Crédito,Getty Images
- Author,Edison Veiga
- Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Ele é apontado como uma das
personalidades políticas mais influentes do século 20, com uma trajetória
pública que começou nos anos 1920, passou pelas ditaduras do Estado Novo e
do regime
militar e terminaria com sua morte, há 35 anos, em 7 de março de 1990
— com o Brasil redemocratizado.
Luís Carlos Prestes
(1898-1990), militar
e político comunista, soube como ninguém ziguezaguear no espectro
ideológico do Brasil, sem nunca deixar de ser um homem de esquerda.
"Ele deixou um legado de
atitude, assim eu vejo como biógrafo", diz à BBC News Brasil o historiador
Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF) e
autor do livro Luís Carlos
Prestes - Um Revolucionário Entre Dois Mundos.
Contudo, a proximidade e
afinidade de Prestes ao regime soviético faz sombra ao seu legado.
Não há consenso entre
historiadores, mas o socialismo russo, por seu autoritarismo, deixou de 8 a 61
milhões de vítimas, sobretudo sob o comando de Josef Stalin (1878-1953), que
chefiou a União Soviética de 1922 até sua morte.
"A proximidade de Prestes com a União Soviética fica muito intrínseca a partir dos anos 1930, quando ele passou quatro anos lá e voltou ao Brasil na perspectiva de desenvolver uma insurreição armada no país. Ele absorveu muito da estratégia stalinista de revolução armada",- explica à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador do Instituto Mackenzie e autor de tese de doutorado sobre o comunismo no Brasil e no Chile.
E era uma ideia que passava longe
da democracia. "Evidentemente que essa luta armada envolvia políticas de
repressão e perseguição através da lógica stalinista", diz o historiador.
"O stalinismo também foi um movimento totalitário."
"Como ser humano sua
trajetória revela uma pessoa sem ambições de natureza econômica, social e
política", afirma à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez,
professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
"Teria sido ministro,
parlamentar ou governador de destaque, sem nenhuma dificuldade. Não foi.
Permaneceu fiel aos ideários que abraçou em cada momento da vida nacional.
Desta sempre participou com clareza e publicidade de sua opinião e da direção política
que esposava."
"A história de Prestes se
confunde em grande parte com a história política e social do Brasil ao longo do
século 20. Ele é um personagem extremamente complexo e traz uma certa
coerência. Por isso é visto como alguém que não se curvou aos desafios de seu
tempo", comenta à BBC News Brasil o historiador Bruno
Gaudêncio, professor na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e autor de tese
de doutorado sobre Luís Carlos Prestes.
Martinez ainda destaca a
personalidade política de Prestes de "férrea disciplina no combate
ideológico e na defesa de suas ideias".
"Herança do pensamento
positivista, sob o qual foi formado em casa, e pela educação militar",
comenta ele, lembrando que o pai de Prestes era adepto do positivismo.
"Esta herança se compôs,
fácil e rapidamente, com a rígida disciplina do movimento comunista da década
de 1930, no enfrentamento do nazifascismo, na Europa e fora dela. E assim
continuou."
"Como mito político, Prestes
é um dos casos mais complexos e emblemáticos na história do Brasil",
prossegue o historiador.
"A sua mitologia foi
construída e alimentada em tempo real. A longevidade, a perseverança e a
contundência de suas opiniões e posições consagraram 'o velho' como um
militante incansável pela justiça social e a soberania nacional."
Coluna Prestes
Gaúcho de Porto Alegre, Prestes
ganhou fama ao liderar a Coluna Prestes, também chamada de Coluna Miguel
Costa-Prestes. Era um movimento que pretendia "corrigir" a política
brasileira.
Ele tinha sólida formação militar
e fazia parte do Exército desde 1916.
Naqueles anos 1920, quartéis em
todo o país estavam em polvorosa. Os militares reclamavam de suas próprias
condições de trabalho e demonstravam descontentamento com os rumos políticos.
