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Legenda da foto,'Gênia absoluta',
descreveu atriz Cate BlanchettArticle information
- Author,Camilla Veras Mota
- Role,Da BBC News Brasil em São Paulo
A atriz australiana Cate
Blanchett entrou no palco do último Festival de Cinema de
San Sebastián emocionada depois de receber uma homenagem pelo conjunto de sua
obra.
Enxugando as lágrimas, em um
exuberante vestido de renda dourado de gola alta e mangas longas, ela começou
seu discurso de agradecimento dizendo
ser movida pela "busca por entender o que significa ser humano".
"Esse nó estranho de incerteza assustadora e prazerosa que é ser
humano."
E emendou: " Vivemos em
tempos incertos, e eu tomo coragem em Clarice Lispector, uma
autora brasileira que é uma gênia absoluta, cuja obra tenho lido
recentemente".
Blanchett recitou então um trecho
da crônica Diálogo do Desconhecido, publicada na coletânea A
Descoberta do Mundo.
"Existem certas vantagens em não saber. Como um território virgem, a mente está livre de equívocos. Tudo o que não conheço constitui a maior parte de mim: esta é a minha dádiva. E com esse não saber, eu entendo tudo."
Minutos depois, durante a
coletiva de imprensa após a premiação, citou Clarice novamente,
desta vez uma frase de A Hora da Estrela.
Blanchett é parte de uma nova
legião estrangeira de fãs da escritora. A obra de Clarice Lispector tem
carreira internacional há muito tempo — Perto do Coração Selvagem foi
traduzido pela primeira vez para o francês em 1954 —, mas na última década o
interesse estrangeiro pela escritora brasileira explodiu.
O novo patamar que seu sucesso internacional alcançou é a parte visível de uma história que, nos bastidores, mistura elementos tão distintos quanto a obsessão de um escritor americano pela autora, a dedicação de seu filho mais novo para levar a obra da mãe para o mundo e a própria qualidade da obra de Clarice, atemporal e universal.
Crédito,Editora Rocco/Divulgação
Legenda da foto,A escritora
nasceu em Tchechelnik, na Ucrânia, em 1920 e chegou ainda bebê ao Brasil
A 'igreja de Clarice'
Desde os anos 1980, os livros da
autora eram publicados em inglês nos Estados Unidos pela editora New
Directions, mas nunca haviam alcançado um grande público porque as traduções
eram consideradas ruins e não captavam a voz da escritora.
Foi isso que o crítico Benjamin
Moser, biógrafo de Clarice, disse à presidente da New Directions, Barbara
Epler, para convencê-la a retraduzir parte das obras que a editora tinha no
catálogo e lançar algumas ainda inéditas no mercado anglófono.
"Foi ele que deu o empurrão
que me lançou nessa aventura toda", disse Epler à BBC News Brasil.
Desde que descobriu a escritora
brasileira, aos 19 anos, Moser ambicionava torná-la mais conhecida fora do
Brasil. Em um curso de português na universidade, descobriu A Hora da
Estrela e ficou fascinado com a obra e a figura enigmática da
escritora.
Em um texto publicado na revista
Quatro Cinco Um no ano passado, escreveu que Clarice Lispector é como uma
"igreja" — da qual ele mesmo seria adepto.
"Ela é uma religião. Tem acólitos, dá as caras em sessões espíritas e, de vez em quando, até reencarna: sei disso porque às vezes reencarnações dela me procuram no Instagram. Ela também atrai um número bastante atípico de obsessivos excêntricos: sei disso porque eu mesmo sou um deles."
Epler conta que Moser apresentou
a ideia de um projeto ambicioso de publicação da obra da escritora em inglês em
2009, em um bar em Nova York, dias depois do lançamento da biografia que ele
escreveu sobre Clarice, Why this World (Por que Este Mundo).
"Ele disse pra mim: 'Chegou
a hora de um revival completo da obra de Clarice — e as traduções de vocês são
horrorosas'", lembra Epler, rindo. "Vocês estão colocando maionese no
negócio, estão fazendo os livros parecerem muito mais simples do que são",
ele continuou.
Crédito,Editora Rocco/Divulgação
Legenda da foto,Traduções de
Clarice para o japonês também estão disponíveis
O escritor sacou então versões em
português e inglês de A Hora da Estrela e começou a apontar as
diferenças — por exemplo, como as quebras nas frases da versão original haviam
desaparecido e dado lugar a um texto mais direto.
Mesmo sem entender português, a
editora conseguiu perceber que aqueles eram "animais diferentes".
"Ele disse categoricamente
que a Clarice era mal interpretada, que ela era na verdade radical, que a
linguagem dela não era de jeito nenhum polida, era quebrada. Argumentou ainda
que ela era uma das mulheres mais qualificadas daquela geração, a primeira
mulher judia a ter um diploma de direito."
