Crédito,Acervo Carlos Miller
Legenda da foto,Sidney Miller era
comparado a Chico Buarque pelo talento e a verve de cronista
- Role,De São Paulo para a BBC News Brasil
No terceiro Festival de Música Popular
Brasileira, na célebre edição realizada em 1967, o prêmio de melhor letra não
foi para Chico Buarque, por Roda Viva, nem para Caetano
Veloso, com Alegria, Alegria, nem para Gilberto Gil,
por Domingo no Parque, tampouco para Edu Lobo e José Carlos
Capinan, por Ponteio, parceria dos dois.
O vencedor foi o carioca Sidney
Miller, então lançando-se nacionalmente, aos 22 anos, com A Estrada e o
Violeiro.
A canção revelava os dotes
poéticos de Miller, que completaria 80 anos em 18 de abril, e tornou-se um
clássico da era dos festivais. No programa exibido pela TV Record,
diferentemente de seus versos, ele não caminhava só para defender a composição.
De smoking, ele desafiava a
própria timidez e as paixões daquele público ao lado de Nara Leão (1942-1989),
cantando dúvidas de um artista e de uma geração.
As imagens mexem com Joana
Miller, filha de Sidney que tinha cinco anos quando ele morreu, aos 35, de
infarto, em 16 de julho de 1980.
"Fico muito emocionada de
ver meu pai tão jovenzinho."
Antropóloga, Joana é professora
na Universidade Federal Fluminense (UFF) e diz "volta e meia" ser
abordada por alunos que conhecem a obra de Miller e lhe perguntam sobre ele.
Surpresa maior ela teve, faz
questão de contar, no momento em que ingressou na faculdade para dar aulas, em
2010. " Tinha pichação no muro, aquelas coisas de universidade, e tinha
uma assim: 'Sidney Miller é um gênio'", relembra. "Falei: "pô,
cheguei no lugar certo".
Quem também é fã do autor de músicas como O Circo e Alô Fevereiro é Paulinho da Viola.
Crédito,Acervo Carlos Miller
Legenda da foto,Sidney Miller com
Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara
Na entrevista dada à BBC News
Brasil, o assunto era Deixa Rolar, composição de Miller que gravou
em seu disco de 1975, quando ele começou a citar uma outra do amigo ao
telefone.
"Nosso amor passou/Eu sei/No
princípio, eu não quis acreditar/Chorei", cantou Paulinho, rememorando o
trecho inicial de Nós Os Foliões, registrada por ele no álbum A
Toda Hora Rola Uma Estória, lançado em 1982. A versão era uma
homenagem póstuma a Miller, a quem conhecia desde os anos 1960.
"Ele me deu a fita: se eu
gostasse, eu gravava", recorda o portelense, que incluiu parte daquela
gravação de Miller como introdução da faixa.
"Esse samba é uma maravilha.
Para mim, uma das coisas mais bonitas do Sidney."
Dono de lírica reflexiva,
melancólica e, ao mesmo tempo, irônica, bem-humorada e lúdica, Sidney Álvaro
Miller Filho era comparado a Chico Buarque pelo talento e a verve de cronista.
Mas o fato de ter gravado apenas
três discos na carreira — Sidney Miller saiu em 1967, Brasil,
do Guarani ao Guaraná, em 1968, e Línguas de Fogo, em 1974 —,
por exemplo, faz o artista nascido no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro
(RJ), ser visto como um enigma às vezes.
Decifrado ou não, Miller apostava
mesmo nas palavras. "Ouça bem o que eu lhe digo: vá cantar um samba
antigo/Pra entender o que há de novo", afirmava ele em Argumento.
O novo era tanto a literatura
("Depois daquele dia, os dias que eu vivi,/Foram feitos de sonho e
alegrias somente", escreve em Ilusão, poema escrito na
adolescência e musicado por Zé Renato, em 2021) quanto o violão, instrumento
que abraça na mesma faixa etária.
Logo, as duas linguagens se
casariam.
Com a ajuda do vizinho e amigo de
escola, o futuro cineasta Paulo Thiago (1945-2021), Miller passa a compor, e o
resultado de uma das parcerias é Queixa, dividida ainda com Zé Kéti
(1921-1999). Interpretada por Cyro Monteiro (1913-1973), a música alcançaria o
quarto lugar no primeiro Festival Nacional de Música Popular Brasileira, em
1965, na TV Excelsior.