Nesse meio surgiu o chamado movimento tenentista, com revoltas famosas como o
Levante do Forte de Copacabana, em 1922, e a Revoluta Paulista, de 1924.
Em 28 de outubro de 1924, um
grupo de militares se organizou para uma nova mobilização. Sob a liderança do
capitão Luís Carlos Prestes, então comandante do 1º Batalhão Ferroviário de
Santo Ângelo, no noroeste do Rio Grande do Sul, os revoltosos marcharam até o
oeste paranaense, angariando mais forças entre batalhões e cavalarias pelo
caminho.
"[Prestes] Era um dos
revoltados contra aquela república liberal, excludente", pontua Reis. Eles
eram contra o governo federal de Artur Bernardes (1875-1955) e o modelo
conhecido como "café com leite", em que havia alternância no poder do
país entre oligarcas paulistas e mineiros. Lutavam ainda pelo voto secreto e
clamavam por ensino público universal, além de outras pautas como o fim da
miséria e da injustiça social.
Nos dois anos do movimento, a
coluna percorreu cerca de 25 mil quilômetros em todo o país, chegando a reunir
1,5 mil militantes. O movimento acabou por desgaste dos próprios integrantes.
"Prestes e seus companheiros
foram perseguidos pela repressão movida sob o Estado de Sítio do governo do
presidente Artur Bernardes", diz Martinez. Dali saíram figuras influentes
na política brasileira.
Prestes se tornava uma liderança nacional. A essa altura já tinha sido apelidado de "cavaleiro da esperança", epíteto eternizado em biografia romanceada que Jorge Amado (1912-2001) escreveu sobre ele e publicou em 1942.
Crédito,Arquivo Biblioteca Nacional
Legenda da foto,Prestes (D) seria um dos líderes da chamada Intentona Comunista
O partidão
Em 1928, Prestes estava na
Bolívia, exilado depois do fim da coluna. Lá conheceu o marxismo e se tornou um
estudioso das ideologias de esquerda, aproximando-se de militantes
sul-americanos e dirigentes da organização Internacional Comunista (IC).
Depois de ser convidado e recusar
participar da Revolução de 1930 ao lado de Getúlio Vargas (1882-1954), mudou-se
para a União Soviética. Lá, aproximou-se dos líderes do regime socialista,
atuou como engenheiro e estudou os caminhos possíveis para a esquerda.
Em 1934, o Partido Comunista
Brasileiro (PCB) o aceitou como filiado. No mesmo ano, Prestes retornou como
clandestino ao Brasil. Já vivia com a militante comunista alemã Olga Benário
(1908-1942), também integrante da IC.
Prestes seria um dos líderes da
chamada Intentona Comunista, também conhecida como Revolta Comunista de 1935,
Levante Comunista ou Revolta Vermelha. Foi uma tentativa fracassada de golpe
contra o governo de Vargas, em novembro de 1935. O movimento, encabeçado por
militares em nome da Aliança Nacional Libertadora, tinha apoio do PCB.
"A intentona fracassou, logo em seguida veio o Estado Novo. Mas durante algumas décadas o Prestes iria tentar equilibrar a ideia de uma via mais reformista, por parte do PCB. Só que até a denúncia dos crimes cometidos por Stalin, em 1956, ele manteve a defesa da linha stalinista, inclusive com manifestos escritos ou autorizados por ele, divulgados pelo partido, preservando a perspectiva de luta armada",- lembra Missiato.
Em março de 1936, Prestes foi
preso — amargaria o cárcere por nove anos. Sua companheira Olga estava grávida
e também foi presa. Judia, ela foi deportada por Vargas para a Alemanha —
morreria em câmara de gás durante a 2ª Guerra.
"No período da cadeia,
Prestes reviu suas posições e passou a defender uma perspectiva de frente
ampla, inclusive incluindo o próprio Getúlio Vargas, que havia sido o homem que
deportou sua mulher", comenta Reis.
