar da resistência de parte da família, insatisfeita por não receber repasses dos lucros da contravenção.
Nos últimos dois anos, no entanto, Sabrina Garcia, a viúva de Maninho, e sua filha Shanna começaram a se movimentar nos bastidores para articular a derrubada de Bello. Em reuniões cercadas de sigilo, as duas deram carta branca para Rogério Andrade, sobrinho do capo da contravenção Castor de Andrade, e Adilson Coutinho Oliveira Filho, herdeiro de uma família de bicheiros da Baixada Fluminense, tirarem a região das mãos de Bernardo.
Ambos os procurados pelas herdeiras dos Garcia são figuras ascendentes na contravenção do Rio. Rogério venceu uma guerra que travava desde os anos 1990 com o genro de Castor, Fernando Iggnácio — executado a tiros em 2020 —, pelo controle do espólio criminoso da família e ainda anexou territórios importantes, como a Barra da Tijuca e Jacarepaguá, aos seus domínios nas últimas décadas. Já Adilsinho, apontado como chefe de uma máfia que monopoliza a venda de cigarros ilegais no estado, teria a ambição de se tornar um capo da contravenção.
Com o aval da família Garcia, Rogério e Adilsinho buscaram o reforço de outro herdeiro da contravenção para a disputa: Vinicius Drummond, filho do bicheiro Luizinho Drumond, que controlava pontos de jogo ilegal na Zona da Leopoldina até morrer, em 2020.
‘Superar a velha cúpula’
A aliança do trio está documentada num relatório da investigação da Delegacia de Homicídios (DH) sobre o homicídio de Catiri, que aponta a relação do crime com “a tomada dos pontos de jogo explorados pelo contraventor Bernardo Bello, por Adilsinho, Rogério Andrade e Vinicius Drummond, que estariam tentando estabelecer uma nova cúpula do jogo do bicho”. Atualmente, José Ricardo Simões, o homem que monitorava Catiri com um drone, está preso e responde pelo homicídio. Segundo o inquérito, ele é funcionário da família de Adilsinho.
A intenção de criar uma nova cúpula do jogo foi exposta pelo próprio Adilsinho numa conversa com um amigo interceptada pela Polícia Federal. “O ‘verde e branca’ falou comigo de fazer uma nova organização. Só que eu não consigo falar com ele. Eu também quero, eu também quero poder”, disse. Segundo a PF, “verde e branca” seria uma referência a Rogério Andrade, patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, que tem as cores em sua bandeira.
A nova organização sugerida por Adilsinho teria o objetivo de superar a “velha cúpula” da contravenção, criada na década de 1970 para apaziguar conflitos entre bicheiros a partir de uma divisão clara de territórios entre seus integrantes. “Já deu, já passou! É outra geração agora! Tem que entender! Não tem santo... é tudo malandro! Tudo bandido mesmo! Trata a gente bem na vaselina, mas quer ser centralizador! A velha cúpula já foi há muito tempo”, afirmou Adilsinho na conversa interceptada pela PF. Dos integrantes originais da “velha cúpula”, ainda estão vivos Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, que controla o jogo em Niterói, Aniz Abrahão David, o Anísio, dono dos pontos em parte da Baixada Fluminense, e José Caruzzo Escafura, o Piruinha, chefe de parte da Zona Norte.
Investigações da polícia revelam que as mesmas armas usadas no assassinato de Marquinho Catiri foram empregadas em outros cinco homicídios e num atentado que terminou com uma vítima baleada, entre fevereiro de 2022 e junho deste ano. Um dos mortos foi Fernando Marcos Ferreira Ribeiro, fuzilado por dois homens com toucas ninja em 6 de abril passado, na Rua Caruso, na Tijuca. Ribeiro era funcionário de Bello e trabalhava recolhendo dinheiro de pontos de jogo da Tijuca.
A partir da quebra de sigilo de José Ricardo Simões, o responsável por monitorar Catiri, a DH descobriu que ele também seguiu os passos de outras quatro vítimas de crimes bárbaros ao longo do último ano: duas delas foram executadas a tiros e, duas, sequestradas, ainda não foram encontradas. Todos esses crimes, segundo a polícia, foram cometidos por pessoas ligadas a Adilsinho.
Trio denunciado na polícia
No meio do fogo cruzado, Bernardo Bello e seus comparsas decidiram retaliar. Em abril, após seu filho ser baleado num atentado no Centro, Luiz Cabral Waddington Neto, gerente dos pontos de jogo de Bello, promoveu um ataque a tiros a um bar em Vila Isabel que terminou com dois feridos. Na semana seguinte, Cabral foi à 6ª DP (Cidade Nova) denunciar a “nova cúpula” pelo crime que vitimou seu filho: “Eu tenho certeza que foi preparado pelo pessoal do Adilsinho, Rogério Andrade e o Vinicius Drummond querendo tomar o ponto de bicho nosso. Eu trabalho há 20 anos para os Garcia. Tomo conta de pontos do Andaraí ao Leblon. Estão passando há dois meses, passando nos pontos, dizem que quem não trabalhar com eles vai morrer. Hoje, todos os funcionários estão com medo”, disse o bicheiro à TV Globo ao sair da delegacia.