Os olhos de Epler também
brilharam quando ela ouviu que havia livros ainda totalmente desconhecidos do
público que lê em inglês, como O Lustre.
Juntos, eles mergulharam então em
um projeto com jovens tradutores, supervisionados por Moser e em parceria com a
Penguin Classics, que faria os lançamentos no Reino Unido.
O primeiro livro publicado
foi A Hora da Estrela, em 2011, traduzido pelo próprio biógrafo. Em
2012, foram quatro: Perto do Coração Selvagem, Água Viva, A
Paixão Segundo G. H. e Um Sopro de Vida.
Três anos depois veio The Complete Stories, que reunia mais de 80 contos e foi um sucesso editorial e de crítica, publicado primeiro em inglês e, no ano seguinte, em português.
Crédito,Acervo Instituto Moreira Salles
Legenda da foto,Clarice foi
descrita em crítica do New York Times como 'feiticeira' e 'monstro sagrado'
A essa altura, o nome de Clarice
já tinha ganhado nova projeção internacional.
Quando O Lustre foi
lançado em 2018, a crítica literária Parul Sehgal começou sua resenha no jornal
The New York Times com um contundente "Esfinge, feiticeira, monstro
sagrado. O revival da hipnótica Clarice Lispector tem sido um dos grandes
eventos literários do século 21".
No total, foram 15 livros
lançados, sendo o mais recente A Maçã no Escuro, em novembro de
2023. Há mais um previsto para fevereiro de 2025, Covert Joy: Selected
Stories, uma seleção das "melhores e mais queridas" histórias da
autora, conforme a descrição no site da editora, e outros dois, uma reunião de
cartas e uma seleção de crônicas, que devem sair em 2026 e 2027,
respectivamente.
Procurado pela BBC News Brasil,
Moser respondeu, por e-mail: "Eu já dei tantas entrevistas sobre este
assunto na minha vida que acho que é melhor me aposentar! Espero que
compreenda." Em 2019, ele publicou seu novo projeto, uma biografia da escritora
Susan Sontag.
Epler conta que Clarice Lispector
está hoje entre os 10 autores mais vendidos da New Directions, que publica em
inglês estrelas da literatura latinoamericana como Jorge Luis Borges e Julio
Cortázar. Foram 350 mil cópias vendidas, sendo 50 mil de The Complete
Stories e 105 mil de A Hora da Estrela.
Fazer algum sucesso no mercado
literário americano não é fácil. O país é inundado de novos títulos todos os
anos - 400 mil, afirma Epler - e o público local costuma consumir mais autores
americanos do que estrangeiros.
Crédito,Acervo Instituto Moreira Salles
Legenda da foto,A New Directions
tem mais três lançamentos de livros da autora previstos até 2027
Macabéa em turco, árabe,
mandarim, finlandês
A recepção dos leitores e da
crítica à obra de Clarice nos países de língua inglesa abriu as portas do mundo
para a escritora brasileira. Bruno Zolotar, diretor de marketing e vendas da
Editora Rocco, casa editorial da obra da autora, diz que há atualmente 400
contratos de tradução ativos (cada contrato se refere a uma obra). A
Hora da Estrela já foi publicado em mais de 40 países.
"É verdade que o trabalho de
Clarice foi traduzido lá nos anos 1950 e 60, para o inglês, francês e espanhol,
mas o que acho interessante é essa dispersão internacional [que vemos
hoje]", diz Claire Williams, chefe do Departamento de Literatura e Cultura
Brasileira do St. Peter's College, da Universidade de Oxford, na Inglaterra.
"A Hora da Estrela hoje
está disponível em turco, árabe, mandarim, ucraniano, catalão, finlandês,
persa, indonésio… e mais. O Goodreads [plataforma de recomendação de livros]
lista 120 edições! Isso mostra como ela está atingindo uma audiência
global", completa Williams, que assina a introdução de Clarice
Lispector Entrevista, recém-lançado pela editora Rocco, que reúne 83
entrevistas feitas pela escritora para as revistas Manchete, Fatos & Fotos:
Gente e para o Jornal do Brasil com personalidades como Chico Buarque e Elke
Maravilha.
Há quase 30 anos a pesquisadora
estuda e escreve sobre Clarice em livros e periódicos acadêmicos e ensina sobre
ela a seus alunos em Oxford. O primeiro livro da autora que ela apresenta em
sala de aula é a coletânea de contos Laços de Família.
Foi Williams que redescobriu
parte das entrevistas publicadas em 2007 e agora reeditadas em novo volume (com
outras 35). Durante sua pesquisa de doutorado, em 1996, deparou-se com algumas
delas no arquivo da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e ficou
intrigada.