O voo solo era uma questão de
tempo.
Nara pede passagem
Sidney Miller e Chico Buarque
tinham um lirismo aparentado e foram universitários. Miller cursou sociologia e
economia, Chico, arquitetura (eles não se formaram nas profissões).
Mas seu maior ponto de conexão
tinha nome e sobrenome: Nara Leão.
Fora a cantora quem lançara Chico
Buarque em seu primeiro álbum de 1966 (depois, naquele mesmo ano, Nara
colocaria na praça o Manhã de Liberdade). Ali, gravou dele Madalena
foi pro Mar, Pedro Pedreiro e Olê, Olá. O nome
do disco? Nara Pede Passagem, retirado do título da primeira
composição assinada exclusivamente por Sidney Miller.
A faixa abria aquele trabalho da
artista, como o carro-chefe, e ganhava corpo enquanto evoluía, até a apoteose.
"Chegou a hora de a escola de samba sair/Deixar morrendo no asfalto uma
dor que não quis/Quem não soube o que é ter alegria na vida/Tem toda a avenida
pra ser muito feliz", diziam seus versos iniciais.
Era a estreia de Miller nos
créditos de uma produção.
"[O físico e músico Nelson] Lins e Barros [1920-1966] me levou a Nara e eu mostrei a música no meio de um bolo de 50 [pessoas]. Ela não causou muita impressão", relembrava Miller em apresentação no programa Especial, da rádio Jornal do Brasil, em depoimento publicado no Jornal do Brasil de 7 de agosto de 1974, um dia após a participação do cantor na atração.
Crédito,Acervo Carlos Miller
Legenda da foto,Primeiro disco
foi lançado em 1967
"A Nara escolheu outras, mas
quando foi no dia seguinte, ela me telefonou e me disse que queria gravar
o Pede Passagem. De certa forma, a música ficou como uma bandeira
dessa fase do Zicartola, do samba na Estudantina, do samba como uma opção para
a bossa nova."
E nos festivais, não era
diferente: se Chico tinha a companhia de Nara para defender A Banda em
1966, Sidney cerrava fileiras com ela para cantar A Estrada e o
Violeiro, em 1967.
Conhecida reveladora de talentos,
Nara unia duas pontas que viviam se cruzando e dariam muito o que falar no
cenário musical brasileiro.
Em Vento de Maio, que
chegou às lojas em 1967, a artista capixaba quase dividia entre os dois o
número de composições gravadas para o álbum.
Das 12 músicas, quatro eram de
Chico Buarque (Quem te Viu, Quem te Vê; Com Açúcar, Com Afeto; Noite
dos Mascarados e Chorinho) e cinco de Miller (Maria
Joana; A Praça; O Circo; Passa Passa Gavião e Fui
Bem Feliz, esta, parceria com o pandeirista Jorginho [1930-2017]).
"Faz parte da história do
meu pai, né? Não tem como separar, não tem como contar a história dele sem
passar pela Nara", afirma Joana Miller, contando ainda que ela entrou até
para a sua família.
"Minha mãe [Jeanne Marie]
sempre falou com carinho da Nara porque a Nara foi madrinha de casamento
deles."
'Faço versos pro palhaço que
na vida já foi tudo'
Para Sidney Miller, o primeiro
disco, de 1967, era "uma espécie de explosão de tudo o que eu já havia
feito", como dizia em entrevista ao Jornal do Brasil, em 7 de agosto de
1974.
Àquela altura, ele começava a
cultivar todo um artesanato musical específico, original, resultando em
composições ao estilo de Maria Joana e Botequim Nº 1.
"Desde 64/65 eu andava com gente de samba como o Zé Kéti e o Cartola
[1908-1980]. O clima em que eu vivia era de samba", explicava Miller em
depoimento ao jornal Opinião de 27 de maio de 1974.
O cantor novato apostava também
em tempos mais puros e ingênuos.
