Guerra do Paraguai foi
ensinada como um exemplo de imperialismo britânico tentando arrasar uma
potência em ascensão. Mas essa visão foi revisada por historiadores.
Por BBC
Francisco Solano López (1827-1870) foi o autor da declaração de guerra que tornaria o conflito entre os países sul-americanos inevitável. — Foto: Domínio público
Ao longo de pelo menos duas
décadas, a maior parte dos estudantes brasileiros aprendeu uma história errada
sobre a Guerra do Paraguai, o maior e mais sangrento conflito armado
internacional já ocorrido na América Latina.
A versão mais contada pelos
professores de história era aquela popularizada pelos ideólogos de esquerda que
faziam oposição ao regime militar que comandou o Brasil durante a ditadura, de
1964 a 1985. Com foco em uma aversão ao imperialismo estrangeiro e
qualquer interferência das grandes potências nos destinos sul-americanos,
vendia-se a narrativa de que o conflito do século 19 havia sido causado,
financiado e indiretamente capitaneado pela Grã-Bretanha.
Nessa história, o Paraguai
ascendia como um país que caminhava para ser considerado desenvolvido, com
industrialização, justiça social e uma produção de riquezas sem igual, de forma
independente, configurando assim uma exceção naquele contexto de novos países
americanos que estavam conseguindo autonomia frente aos colonizadores a preço
de uma dependência econômica de nações ricas.
Vendo-se ameaçados por aquele
paisinho que se tornaria um concorrente de sua influência, sobretudo no Brasil
e na Argentina, os ingleses despejaram dinheiro e reforços bélicos. O
resultado: um massacre que teria condenado ao Paraguai à pobreza e ao subdesenvolvimento.
Fim do sonho sul-americano.
"Onde está qualquer
documento que prove que foi a Inglaterra? Não existe um documento oficial, não
existe nada que mostre que o governo inglês tinha interesse em fazer uma guerra
na região", diz o historiador Francisco Doratioto, professor aposentado da
Universidade de Brasília (UnB). O especialista concedeu entrevista à BBC News
Brasil na manhã de terça-feira (10/12).
A visão contemporânea que se tem
do conflito, deflagrado oficialmente com a declaração de guerra do Paraguai ao
Brasil em 13 de dezembro de 1864, véspera da invasão das forças do país vizinho
à então província do Mato Grosso, é aquela que foi construída por historiadores
como Doratioto depois de minuciosa pesquisa em documentos históricos
paraguaios, brasileiros, argentinos, uruguaios e ingleses.
Em 2002, o historiador lançou seu
mais conhecido livro: Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai,
consolidando-se como autoridade no tema. Outros estudiosos que foram
reconhecidos pela reescrita da história dessa guerra foram os historiadores Ricardo
Salles (1950-2021) e, de forma pioneira, Moniz Bandeira (1935-2017).
A Guerra do Paraguai durou de
dezembro de 1864 a março de 1870. De um lado estava a pequena República do
Paraguai, com cerca de 400 mil habitantes. De outro, a Tríplice Aliança formada
por Brasil, Argentina e Uruguai — juntos, somavam pouco mais de 11 milhões de
habitantes.
O resultado foi arrasador.
Calcula-se que a população paraguaia tenha se reduzido para menos de 190 mil
pessoas. "90% dos homens morreram", afirma Doratioto. "Do
sexo masculino, sobraram apenas idosos e crianças."
Versão da história atribuiu ao Duque de Caxias, comandante das tropas brasileiras, atrocidades na guerra com o Paraguai. — Foto: Getty Images via BBC
Guerra de versões
Doratioto explica que a versão
outrora ensinada no Brasil acabou se tornando a mais conhecida e difundida no
país, sobretudo por conta da ditadura militar. E seu registro mais popular foi
o livro Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai, publicado em 1979, de
autoria do jornalista Júlio José Chiavenato.
"Ele não é historiador e comete erros de metodologia que qualquer aluno de graduação [se o fizesse] não seria aprovado na matéria", aponta Doratioto. "Mas tem o grande mérito de reviver o tema que estava abandonado pelos historiadores e por militares que vinham com uma visão ufanista e oficial da guerra."
Nessa obra, nota-se que o autor
tenta passar sua indignação pelas crueldades cometidas pela guerra. "Ele
vai pelos corações e ganha pela emoção", analisa Doratioto. "Na
época, ao ler aquilo, eu achei correto."
Tanto que o historiador foi um
dentre a imensa maioria de sua geração que contava essa versão nas salas de
aula, quando professor de colégios em São Paulo.
"Eu ensinei isso", admite.
"Lembro-me que tinha um aluno brilhante que, no final de uma aula, me
perguntou: mas, professor, se a Inglaterra queria acesso ao mercado paraguaio e
fez a guerra para ter esse acesso, qual era a lógica de destruir esse
mercado?"
O revisionismo que trouxe à tona
essa narrativa, na época, tinha um foco: desmoralizar os militares que
autoritariamente chefiavam o país. E, de quebra, criticar a influência
imperialista de forças estrangeiras.