O conflito chegou ao Complexo Penitenciário de Gericinó. Depois que José Ricardo Simões foi preso sob a acusação de participar do atentado a Catiri, seu advogado denunciou à Justiça que o detento foi procurado, na cadeia, por “intermediários do contraventor Bernardo Bello”, que teriam oferecido “vantajosa proposta financeira” para que ele confessasse a autoria do crime e apontasse o mandante. Após a denúncia, Simões foi transferido para Bangu 1, presídio de segurança máxima.
Hoje, a polícia investiga se a guerra chegou ao fim e se os pontos de jogo da família Garcia mudaram de mãos. Desde o ano passado, Bernardo Bello está foragido; investigadores suspeitam que ele tenha saído do Rio. A polícia já sabe que, ao menos em parte da Zona Sul, a “nova cúpula” administra o jogo ilegal — e os repasses aos herdeiros de Maninho teriam sido regularizados.
Rogério Andrade responde em liberdade a um processo em que é acusado pelos crimes de organização criminosa e corrupção ativa. Já Adilsinho e Vinicius Drummond não têm acusações. Os advogados de Adilsinho não quiseram comentar a guerra pelo controle do jogo na Zona Sul. O GLOBO não conseguiu contato com as defesas de Rogério Andrade e Vinicius Drummond.
Jogo do bicho: a origem das dinastias do crime no Rio
Por Bruno Paes Manso, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP
Os bicheiros Anizio Abrahão David (esquerda), Maninho (centro) e Waldomiro Garcia (direita) durante apuração das escolas de samba do Rio de Janeiro. Foto: Luiz Carlos David/Folhapress
No primeiro episódio da série Vale o Escrito – a guerra do jogo do bicho, da Globoplay, João Luís, um anotador de apostas, explica como enxerga sua atividade: “Aqui eu sou um vendedor de ilusão. Eles me chamam de contraventor, mas eu prefiro me qualificar dessa forma”. Nos capítulos seguintes, prepare-se para suspender os julgamentos morais e ouvir uma sequência de depoimentos de pessoas que fazem parte dessa indústria bilionária e fora da lei. Um documento raro e histórico, que nos ajuda a entender melhor a complexa trama criminal do Rio de Janeiro na atualidade e a pensar sobre como chegamos até aqui.
O argumento de João Luís cala fundo na opinião pública. Afinal, vender ilusão é bem melhor do que traficar drogas, outro negócio bilionário do mercado do crime. O primeiro oferece aos que apostam a chance de enriquecer em um golpe de sorte, a partir de sinais vindos durante o sonho. Beneficia o “sistema” porque mantém acesa a esperança de driblar seus obstáculos, criando um otimismo que acaba fragilizando a potência explosiva da insatisfação popular e das lutas coletivas por reformas. Já o comércio de drogas vai em sentido oposto. O consumo excessivo simboliza a desordem e pode bugar o “sistema” porque fragiliza os controles individuais, pode levar ao vício, à loucura, à irracionalidade e à fuga da realidade.
Enquanto, no senso comum, o bicho segue vinculado à tradição e à preservação da ordem, merecendo complacência das autoridades e das polícias, as drogas são facilmente ligadas à imprevisibilidade e ao medo da violência, abastecendo uma guerra infindável no Brasil e no mundo, que no Rio de Janeiro ganha a forma de operações policiais sangrentas nos morros e favelas. Por mais danosas e trágicas que sejam as consequências dessas ações, acabam sendo toleradas e até incentivadas pela população.
Capitão Guimarães (Vila Isabel), Castor de Andrade (Mocidade), Miro Garcia (Salgueiro) e Piruinha: trajetória dos bicheiros é contada em ‘Vale o Escrito’. Foto: Reprodução/Globoplay
No decorrer da série, dirigida por Felipe Awi, Ricardo Calil e Gian Carlo Bellotti, vemos que os bicheiros podem ser tão ou mais violentos e perigosos do que os próprios traficantes. Também enxergamos a origem da força sedutora dessas lideranças, com sua capacidade de se infiltrar nas entranhas das instituições republicanas. Os contraventores, que organizaram o bicho ainda nos anos de 1970, dividindo os territórios entre suas famílias, eram malandros e tinham jogo de cintura. Sabiam que dinheiro não era o suficiente para influenciar a política e comprar as autoridades. Era preciso conquistar a alma do povo e da elite em todas as dimensões. Foi quando deram a cartada de mestre, passando a financiar os desfiles das escolas de samba, a grande fábrica nacional de sonhos e ilusões.
Como escreve Roberto Da Matta no livro Carnavais, Malandros e Heróis, no Carnaval o tempo fica suspenso e abre-se espaço para a subversão da hierarquia na sociedade injusta e desigual. Durante uma hora, o pobre se vinga na avenida e mostra que sabe ser mais feliz do que o rico, em um espetáculo glamuroso transmitido para o mundo todo. Antes da apoteose, ao longo do ano, o trabalho na indústria do samba fortalece laços comunitários, aumenta a autoestima nos bairros e celebra o corpo e a cultura popular. É uma forma sofisticada e criativa de desfrutar a vida, mesmo em uma sociedade injusta, mas que não transforma nem revoluciona as bases do sistema, apenas o torna suportável.