Lançado pela Elenco, a gravadora
de Aloysio de Oliveira (1914-1995), o autointitulado Sidney Miller trazia A
Estrada e o Violeiro e um outro dueto com Nara, chamado Menina
da Agulha.
Era inspirada no folclore
brasileiro, assim como Marré-De-Cy e Passa Passa
Gavião.
"Essas músicas começaram
como lembranças e depois eu gostei mesmo de trabalhar esse material. Ouvia
cantigas do interior, que muitas pessoas trouxeram ao meu conhecimento, e
desenvolvia os temas", explicava ele no depoimento à radio Jornal do Brasil,
em 1974.
"Não era uma pesquisa em
nível de seriedade, mas quase uma brincadeira com o passado, com o que todos
nós temos de lírico e de infantil dentro de nós."
O álbum tinha ainda O
Circo, uma das canções mais conhecidas de Miller, sim, senhor.
Com instrumental remetendo ao
maior espetáculo da Terra, a letra retratava a magia circense e os artistas, o
trapezista, a bailarina, o domador, mas também suas lutas diárias.
"Faço versos pro palhaço, que na vida já foi tudo/Foi soldado, carpinteiro, seresteiro, vagabundo/Sem juiz e sem juízo, fez feliz a todo mundo,/Mas no fundo não sabia que em seu rosto coloria/Todo encanto do sorriso que seu povo não sorria" era exemplo disso.
Em depoimento ao jornalista
Vanderlei Malta da Cunha, que o entrevistou para o programa de rádio gaúcho
Domingo & Arte, em passagem de Miller por Porto Alegre naquele ano de 1967,
o compositor falou sobre sua criação.
"Eu acho que existem dois níveis na música ou, pelo menos, na minha música. Primeiro, um nível descritivo, em que a gente mostra mais ou menos o que a gente vê, o que a gente sente ali na hora, quer dizer, aquela beleza, aquele colorido, aquilo tudo. Agora, por trás daquilo tudo, existe toda uma realidade. Então, num segundo plano, a música desce a essa realidade e procura mostrar a verdade de cada um."
Crédito,Acervo Carlos Miller
Legenda da foto,Após um início de
carreira fulminante e com dois discos completamente diversos em dois anos, o
artista resolve dar um tempo.
Joyce Moreno ama Pede
Passagem, a décima segunda faixa. Tanto que ela cantou uma versão em seu
disco feito na Itália, em 1976, o Passarinho Urbano.
"Era um samba que eu achava
lindo, conhecia da gravação da Nara também. Sempre tive vontade de gravar essa
música. E o Sidney adorou quando viu a gravação. [Quando] cheguei [ao Brasil],
dei um disco para ele", conta à BBC News Brasil, por videochamada.
"Ele amou, ficou muito feliz."
Amiga de Miller, a quem conheceu
em 1967, a carioca não parou por aí.
Convidada por Bia Paes Leme,
coordenadora de música do Instituto Moreira Salles, ela fez um show em
homenagem a Sidney Miller ao lado do violonista Alfredo Del-Penho na sede da
instituição, no Rio de Janeiro, em 2012. No repertório, a íntegra da estreia do
cantor.
"Quando a gente chegou lá,
foi um negócio emocionante porque toda a família do Sidney estava lá",
relembra Joyce.
O registro do show realizado em
17 de abril daquele ano foi lançado pela Kuarup, em 2018, no CD Argumento.
"Na verdade, virou disco um
pouco à nossa revelia — a gente nem imaginou que estava sendo gravado, mas
ainda bem que foi. Fiquei muito contente", conta a autora de Feminina.
Quem dera que a vida nascesse
da tua canção
Em Brasil, do Guarani ao
Guaraná, seu álbum seguinte, igualmente editado pela Elenco, em 1968,
Sidney Miller escalou um time de respeito.
Para começar, o romancista e
poeta Mário de Andrade (1893-1945) aparecia em forma (na imagem de um busto) e
conteúdo na contracapa.
Entre os quatro trechos da lavra
do escritor pinçados por Miller, o primeiro deles, de 1924, afirmava "Faz
muitos anos que, escutando amorosamente o despontar da consciência nacional,
cheguei à conclusão de que se esta alguma vez já se manifestou com eficiência
na arte, unicamente o fez pela música".