"No momento histórico em que
aquilo foi escrito, em pleno regime militar, os setores democráticos da
sociedade tinham perdido o espaço", contextualiza.
"De repente apareceu um
livro que dizia que o Caxias, que é o patrono do exército brasileiro, tinha
feito crimes de guerra praticamente, mandando jogar cadáveres coléricos no rio
Paraguai para contaminar tropas paraguaias", comenta Doratioto. "O
livro desmoralizava os ícones do regime militar. Dava à guerra ideológica uma
vantagem contra o regime militar."
Nesse exemplo trazido pelo
historiador, a narrativa é de que o marechal Luís Alves de Lima e Silva
(1803-1880), o Duque de Caxias, que comandava as tropas brasileiras no
Paraguai, teria determinado que os corpos daqueles que haviam morrido por uma
epidemia de cólera que matou 4 mil de seus soldados fossem jogados no rio
Paraguai, nos arredores de Humaitá, para que contaminassem os soldados
paraguaios entrincheirados a quilômetros ali, em uma guerra biológica.
Mas Doratioto aponta
contradições: a primeira, de cunho geográfico. O sentido em que corre o rio é
contrário ao que faria sentido nessa narrativa. "Os cadáveres
nadaram contra a corrente? Isto é absurdo", provoca o historiador.
O outro é o fato de que os
militares tinham o costume de queimar ou enterrar os que morriam durante as
campanhas. "Como era uma região pantanosa, a água do rio acabou
contaminada. E isso provocou a epidemia que matou ainda mais soldados
brasileiros", explica ele.
Em carta destinada à mulher,
Caxias lamentou que havia perdido "um exército" antes mesmo de entrar
em combate, já que quase 4 mil soldados brasileiros morreram de cólera no
episódio.
Outro problema da narrativa
difundida por Chiavenato foi pintar o Paraguai como um país em outro patamar de
desenvolvimento, com industrialização avançada, ferrovias e uma sociedade
baseada na justiça social.
Ilustração mostra um acampamento de militares brasileiros durante a Guerra do Paraguai. — Foto: Domínio público
"Indústria pesada no Paraguai em 1864? Praticamente não existia. Tinha uma fundição. Protossocialismo? Como protossocialismo? Era uma estrutura de exploração do camponês que colhia erva-mate e mesmo pela lógica marxista havia uma, entre aspas, mais-valia apropriada pelo Estado paraguaio do camponês", exemplifica.
Para Doratioto, a ideia de mirar
no imperialismo inglês e vilanizá-lo pelas crueldades da guerra também encontra
justificativa no cenário da ditadura. A esquerda ideológica brasileira tinha
como inimigo o imperialismo norte-americano, pois os Estados Unidos financiaram
o golpe de 1964 e eram apoiadores dos governos militares. Assim, mudava-se o
protagonista, mas havia uma mesma semântica para configurar o
"inimigo".
Se essa versão revisionista da
história se tornou popular no Brasil por conta da esquerda, o curioso é que na
Argentina ela se consolidou pela direita.
"[No país vizinho, essa
narrativa] É basicamente o pensamento autoritário da direita xenófoba que vem
desde as década de 1920 e 1930, um pensamento que se constrói contra os
ingleses, contra o imperialismo inglês", afirma. "E no Brasil ele é
reciclado frente a um sentimento anti-Estados Unidos."
Por que a guerra?
Desde a sua independência, em
1811, o Paraguai vivia uma situação atípica. Encurralado e sem acesso ao mar,
tinha dificuldade para escoar internacionalmente seus produtos — erva-mate e
madeira, basicamente.
No centro do continente e sem
oferecer as riquezas que eram importantes no mundo colonial, ou seja, metais
preciosos, o Paraguai já havia experimentado um certo isolamento durante o
domínio espanhol. Isso impactou na formação de sua sociedade.
"Era e ainda é a única
sociedade na América do Sul bilíngue, com a cultura guarani entranhada na
cultura do colonizador", exemplifica Doratioto.
Além disso, a população feminina
era maior do que a masculina. Isso se dava justamente porque, com a falta de
ouro e prata, o território acabou se tornando ponto de passagem para o
contrabando — as mulheres se fixavam, mas os homens iam e vinham.
Com a independência das antigas
colônias hispânicas, a elite de Buenos Aires "tentou se tornar um centro
de poder", explica o historiador. "Eles buscavam manter subordinadas
a ela todas as províncias do antigo Vice-reino do Rio da Prata, ou seja,
Uruguai, Bolívia e Paraguai", diz ele.
O Paraguai se recusou e acabou
sozinho.
No comando do país estava o
ditador Gaspar de Francia (1766-1840). "Ele estabeleceu uma ditadura
impressionante, quase surrealista", analisa Doratioto. "Para se ter
uma ideia, ele rompeu com Roma e estabeleceu uma Igreja Católica própria. E
proibiu casamento interculturais, prendeu parte da elite…"
Foto antiga mostra o Exército brasileiro na Guerra do Paraguai. — Foto: Domínio público
O isolamento sul-americano só
fortaleceu seu regime, pois acabava justificando a necessidade de seu poder
autoritário e centralizado.