"Isso provocou grande escândalo na época entre os seus partidários, mas ele raciocinava que, politicamente, era preciso construir uma frente nacional contra o nazifascismo."
Crédito,Arquivo Biblioteca Nacional/Coleção Edmar Morel
Legenda da foto,Integrantes da Coluna Prestes reunidos em Foz do Iguaçu em 1924
Política
Prestes acabou anistiado com o
fim do Estado Novo. E entrou para a política convencional. Foi membro da
Constituinte de 1946, comandando a chamada "bancada comunista", que
tinha 14 nomes em suas fileiras. Elegeu-se deputado federal e senador — renunciou
ao primeiro posto e ocupou a cadeira do Senado a partir de 1946.
Mas o breve período de legalidade
de seu partido, o PCB, acabaria em 1947. No ano seguinte, por conta disso, seu
mandato foi cassado e novamente ele voltou à clandestinidade.
Ao longo dos anos 1950 ele e
outros militantes de esquerda debruçaram-se sobre um projeto do que eles
acreditavam ser um desenvolvimento possível do país. "Quando houve a
Declaração de Março de 1958 [do PCB], ele foi um dos signatários", afirma
Missiato.
Nessa época, conforme explica o
biógrafo Reis, Prestes era uma voz que liderava uma nova perspectiva de
mudança: "mais para a transição pacífica para o socialismo", explica.
Com o golpe de 1964, o primeiro
Ato Institucional cassou os direitos de Prestes por dez anos. Novamente
perseguido, o político exilou-se na União Soviética. Durante o período da
ditadura, segundo conta Reis, ele "buscou construir uma terceira via entre
os partidários da luta armada e os partidários da conciliação com a
ditadura".
"Sem sucesso, foi perdendo a
liderança inquestionável que tinha no partido", acrescenta o historiador.
Voltou ao Brasil somente com a anistia, em 1979. No ano seguinte publicou uma
carta rompendo com o PCB.
Ao longo dos anos 1980, foi uma
voz um tanto dissonante no movimento da redemocratização. Chegou a ser muito
assediado por militantes de esquerda para que liderasse um novo grupo
partidário, mas manteve a sua postura de que essa luta deveria ser oriunda da
força popular.
"Na campanha pelas Diretas,
ele sempre dizia: 'vocês estão resumindo a luta a escolher o presidente, mas a
gente quer escolher o presidente para fazer o quê, exatamente?'".
"Ele defendia a necessidade de as esquerdas terem um programa de mudança
para o país", conta Reis.
Nos últimos anos, tornou-se
apoiador, de forma crítica, das candidaturas de Leonel Brizola (1922-2004).
"Mesmo que ziguezaguendo,
ele mantinha uma posição crítica. Acho importante considerar como seu legado
essa ideia de dar ao país uma sociedade justa socialmente, igualitária, aqueles
padrões que eram próprios do comunismo tradicional", comenta Reis.
Ziguezagues
Para os especialistas, Prestes
conseguiu se manter relevante dentro do espectro ideológico da esquerda
brasileira porque soube ler o seu tempo e adaptar seu discurso e suas crenças a
cada momento, sem, contudo, perder o cerne condutor daquilo que acreditava ser
uma sociedade ideal.
"Prestes mudou. Em pelo
menos três momentos as mudanças foram decisivas", argumenta Martinez.
"Primeiro, quando cedeu aos
apelos do liberalismo democrático, que aceitava a insurreição revolucionária
como a saída contra a tirania e os maus governos. Rompeu com a ordem
institucional da caserna e constitucional. Engajou-se nas rebeliões militares
dos anos 1920, liderando a coluna que percorreu o território brasileiro
pregando a moralização da política nacional e a reforma eleitoral."