Em meio ao surgimento do
Tropicalismo e ao discurso da antropofagia cultural, então em voga, o
compositor apontava para "um outro projeto de Brasil, uma visão de Brasil
pensada a partir do Mário de Andrade" de acordo com o historiador Tiago
Bosi Concagh.
Mestre em história social pela
USP (Universidade de São Paulo), defendendo a tese Pois é, pra quê:
Sidney Miller e Sérgio Ricardo entre a crise e a transformação da MPB (1967-1974),
ele fala com paixão de Brasil, do Guarani ao Guaraná em
encontro com a BBC News Brasil, em São Paulo.
"Não adianta você falar de 1967, 1968 sem falar desse disco. Sidney Miller é uma chave interpretativa desse Brasil da passagem para os anos de chumbo, desse Brasil que acreditava ainda que ia sair da ditadura, dos festivais, dessa emoção, desse frisson, para esse Brasil que a gente vai ter nos anos 1970, dessa coisa massificada, da ditadura também."
No álbum, Miller desfilava
sambas, como Quem Dera, interpretado pelo grupo MPB4, dos versos
"Levanta que toda a cidade te espera/Quem dera que a vida, quem
dera/Nascesse da tua canção".
Mas havia espaço para marchinhas,
que tanto abriam o álbum, com História do Brasil, de Lamartine Babo
(1904-1963), famoso por sucessos do Carnaval e os hinos dos grandes clubes
cariocas de futebol, quanto o fechavam, caso de Cidade Maravilhosa,
do compositor e radialista André Filho (1906-1974). Poderia ser lido até como
um musical.
E era uma reunião de talentos, na
mesma vibração de Tropicália ou Panis et Circencis.
Assim, enquanto Paulinho da Viola
cantava Filosofia, Oberdan Magalhães (1945-1984), que anos depois
montaria a Banda Black Rio, e Paulo Moura (1932-2010) tocavam em Choroso.
Da mesma forma, Jards Macalé era
convidado a gravar Seresta e a assinar o arranjo de três
faixas. Em uma delas, Gal Costa (1945-2022) emprestava sua voz para Ora,
Acho que Vou-me Embora, em outra, Gracinha Leporace interpretava Valsa,
e, por fim, Nara dava as caras de novo, desta vez em Maria.
Com papel importante no disco,
Macalé era um velho parceiro de Miller, amigo que conheceu em 1963, como ele
conta em entrevista, por telefone. "Um doce de criatura."
Para o cantor e compositor, não
havia ali uma crítica ao movimento que mudou bases da música brasileira e ao
qual o próprio Macalé também se ligava. "Era uma espécie de Tropicalismo
para ele, entendeu? Seria talvez um manifesto tropicalista para ele, no
caso."
O álbum (o único dos três a nunca
ter contado com edição em CD e o único até hoje fora dos serviços de streaming)
contava ainda com uma música que ganhou status de clássico.
Pois É, Pra Que? era
cantada por Miller, começava e terminava com um assobio melodioso, entremeados
por versos reflexivos. "O calor aumenta, a família cresce/O cientista
inventa uma flor que parece/A razão mais segura pra ninguém saber/De outra flor
que tortura."
A canção, na opinião de Bosi
Concagh, é existencialista, com críticas ao consumismo e à alienação. "O
Sidney está falando sobre a indústria fonográfica, sobre a televisão. Esse
garoto que veio do nada, entendeu? Ele tá fazendo uma crítica a essa mídia que
cria astros, que começa a virar esse star system americano", explica.
"Eu acho que o Sidney Miller está olhando para tudo isso: o homem que chega à Lua, a flor estranha, ele está pensando também em Hiroshima, ele está pensando nessa tecnologia, nessa tecnocracia, nessa burocracia que está sendo empurrada para nós goela abaixo."
Crédito,Acervo Carlos Miller
Legenda da foto,Aos 35 anos,
Miller teve um ataque cardíaco ao misturar remédios e álcool
Quem eu sou, o que devo fazer
e o que eu não fiz
Em 1968, Miller fazia uma
temporada com três outros artistas no Teatro Casa Grande. No espetáculo Catiti
Catiti, ele se apresentava com Guttemberg Guarabyra, o grupo Momento Quatro e
Joyce Moreno, cada um deles fazendo o seu show.