Seu sucessor foi Carlos Antonio
López (1790-1882) que, segundo Doratioto, "tinha uma visão muito clara da
situação" complicada que enfrentava o país. "Ele tenta abrir o
Paraguai, controladamente", comenta.
Nesse processo, ganhou o apoio do
Império Brasileiro. Que também tinha seus interesses: não queria que a
Argentina fosse tão poderosa, no xadrez geopolítico que se desenhava na América
do Sul.
López decidiu criar uma elite
preparada em seu país. Financiou o envio de duas dezenas de jovens para estudar
na Europa, contratou uma empresa inglesa para representar os interesses
paraguaios junto às grandes potências e começava a investir em material bélico.
Ele também contratou técnicos ingleses para fazer obras pontuais de
infraestrutura em seu território.
"Mas o Paraguai era um país agrícola, não tinha escolas em nível superior, tinha apenas uma fundição de ferro e uma pequena ferrovia que ligava Assunção a um acampamento militar e que foi a terceira da América Latina", aponta.
A modernização experimentada pelo
Paraguai, segundo o historiador, tinha finalidades apenas militares, de defesa.
Não visava a uma sociedade igualitária ou à justiça social.
Com sua morte, a presidência foi
assumida pelo filho, Francisco Solano López (1827-1870). Que, menos pragmático
do que o pai, acabou sendo o autor da declaração de guerra que tornaria o
conflito entre os países sul-americanos inevitável.
De acordo com o historiador Moniz
Bandeira, a motivação do conflito foi de natureza econômica. Naquela década de
1860, o isolado Paraguai estava sem caixa para continuar o tímido porém
calculado projeto de modernização empreendido pelo López pai.
"Para aumentar as
exportação, o Paraguai precisava achar uma saída para o mar", resume
Doratioto. O historiador, contudo, comenta que mesmo se esse acesso fosse
possível o país teria dificuldades. "Era um pequeno país de agricultura de
técnicas medievais. E nenhum agricultor [paraguaio] tinha interesse em produzir
mais para a exportação. Eram agricultores de subsistência, em um nível muito
baixo."
O investimento inglês
Um dos achados de Doratioto que
indicam que a Grã-Bretanha não queria uma guerra na América do Sul é uma carta
do diplomata Edward Thornton, então o embaixador britânico na Argentina e no
Paraguai — baseado em Buenos Aires, já que Assunção não contava com este posto.
Dirigindo-se ao chanceler
paraguaio José Berges, o inglês escreveu que "a Inglaterra também está em
atritos com o Brasil" e que "particularmente sim, se puder servir, no
mínimo que seja, para contribuir para a reconciliação dos dois países [Paraguai
e Brasil], espero que Vossa Excelência não hesite em me utilizar".
A carta é datada de 7 de dezembro
de 1864, cinco dias antes da declaração de guerra emitida pelo governo
paraguaio.
Um dos principais pontos da
historiografia revisionista é dizer que a prova do interesse e do envolvimento
inglês seria o fato de que houve financiamento da potência europeia nas
campanhas brasileira e argentina que acabariam dizimando metade do Paraguai.
De fato, esses empréstimos
ocorreram. Mas Doratioto tem argumentos para contextualizar esse fato. "A
lógica do capital não tem nacionalidade nem patriotismo. O capital está em
busca de remuneração e garantia", pontua. "Banqueiros ingleses
emprestaram para o Brasil e para a Argentina, claro. Vão emprestar para o
Paraguai, um país isolado no interior do continente, sem acesso ao mercado
externo, sem ouro e fazendo guerra contra três países por iniciativa
própria?"
Ele ainda lembra que esse
financiamento inglês nem foi tão representativo como se imagina para o lado
brasileiro da guerra. Segundo o historiador, cerca de 12% das despesas de
guerra do Brasil foram bancadas com empréstimos estrangeiros, apenas.
Violência militar
Brasil cometeu atrocidades na Guerra do Paraguai, mas elas também foram usadas para manchar a imagem do patrono do Exército, diz o historiador. — Foto: Domínio público
Sobre as atrocidades da guerra
cometidas por Duque de Caxias e suas tropas, Doratioto concorda que elas foram
ressaltadas para manchar a imagem do patrono do exército no contexto da
ditadura. Mas ele as confirma.
Em seu livro, por exemplo, o
historiador conta que os combatentes brasileiros chegaram a matar crianças que
se passavam por soldados nas trincheiras paraguaias.
"Guerra é sempre uma
selvageria. As acusações contra o Caxias fazem parte de uma dialética da
guerras: todos os chefes militares em combate deram ordem para matar, até a
Segunda Guerra vencia uma guerra quem matava mais", argumenta.
Doratioto avalia que a figura
histórica do Duque de Caxias "até hoje não foi suficientemente explorada
pelos historiadores". E entende que "desmoralizá-lo", na época
da ditadura, "era desmoralizar o regime militar".
* Edison Veiga - de Bled
(Eslovênia) para a BBC News Brasil
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