Conselho Nacional de Justiça diz que 'muitos pagamentos são passivos relativos a decisões judiciais'
Por Dimitrius Dantas — Brasília
Judiciário pagou quase R$ 7 bilhões em remunerações acima do teto estabelecido pela Constituição durante o ano de 2024 — Foto: Criação O Globo
O Judiciário pagou quase R$ 7 bilhões em remunerações acima
do teto estabelecido pela Constituição durante o ano de 2024, aponta
levantamento do GLOBO com base em dados divulgados pelo Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). O órgão disse, em nota, que “muitos dos pagamentos citados são
passivos relativos a decisões judiciais que deram ganho de causa a esses
profissionais para o pagamento desses valores”.
Na primeira reportagem da série "Estado
eficiente", sobre ineficiência dos gastos públicos em suas três esferas
(Judiciário, Legislativo e Executivo), que o GLOBO publica a partir de hoje, os
dados apontam que as despesas com os chamados “penduricalhos” nos vencimentos
atingem todas as esferas da Justiça. E, em alguns tribunais, superam um
rendimento extra de R$ 500 mil por magistrado no ano — recurso esse em que, em
alguns casos, não incide Imposto de Renda.
Na média de todos os tribunais do país, nas esferas estadual
e federal, o pagamento acima do teto para magistrado foi de R$ 270 mil no ano
passado.
A discussão sobre remunerações de servidores acima do teto
está entre as principais pautas no debate sobre corte de gastos. Em reuniões
com os presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do
Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
apresentou uma série de projetos considerados prioritários para a equipe
econômica para este ano.
Entre eles, está a aprovação do projeto de lei atualmente no
Senado que busca regulamentar o pagamento a servidores, incluindo as verbas
indenizatórias.
Teto constitucional
A remuneração de todos os servidores públicos no Brasil
obedece a um teto, que equivale ao salário dos ministros do Supremo Tribunal
Federal. Em 2024, o teto constitucional era de R$ 44 mil. Segundo a legislação
atual, nenhum servidor pode receber acima desse limite. Neste ano, o teto
passou para R$ 46,3 mil.
Entretanto, tornou-se prática comum o pagamento de verbas de
caráter indenizatório, chamadas de “penduricalhos”. A rubrica contempla uma
série de benefícios e auxílios concedidos a servidores que, ao serem
classificados nesta categoria, não estão sujeitos ao teto remuneratório.
Os dados do CNJ apontam que, nas esferas federal e estadual,
o Judiciário gastou R$ 4,9 bilhões com direitos eventuais como “pagamentos
retroativos” e “licença compensatória”. Além disso, foi gasto R$ 1,8 bilhão com
indenizações. No total, R$ 6,7 bilhões.
Dessa conta, foram retiradas algumas rubricas mais comuns a
demais servidores ou a iniciativa privada, como auxílio-moradia,
auxílio-alimentação, auxílio-saúde e gratificação natalina. Quando considerados
todos valores de indenizações e “direitos eventuais”, o valor chegaria a R$ 12
bilhões.
Para Luciana Zaffalon, advogada e diretora executiva do
Justa, centro de pesquisa que atua no campo da economia política da justiça, os
valores pagos acima do teto atingem praticamente todos os órgãos do sistema de
Justiça, incluindo os Ministérios Públicos.
Teto salarial — Foto: Criação O Globo
— O pacto que o Judiciário está fazendo para introduzir a linguagem simples para se aproximar da sociedade poderia valer também para suas questões orçamentárias. Se tem uma coisa que a gente não consegue fazer é monitorar e entender como tanto recurso flui para as carreiras jurídicas. Cada tribunal pratica determinada linguagem para diferentes benefícios que são definidos e aplicados pelos próprios beneficiários — afirma
Um dos dados levantados pelo Justa aponta que em muitos
estados os gastos com o sistema de justiça cresceram proporcionalmente muito
mais do que o orçamento.
'Licença compensatória'
Para justificar os pagamentos, os tribunais geralmente se
baseiam em decisões administrativas próprias ou do Conselho Nacional de
Justiça. Nos últimos anos, um desses mecanismos que gerou críticas, por
exemplo, foi a chamada licença compensatória, valor pago em dinheiro por folgas
não usufruídas pelos magistrados.
A licença transforma a gratificação por exercício cumulativo
em um dia de folga para cada três trabalhados, que pode ser convertido em
pagamento. Ou seja, o membro do Judiciário é indenizado por não usufruir da
folga e o valor assume natureza indenizatória, fora do teto constitucional. Um
levantamento feito pela ONG Transparência Brasil apontou que, em 16 meses, os
pagamentos dessa rubrica por si só, responderam por R$ 816 milhões.