O segundo momento, explica o
historiador, foi quando ele abandonou o liberalismo político e
"vinculou-se ao movimento comunista internacional, na conjuntura da
revolução de 1930". "Recusou-se a ser o líder militar do
movimento", pontua, lembrando que este foi o período mais longo de sua
trajetória política.
"Manteve-se como dirigente comunista por quase meio século. Nesta condição enfrentou o Estado Novo e a ditadura militar. Viveu na clandestinidade, quase uma década na prisão, consagrou-se, depois, como liderança civil, na eleição para o Senado, em 1946, atuou na Assembleia Constituinte e amargou o exílio após 1964",- recapitula o historiador.
Por fim, o terceiro ato prestista
foi quando rompeu com o PCB, no início dos anos 1980. "Este é o Prestes
mais próximo de nossa época", diz Martinez. "Adotou uma crítica
frontal ao papel conservador, de submissão internacional e de violência
sistemática contra a população, tão tristemente desempenhado pela elite
econômica do Brasil."
Missiato concorda que Prestes foi
"se transformando" com o passar do tempo. "Ele começou como
tenentista, depois, assim como Vargas, tinha um projeto de modernização para o
Brasil. Quando não aderiu ao projeto varguista da Revolução de 1930, já estava
ligado às ideias comunistas", contextualiza.
"O que eu vejo é que, apesar
de um alinhamento com a base do comunismo brasileiro, da estratégica comunista
brasileira do final da década de 1920 até 1980, o Prestes moldou seu projeto
revolucionário de acordo com diferentes projetos de modernização da sociedade
brasileira", analisa. "Por isso ele vigorou durante muito tempo.
Conseguiu dialogar com as transformações que ocorriam."
Missiato vê como negativo o fato
de Prestes seguir se fiando em uma "perspectiva revolucionária em nome de
uma ideologia, de um projeto de poder que fracassou ao longo do século
20". "Portanto, seguidores de um prestismo estão dialogando com um
impossível, um improvável e até com uma ausência da realidade", comenta.
Mas ele elogia sua capacidade de
adaptação estratégica política. "Ensinou muito à esquerda como atuar em
diferentes momentos com suas capacidades, se manter presente, pressionar e
colocar parte de suas pautas em jogo", enaltece.
"Ele não abandonou a ideia
da luta armada e da via revolucionária como instrumento de luta política. Por
isso o PCB perdeu cada vez mais energia no momento da redemocratização",
analisa.
"Apesar de Prestes ter se
tornado um político da via institucional, ele nunca deixou de defender a luta
armada", completa Missiato.
O biógrafo Reis acredita que o
fato de Prestes ter sido o homem-forte do PCB ao longo de tantas décadas
contribuiu muito para que ele tenha sido "relevante na história do
Brasil". "O partido era uma instituição que, apesar de muito perseguida
e de ter existido quase sempre na clandestinidade, tentou elaborar alternativas
junto a outros grupos ao desenvolvimento capitalista que o Brasil ia
assumindo", contextualiza. "E o Prestes firmou-se como o grande líder
do partido que era a maior organização de esquerda [do Brasil]".
"Foi um homem do seu tempo.
Defendeu instransigentemente suas ideias até o fim, que as esquerdas devessem
superar a conciliação e se comprometerem com um programa de mudanças",
afirma Reis. "Ele sempre foi um homem fiel a suas convicções, mesmo tendo
mudado as convicções ao longo do tempo. Cada vez que assumia uma posição ele
assumia todas as consequências. Foi um exemplo de homem decidido, muito
corajoso."
O historiador Gaudêncio acredita
que o grande legado de Prestes está no "seu modo de liderar".
"Foi mais do que uma pessoa, foi uma ideia", comenta.
"Até hoje, 35 anos depois da sua morte, ele é muito destacado. Porque sua vida se confundiu muito com a história política brasileira. Embora ele não tenha sido um protagonista, suas ideias sempre estiveram em evidência", conlcui.
Blog do Paixão