Clarice não usava gravador, fazia
anotações à mão, costumava compartilhar mais sobre si mesma durante a
entrevista do que os jornalistas de uma forma geral e se mostrava claramente
mais à vontade quando estava conversando com alguém por quem tinha simpatia.
Nos últimos dez anos, conta a
pesquisadora, os livros da autora têm aparecido cada vez mais nas seções de
literatura latino-americanas das grandes livrarias no Reino Unido.
"Acho que ela transcende fronteiras e linguagens. [Sua obra] atrai leitores com todo tipo de bagagem, idade e origem, em parte porque trata de questões de identidade e de relações humanas. Toca em assuntos com os quais a maioria das pessoas se depara em algum momento de suas vidas", ela opina.
Crédito,Editora Rocco/Divulgação
Legenda da foto,'Público
amadureceu e passou a compreender melhor a proposta da escritora', vê editor
Frida Kahlo da literatura
Pedro Vasquez, responsável pela
edição das obras da autora na editora Rocco, elenca o que acredita ser mais um
ingrediente do sucesso atual de Clarice. Tanto no Brasil quanto no exterior,
ele diz, o público amadureceu e passou a compreender melhor a proposta da
escritora.
"Não é uma obra, assim, de
entretenimento... é uma obra que mexe profundamente com o leitor", ele
fala à BBC News Brasil.
"É aquele tipo de livro que
você fecha e é aí que ele começa a trabalhar dentro de você. Você fica
pensando, matutando sobre aquilo que leu."
Além de mergulhar em temas
universais, ele acrescenta, a obra também traz uma perspectiva bastante moderna
de questões femininas. "Você tem que lembrar que ela começa a publicar em
1943, né?", ele ressalta.
Não só no papel, aliás, com
personagens femininas complexas e muitas vezes arrebatadas por dilemas
existenciais, mas em sua própria vida.
Clarice formou-se em direito em
uma época em que poucas mulheres cursavam ensino superior, começou a trabalhar
muito cedo como jornalista, sempre se colocou como mulher independente e se
separou do diplomata Maury Gurgel Valente quase duas décadas antes de o
divórcio ser legalizado no Brasil, ainda em 1959, quando a família voltava de
uma temporada de 7 anos em Washington.
"Ela volta para o Brasil
para criar os dois filhos sozinha. Ela tem uma postura de vida muito corajosa,
desbravando espaços para as mulheres", destaca Vasquez, que edita a obra
da escritora há mais de 20 anos.
Nesse sentido, o editor também
enxerga uma fascinação de parte do público pela própria figura da escritora,
tanto por sua biografia quanto por sua personalidade, considerada muitas vezes
enigmática. Um encantamento que também contribuiu para que ela tivesse uma
audiência global.
"Ela seria uma contrapartida
literária de uma Frida Kahlo", ele compara, referindo-se à artista
mexicana que morreu em 1954 e se tornou uma espécie de ícone feminista da
atualidade.
Assim como a pintora, Clarice
também estampa camiseta e caneca e é pop nas redes sociais. Citações suas,
aliás, são campeãs de compartilhamento — algumas fora de contexto e outras que
nem dela são.
Crédito,Acervo Instituto Moreira Salles
Legenda da foto,A escritora em
foto de 1969 de Alair Gomes
De rainha do Facebook a hit da
bienal
A vocação pop ganhou um empurrão
da Rocco na última década, quando a editora tem feito um esforço de
popularização da escritora.
Um exemplo foi o lançamento, em
2011, do 10 de dezembro (aniversário da escritora) como a Hora de Clarice, um
dia em sua homenagem, em que promove e incentiva ações em torno de sua obra.
Neste 10 de dezembro de 2024,
divulgou a realização de uma leitura teatral no Rio a partir do livro Clarice
Lispector Entrevista, interpretada pela atriz Beth Goulart e dirigida pelo
cineasta Luiz Fernando Carvalho, que lançou neste ano o filme A Paixão
Segundo G.H.
Nos últimos anos a editora também
repaginou capas de livros e passou a publicar seleções da obra da autora,
conteúdos mais facilmente digeríveis para leitores iniciantes.
"A gente sentiu que ela
começou a pegar um público mais jovem", diz Bruno Zolotar, comentando
sobre a Bienal do Rio do ano passado, quando o estande dedicado à autora foi um
dos espaços mais frequentados pelos visitantes.
"Impressionou muito mesmo a
quantidade de jovens na faixa de 18 a 25 anos olhando os livros dela."