Com as escolas de samba e com o dinheiro de seus patronos, esse projeto popular e conservador se ampliou em riqueza, brilho e tamanho. Produziu a síntese da alma do brasileiro tipo-exportação: pessoas que sabem ser felizes, sensuais, divertidas, belas, poderosas, mesmo na adversidade. Os bicheiros, que deram condições materiais para a construção desse imaginário repleto de cedros, coroas, bandeiras, hinos, criaram suas dinastias territoriais e se tornaram parte da elite cultural e econômica do Rio, financiando seu poder sob as vistas grossas dos políticos, das autoridades, dos artistas e dos meios de comunicação. Eles ajudavam a preservar o status quo moldando a imagem nacional da alegria forjada nos desfiles.
Dessa forma, o Rio de Janeiro, a cidade mais aristocrática das Américas, avançou para a modernidade mantendo no poder seus reis malandros. Com o passar do tempo, essa estrutura se esfacelou. Ao longo da série, compreendemos as minúcias do processo autodestrutivo a partir de depoimentos históricos como os do capitão Aílton Guimarães (patrono de Vila Isabel), das gêmeas Shana e Tamara Garcia, netas do finado Miro e filhas do finado Maninho (ex-patronos do Salgueiro), e de Bernardo Bello, ex-marido de Shana, em guerra aberta com Rogério de Andrade, sobrinho do finado Castor de Andrade (ex-patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel). Eles desfilam suas personalidades carismáticas, narrando suas vidas recheadas de reviravoltas, ostentação, tragédias, conflitos e traições shakespearianas.
Diante da fragilização dessas dinastias, podemos compreender melhor a configuração da guerra de tronos atual e a ação das novas dinastias milicianas. Alguns desses grupos estão vitaminados pelas parcerias com traficantes e seus fuzis, também donos de morro, que durante muito tempo foram apontados como a principal ameaça social do Rio. Com a formação das milícias, o negócio criminal que mais se expandiu na última década, dominando mais da metade dos territórios fluminenses, a geografia e o poder no crime começaram a se transformar. Na semana passada, em artigo para o site da Piauí, escrevi sobre o quadro atual da criminalidade fluminense. Bicheiros, traficantes e milicianos promovem novas alianças e rivalidades em busca de criar outra ordem no crime. A ordem republicana e democrática parece sem força para reagir, tamanha a influência dos representantes do crime em suas instituições.
A ação dos traficantes evangélicos, que assumiram um discurso religioso para tentar legitimar sua autoridade em lugares como Parada de Lucas, Vigário Geral e Cidade Alta, deve ser compreendida a partir deste contexto de mudanças do poder no crime. Peixão, o traficante que se formou pastor e acredita ter recebido uma mensagem de Deus durante um sonho, liderou a formação do Complexo de Israel com um discurso messiânico. Ter uma nova causa mobilizadora e carismática, estabelecer um sentido para a luta do bem contra o mal, é mais um artifício, juntamente com os fuzis, para criar unidade entre chefes e subordinados nessa guerra dos tronos. Descrevi esse processo em mais detalhes no livro A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI (Editora Todavia).
A dinâmica do crime, mais do que uma mera discussão sobre polícia e segurança pública, tornou-se uma questão central para o debate político brasileiro. Investigar os discursos por trás das ações violentas ajuda a entender melhor as motivações que levam a transformações e conflitos na sociedade. Em São Paulo, por exemplo, a situação do crime é bem diferente do Rio, assim como a história da violência no Estado. O discurso que deu unidade ao crime e que promoveu a força e a autoridade dos chefes do Primeiro Comando da Capital (PCC) foi inspirado em um discurso de luta de classes, em uma sociedade que cresceu a partir do trabalho nas indústrias e da divisão urbana entre centro e periferia. Inspirado nos discursos dos movimentos sociais e dos sindicatos, o PCC promoveu a “consciência no crime” mobilizando a união dos ladrões contra o sistema cruel e violento. Conseguiu dessa forma estabelecer regras mais profissionais e estimular o empreendedorismo criminal, promovendo saltos no faturamento dos participantes da rede e acesso ao mercado global. De forma malandra, lavando dinheiro e investindo na política e na economia formal, soube penetrar no sistema e atualmente tira proveito de sua nova posição social, infiltrado nas instituições. Tanto no Rio como em São Paulo, para não falar de outros Estados brasileiros, como os da Amazônia Legal, ganhar dinheiro se tornou a meta a ser alcançada, o grande propósito de vida, independente dos prejuízos a terceiros e aos interesses coletivos.
* Além de Vale o Escrito, veja na Globoplay Doutor Castor, de Marco Antonio Araújo, e Lei da Selva: a história do jogo do bicho, de Pedro Asbeg, que tratam do assunto._______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)
Blog do Paixão