Para o último dia de
apresentações no espaço, o diretor Paulo Afonso Grisolli (1934-2004) deu
liberdade de roteiro aos músicos, perguntando o que gostariam de fazer na
ocasião.
"Eu fiz uma coisa lá meio
teatral, com o Momento Quatro, o Gutt cantou Margarida e, no
final, quebrava o violão que nem o Sérgio Ricardo [1932-2020], o violão que não
era nem dele. Ele quebrava porque estava implicando com a música, com o
sucesso, com o próprio sucesso", recorda a cantora, fazendo referência à
histórica performance de Sérgio Ricardo em Beto Bom de Bola, no
terceiro Festival de Música Popular Brasileira, em 1967.
"E o Sidney, o que o Sidney
quis fazer? Ele pediu para fazer o show todo dentro da cabine de luz, para
ninguém ver. Ficou e cantou de lá, fez o show todo lá. A gente ouvia, mas não o
via", relembra Joyce, aos risos, um causo de Miller que ela presenciou e
adora contar.
O episódio mostra uma reiterada
timidez do compositor, que não era propriamente fã de subir aos palcos.
Contudo, o exemplo pode dar outras pistas sobre a personalidade dele.
"Tem esse outro lado dele
que era esse tipo de humor também, sabe? Alguma coisa que ele falava tinha
sempre algum sentido humorístico. Alguma piada, alguma coisa assim de
momento", explica Paulinho da Viola, que, ao ouvir a história na conversa
com a BBC News Brasil, caiu na gargalhada.
"Eu me lembro dele rindo
baixinho, baixinho. E falando alguma coisa engraçada que ele tinha observado,
que ele tinha percebido naquele momento."
Esse também poderia ser o caso de
uma declaração de Miller publicada no jornal Correio da Manhã, em 26 de janeiro
de 1968, e que se tornou conhecida. Ele considerava ser o "cantor mais
desajeitado do Brasil" na reportagem Teoria e prática de Sidney Miller.
"O dia que eu levantar o
braço, toda a plateia vai olhar para cima para ver o que eu estou
apontando."
Então, após um início de carreira
fulminante e com dois discos completamente diversos em dois anos, inclusive, em
atenção do público, resolve dar um tempo. "Parar foi uma necessidade
interior, para ordenar as coisas dentro de mim", explicava na matéria
Sidney Miller: o que eu quero ser mesmo é carioca, do Diário de Notícias de 1º
de maio de 1974.
Mas isto não significava sumir.
Foi assim que, por exemplo, produziu um disco da sempre parceira Nara, Coisa
do Mundo, de 1969; cuidou da parte musical de espetáculos teatrais
como Alice no País Divino Maravilhoso, de 1970; criou a trilha
sonora para o filme Os Senhores da Terra, do mesmo ano, dirigido
pelo amigo Paulo Thiago, e fez sucesso em 1971 com É Isso Aí, dos
versos "Só que tem que eu tô numa tão certa/Que ninguém me diz/Quem eu
sou, o que devo fazer/E o que eu não fiz", cantada por Dóris Monteiro
(1934-2023).
Enquanto não voltava a gravar
suas composições, seguia como um "biscateiro de música".
Pra onde vai o som depois que
o escutamos?
Quando Miller lançou Línguas
de Fogo, em 1974, Paulinho da Viola tomou um susto. "Era diferente de
tudo que ele tinha feito até então", afirma ele.
A estranheza inicial, no entanto,
não impede o cantor de considerá-lo "lindo".
"[Esse disco] é um conceito
diferente. É como se fosse uma procura de uma outra linguagem, de uma nova
linguagem para ele."
Seis anos depois de seu segundo
disco, Brasil, do Guarani ao Guaraná, Sidney Miller retornava com
outra proposta sonora. Aos 29 anos, a hora era do rock e da música pop.
Lançado pela Som Livre, o álbum
trazia novidades até na capa: o artista estava cabeludo e vestia calças boca de
sino, o design e o visual da imagem tinham um tom hippie.