Crédito,Reprodução/YouTube
Legenda da foto,Entrevista para a TV Cultura foi durante muito tempo um dos poucos registros em imagem e som da escritora e contribuiu para reforçar sua aura enigmática
O filho nos bastidores
Um personagem central por trás de
todos esses movimentos é seu filho mais novo, Paulo Gurgel Valente. Ele é
curador da obra de Clarice e trabalha cotidianamente nos bastidores para
disseminar o trabalho da mãe — no Brasil e fora.
"O filho da Clarice, Paulo Gurgel Valente, perdeu sua mãe muito jovem e, quando ela estava doente, ele prometeu que tomaria conta de sua obra. E muitas coisas que nós sabemos ser da Clarice Lispector são graças ao trabalho dele. O Paulo tem feito isso e ele me disse que não havia um dia em sua vida que ele não fizesse algo para sua mãe", disse o biógrafo Benjamin Moser em entrevista à revista Trip em 2013. Clarice morreu de um câncer de ovário um dia antes de completar 57 anos.
Toda coletânea, antologia,
reedição de livro, tudo passa pelo crivo de Valente.
Assim como a mãe (que já escreveu
"Gosto de pedir entrevista: sou curiosa. Detesto dar entrevistas: me
deformam"), ele não gosta de falar com a imprensa e declinou o pedido da
BBC. Mas está constantemente próximo de quem trabalha com a obra da mãe.
"Sempre tenho contato com
ele, tanto pessoalmente quanto por e-mail", diz Vasquez. "Ele
acompanha tudo, faz a aprovação final da edição dos livros", completa.
"Ele é curador da obra da
mãe com muito carinho e amor", afirma a professora da Universidade de
Oxford Claire Williams, que o conheceu por meio da biógrafa Teresa Montero.
"Mando para ele o que publico e sempre o informo quando organizo eventos
[sobre Clarice]."
Foi dele a ideia de levar a obra
da mãe para a Rocco nos anos 1990, época em que os textos da escritora foram
consolidados e uma série de erros que tinham se acumulado em diferentes edições
ao longo do tempo foram corrigidos.
Paulo Rocco, fundador da editora,
teve contato com Clarice quando trabalhava na editora Sabiá, de Fernando Sabino
e Rubem Braga (dois grandes amigos da escritora), e conhecia Valente de longa
data.
Foi dele também a iniciativa de
compartilhar parte do acervo da mãe em 2004 com o Instituto Moreira Salles
(IMS).
Desde o fim dos anos 1970, o
único guardião do acervo de Clarice era a Fundação Casa de Rui Barbosa, ligada
ao Ministério da Cultura, onde estão cartas, documentos e recortes de jornais e
revistas com o trabalho da escritora como jornalista.
O IMS recebeu manuscritos
originais e datilografados, correspondências e cadernos, um acervo hoje
acessível remotamente a pesquisadores de todo o mundo e constantemente
divulgado em exposições e eventos.
A escritora tem um site dedicado a ela e todo 10 de dezembro ganha um evento comemorativo — neste ano, um podcast com cinco episódios em que especialistas conversam sobre a obra e a vida de Clarice, detalha Bruno Cosentino, da área de literatura do instituto.
Crédito,Acervo Instituto Moreira Salles
Legenda da foto,Clarice com o
filho Paulo Gurgel Valente no bairro do Leme, no Rio de Janeiro
Rachel Valença, coordenadora do
acervo de literatura do IMS, conta que foi Valente que levou a eles o material
em vídeo que deu origem ao minidocumentário Dias de Clarice em Washington,
divulgado no último mês de setembro e ilustrado com depoimentos dele.
"Ele recebeu uma mensagem de
alguém do CPDOC [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil da Fundação Getulio Vargas] dizendo que tinha um vídeo no arquivo do
Amaral Peixoto em que aparecia a Clarice bem rapidamente e o próprio Paulo
pequenininho", relata.
"A imagem da Clarice em
movimento é uma coisa rara. Até muito pouco tempo só existia uma entrevista que
ela deu meses antes de morrer pra TV Cultura", diz Valença, referindo-se
ao célebre registro de 1977 em que a escritora está visivelmente desconfortável
e dá respostas mal-humoradas.
A autora pediu que a entrevista
só fosse ao ar depois que ela morresse. Seu desejo foi atendido.
A gravação foi durante muito
tempo a única imagem que os leitores de Clarice tinham dela se expressando, e
contribuiu para reforçar a aura de enigmática que se criou em torno de sua
figura.
No ano passado, também por
intermédio de Valente, uma entrevista que passou décadas esquecida no acervo do
Museu da Imagem e Som (MIS) foi recuperada e divulgada, simultaneamente em
inglês, na revista New Yorker (com um texto escrito por Benjamin Moser), e em
português, na revista Quatro Cinco Um.
A conversa de pouco mais de 45
minutos é uma janela para outro ângulo de Clarice, falante e risonha.
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