Sobre a “indenização de licença compensatória”, o CNJ
informou que ela está prevista em uma resolução é uma compensação pelo
exercício cumulativo de atribuições. “O valor corresponde a um terço do
subsídio do magistrado designado à substituição para cada 30 dias de exercício
de designação cumulativa e será pago por tempo proporcional de serviço.
A acumulação ocorre no exercício da jurisdição em mais de um
órgão jurisdicional, como nos casos de atuação simultânea em varas distintas, e
por acervo processual, com o total de ações distribuídas e vinculadas ao
magistrado”, diz o texto.
De acordo com o levantamento, o tribunal em que os
pagamentos extra-teto mais ocorreram, proporcionalmente, foram o Tribunal de
Justiça Militar de Minas Gerais (TJM-MG), com 29 magistrados e R$ 24 milhões
pagos acima do teto, ou seja, R$ 835 mil por magistrado. Além disso, a
reportagem também identificou que em alguns meses de 2024 diversos magistrados
receberam até R$ 100 mil por mês em “Pagamentos Retroativos”.
Judiciário — Foto: Criação O Globo
Procurado, o TJMMG afirmou que todos os pagamentos obedecem
rigorosamente à legislação vigente e às determinações do CNJ. O tribunal disse
ainda que todos os pagamentos realizados respeitam estritamente a
disponibilidade financeira e orçamentária aprovada no Orçamento de 2024, sem
ultrapassar os limites legais de despesas com pessoal.
“Diante disso, o TJMMG informa que os vencimentos recebidos pelos magistrados não ultrapassam o teto constitucional. A remuneração que parece ultrapassar este limite refere-se a pagamentos indenizatórios que incluem, entre outros, diferenças retroativas, indenizações de férias-prêmio e de férias anuais, além de compensações por saldo de dias de crédito. Não representam, portanto, a remuneração regular mensal dos magistrados”,- afirmou o tribunal.
No mesmo estado, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais
responde sozinho pelo pagamento de R$ 953 milhões considerando apenas as folhas
de pagamento em que o rendimento bruto superou o teto constitucional.
Procurado, o Tribunal respondeu que os valores recebidos
pelos magistrados estão amparados na legislação vigente e que guardam
proporcionalidade com os subsídios pagos aos ministros do Supremo Tribunal
Federal.
“Alguns juízes, desembargadoras e desembargadores recebem,
eventualmente, valores adicionais referentes a férias, férias-prêmio não
gozadas ao longo da carreira e acumuladas, além de valores devidos pelo
exercício de suas atividades (plantões, acúmulo de jurisdição... como
exemplos). Trata-se de passivo reconhecido, que é pago conforme a
disponibilidade financeira do Tribunal”, afirmou a Corte.
O GLOBO procurou ainda o Tribunal de Justiça de Mato Grosso
do Sul, o Tribunal de Justiça do Paraná e o Tribunal Superior do Trabalho, mas
não obteve resposta.
Distorções dentro da máquina pública
Para o economista Nelson Marconi, professor da Fundação
Getúlio Vargas (FGV), além do impacto fiscal causado pelo pagamento de valores
acima do teto, os penduricalhos também reforçam a injustiça dentro da máquina
pública. Um relatório do Tesouro Nacional publicado no início de 2024 deixou
isso claro: no Brasil, 1,6% do Produto Interno Bruto é gasto com tribunais. Em
comparação, a média dos países emergentes é de 0,5% e nas economias avançadas é
de 0,3%.
Marconi foi diretor de Carreiras e Remuneração do Ministério
da Administração Federal e Reforma do Estado durante o governo Fernando
Henrique. A pasta foi responsável por formular e implementar a última reforma
administrativa de grande porte no Brasil, em 1998.
— Naquele momento, a discussão já era essa e foi definido
que dentro do teto estariam incluídas as vantagens remuneratórias, já estava
muito claro. Mas eles sempre fazem uma interpretação de que esse tipo de
despesa não está considerado nessa definição que está da lei, definem que está
fora do teto. O teto em si não é um absurdo, mas sim essas vantagens
indenizatórias, que transformam esse valor — afirma.
De acordo com Marconi, embora o fim do pagamento de
penduricalhos, por si só, não resolveria o problema fiscal do Brasil, ele é um
dos motivos que engessam o Orçamento público em relação à capacidade de
investimentos no país.
—
Se você olhar do ponto de vista do gasto, não é uma conta absurda, mas é muito injusta. Considerando a realidade brasileira, não se justifica— diz.
Blog do Paixão