- Author,Edison Veiga
- Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Era domingo. Por volta das 18h de
22 de agosto de 1976, o Opala onde estava o ex-presidente Juscelino
Kubitscheck atravessou o canteiro central da Rodovia Presidente Dutra,
na altura do quilômetro 165.
Desgovernado, o carro, dirigido
pelo motorista e amigo de JK, Geraldo Ribeiro, invadiu a pista do outro lado e,
na contramão, bateu de frente com uma carreta. Os dois morreram.
Quase 50 anos depois, as
investigações do caso serão reabertas nesta sexta, por decisão do governo
federal.
A Comissão sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), organismo estatal ligado ao
Ministério dos Direitos Humanos, fará uma reunião para aprovar uma nova análise
do caso que matou o 21º presidente da história do Brasil.
Desde o episódio, diversas
teorias apontavam para uma conspiração que teria provocado a morte de JK.
Ele teria sido vítima de um atentado político —
e as versões apoiam-se ou na tese de sabotagem mecânica, ou de envenenamento ou
tiro ao motorista.
"Muito do mistério que ainda persiste sobre a morte dele está no fato de que, além das circunstâncias do acidente terem sido suspeitas para a época, houve destruição de provas, tanto para exame dos corpos como do próprio carro, que foi destruído em uma base da polícia",- diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Essa ausência de cuidado e atenção em relação às provas da investigação e o fato de que na época vivíamos em regime militar dificultaram [os esclarecimentos] e levantaram muitas suspeitas em torno da morte do JK."
Crédito,Arquivo Nacional
Legenda da foto,Juscelino
Kubitscheck morreu num acidente automotivo em 1976, num episódio cercado de
incertezas — na foto, o então presidente inaugurava a Refinaria de Petróleo de
Manaus, em 1957
"Há uma série de suspeitas
de familiares, apoiadores políticos, assessores e pessoas próximas de Juscelino
Kubitschek, pessoas dizendo que na época ele havia sofrido várias ameaças de
morte e que a ditadura queria que ele saísse do país", conta à BBC News
Brasil o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola
de Sociologia e Política de São Paulo.
As investigações oficias da
época, com o país comandado por uma ditadura militar, apontavam para um
acidente normal de trânsito, em que o motorista havia perdido o controle do
Opala após tentar ultrapassar um ônibus e colidir com ele. Em 2014, a Comissão
Nacional da Verdade chegou à mesma conclusão.
"Diz-se que o mistério
permanece mas a Comissão Nacional da Verdade fez investigações extensivas sobre
a morte de Juscelino e não encontrou evidências de que teria sido armada uma
conspiração ou um assassinato, digamos logo a palavra crua", afirma à BBC
News Brasil o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade
Federal Fluminense (UFF).
Laudo descarta colisão com
ônibus
A decisão de reabrir as
investigações sobre a morte de JK parte de um outro inquérito. Entre 2013 e
2019 o Ministério Público Federal (MPF) esmiuçou o episódio e, embora não tenha
concluído que houve ação externa para provocar o acidente, descartou que o
Opala tivesse se chocado com um ônibus, como as investigações oficiais
originais apontavam.
Segundo o MPF, a ideia de
atentado contra o ex-presidente era "impossível" ser comprovada ou
descartada, já que "não há elementos materiais suficiente para apontar a
causa do acidente ou que explique a perda do controle do automóvel.".
Um ingrediente adicional se soma
ao caldo dessa história. Então motorista do tal ônibus, Josias Oliveira afirmou
em depoimento colhido em 2013 que, cinco dias após o acidente, recebeu uma
oferta em dinheiro para assumir a culpa — ele foi processado por homicídio
culposo (em que não há a intenção de matar) e absolvido.
Para o procurador da República Paulo Sério Ferreira Filho, "houve falhas severas nas investigações realizadas pelo Estado brasileiro", conforme os autos do processo.
Crédito,Arquivo Nacional
Legenda da foto,'Houve falhas
severas nas investigações realizadas pelo Estado brasileiro', avaliou
procurador da República nos autos de inquérito do MPF sobre a morte de JK — na
foto, em visita às Missões, no Amazonas
Um laudo anexado a esse inquérito
é o ponto principal que motiva a CEMDP a reabrir o caso hoje: um laudo
realizado pelo engenheiro Sergio Ejzenberg, perito e especialista em
transportes.
Ao longo de três anos ele estudou
todas as nuances do caso e elaborou um documento de 222 páginas a respeito do
acontecimento histórico.
De acordo com esse material, a
que a BBC News Brasil teve acesso na íntegra, o ônibus "não estava
trafegando em excesso de velocidade e não teve qualquer participação causal nos
fatos".
"Excluída a participação do
ônibus […] no evento, restou inexplicada pelos laudos […] a causa da passagem
do automóvel Opala par a pista oposta, e também restou inexplicada a rota de
colisão do automóvel, sem frenagem, apontada pelos peritos criminais […]. Isso
tudo ocorreu em trecho retilíneo, após o Opala ter trafegado sem problema por
duas curvas fechadas imediatamente precedentes", pontua o especialista.
"Essa questão central foi ignorada nos laudos […] de 1976 e 1996".
Ele ressalta que a
"investigação sobre sabotagem no automóvel" acabou sendo
"inviabilizada", já que o mesmo acabou sendo desmantelado
"enquanto estava guardado no pátio da Delegacia de Polícia de
Resende", para onde foi levado após o acidente. Ejzenberg escreve que isso
significou a "perda das provas relevantes para o estudo dessa
questão".
Procurado pela BBC News Brasil o
engenheiro afirma que não vai se manifestar fora dos autos. Ele diz que fez a
análise de forma voluntária, a convite do Ministério Público, depois que
"um grupo de professores da Universidade de São Paulo levantou um monte de
incongruências na história".
Pedra no sapato da ditadura
Nascido em 1902, Kubitschek foi
presidente do Brasil entre 1956 e 1961. Era médico e oficial da Polícia Militar
de Minas Gerais.
Sua gestão ficou conhecida pela
construção da nova capital federal, Brasília, e pelo slogan desenvolvimentista
"cinquenta anos em cinco".
Ganhou a alcunha de "pai do
Brasil moderno" — mas se o período foi marcado pela industrialização,
também teve os ônus do aumento da dívida externa e do crescimento da inflação.
Crédito,Arquivo Nacional
Legenda da foto,Gestão de JK
ficou conhecida pela construção da nova capital federal, Brasília, e pelo
slogan desenvolvimentista 'cinquenta anos em cinco'
JK era nome forte para as
eleições presidências de 1965, caso não tivesse ocorrido um ano antes o golpe
cívico-militar que instaurou a ditadura.
No poder, os militares
suspenderam seus direitos políticos, acusaram-no de corrupção e propagandearam
que ele seria apoiado pelos comunistas.
Ao lado do também ex-presidente
João Goulart (1919-1976) e do ex-deputado federal Carlos Lacerda (1914-1977),
foi um dos articuladores da Frente Ampla, em 1967, que se posicionou contrária
ao regime ditatorial.
O historiador Aarão lembra que
esses três políticos, "que poderiam desempenhar um papel importante na
democracia brasileira" em caso de redemocratização, morreram em um
intervalo de nove meses — de agosto de 1976 a maio de 1977. Esta estranha coincidência,
sem dúvida, é o que alimentou — e ainda alimenta — diversas teorias e
questionamentos.
JK pretendia se candidatar à presidência pelo Colégio Eleitoral nas eleições indiretas de 1978. Segundo historiadores, o nome de JK estava dentre os observados pela Operação Condor, trabalho de inteligência e repressão política financiado pelos Estados Unidos que ocorreu nos governos ditatoriais de direita da América do Sul a partir de 1975.
Crédito,Arquivo Nacional
Legenda da foto,JK estava dentre
os observados pela Operação Condor, trabalho de inteligência e repressão
política financiado pelos Estados Unidos que ocorreu nos governos ditatoriais
de direita da América do Sul a partir de 1975 — na foto, no Palácio da Alvorada
com Fidel Castro em visita Brasília em 1959
"Embora ele não tivesse um
papel de liderança naquele momento, caso o regime militar se colapsasse, seria
uma influência que voltaria à tona", avalia Missiato.
"JK era um nome ventilado para reassumir a presidência em um processo democrático quando a democracia voltasse e a sua própria existência seria um apelo ao retorno da democracia",- comenta o cientista político Ramirez.
"JK, na memória popular,
sempre foi um nome muito forte que, certamente pressionaria os anseios dos
cidadãos ao retorno da democracia e seria um nome capaz de vencer uma eventual
eleição caso a democracia retornasse."
Para os especialistas, é
fundamental que estudos cheguem à uma conclusão final sobre o caso. "Ao
entender as dinâmicas do passado, vemos aquilo que queremos contar para o nosso
presente", diz Missiato.
"A meu ver, o tema merece consideração. Eram três grandes líderes políticos [JK, Goulart e Lacerda], morreram em datas muito próximas, em uma conjuntura de redemocratização",- analisa Aarão dos Reis.
"Os partidários do regime
não tinham nenhuma simpatia pelos três e podiam, sem dúvida, temer o impacto da
ação deles, imprevisível, nos acontecimentos que se seguiriam."
O historiador lembra que é
importante "manter o interesse pelo tema" inclusive porque "os
meios técnicos" para as perícias e análises "estão progredindo"
e, "quem sabe no futuro" conclusões mais acuradas serão possíveis,
lançando "novas luzes sobre os acontecimentos".
"É fundamental que haja um
esclarecimento mais evidente a respeito de sobre quais condições houve o
acidente de automóvel que matou Juscelino Kubitscheck", argumenta Ramirez.
"É preciso investigar mais para saber se realmente foi acidente ou se teria sido uma morte encomendada, um acidente provocado com a intenção de matá-lo."
Blog do Paixão