"Não há motivo para a gente
se limitar a um determinado gênero musical quando a gente vive numa época, num
lugar e numa cultura onde há um instrumental fartíssimo à nossa
disposição", argumentava Miller no jornal Opinião, na edição de 27 de maio
de 1974.
As experimentações iam de Espera,
misto de congada, folk e rock progressivo, a Alô, uma espécie de
viagem, com órgãos pilotados por Tenório Jr. (1941-1976), servindo de trilha
sonora para uma história aparentemente simples de amor e paixão.
Segundo o próprio Miller, a
guinada era natural e relacionada a experiências profissionais. "Essa
concepção tem muito a ver com meu trabalho de dois anos e meio no Museu de Arte
Moderna, onde, com o professor Klauss Vianna [1928-1992] e Teresa D'Aquino, no
curso Corpo Som Imagem, fui seduzido pela capacidade que as pessoas têm de
retransmitir as informações sonoras que recebem", contava ele no mesmo
depoimento ao Opinião.
Para o historiador Tiago Bosi
Concagh, havia outro elemento ali: o Clube da Esquina. "Ele
entende que, com esse projeto instrumental, é possível fazer esse universal
popular sem perder o amálgama nacional."
Quem acessa a ficha técnica
percebe um número considerável de nomes ligados ao som criado em Minas Gerais.
Em Línguas de Fogo, colaboraram com Miller o baterista Robertinho
Silva, o flautista Danilo Caymmi e os baixistas Novelli e Luiz Alves, além do
pianista Tenório Jr.
Isso sem contar o diretor musical
do disco. "Toninho Horta, o líder de conjunto, tem uma responsabilidade
muito grande no trabalho. Pela capacidade que tem de sintetizar os sons e de
incluir o ritmo, ele pôde conduzir o grupo", explicava Miller em matéria
do Diário de Notícias publicada em 1º de maio de 1974.
Em entrevista à BBC News Brasil,
por telefone, Horta conta que já era fã de Sidney Miller e de O Circo quando
chegou ao estúdio para gravar com ele. "Eu lembro que gostei demais desse
trabalho. E ele me deu liberdade total, falou "Não, Toninho, coloca aí o
que quiser, vai ficar lindo". Aí aproveitei, fui colocando tudo o que eu
gostava assim de ideia, e ele apoiou."
A faixa-título conta com a
guitarra de Toninho Horta ("com distorcedor, que era o que eu tocava no
Som Imaginário", acrescenta ele), dando uma moldura psicodélica para a
letra de versos como "Pra onde vai o som/Depois que o escutamos?/Pra onde
vai a voz que vem de nós?/Pra onde vamos?".
A inspiração para Línguas
de Fogo nasceu em um sítio em Teresópolis, no Rio de Janeiro, enquanto
Miller olhava a lareira à noite. "Vi que as chamas não tocavam a madeira,
ela foi escurecendo, diminuindo e se transformando", declarava ele ao
Opinião, em 1974.
Ele não demoraria a imaginar
novas ideias, sempre em transformação.
Nosso amor foi lindo como um
carnaval qualquer
Sidney Miller era funcionário da
Funarte (Fundação Nacional das Artes), trabalhando no Departamento de Projetos
Especiais, quando foi encontrado morto em sua residência, no Rio de Janeiro.
Aos 35 anos, teve um ataque cardíaco ao misturar remédios e álcool.
Enquanto pensava e montava a
programação da Sala Funarte, que depois seria batizada com seu nome, ele
sonhava também com o novo projeto.
Sem encontrar uma casa para
gravá-lo, a saída era lançar um álbum de forma independente e, dessa forma,
Miller já começara a listar as músicas e os envolvidos na produção. Entre eles
estavam o pianista e arranjador Antonio Adolfo e o violonista e guitarrista
Cláudio Jorge.
"Inclusive, pelas anotações,
parece que Tom Jobim [1927-1994] ia fazer uma participação no disco",
conta o fotógrafo Carlos Miller, filho caçula de Sidney e guardião do acervo do
pai.
Para Joyce, Miller se tornou um
dos grandes compositores da música brasileira ainda que tenha ficado oculto
"no sentido de que foi uma pessoa que teve um apagamento, sim".
Quando questionada a respeito do
legado de sua obra, ela a compara com uma "joia escondida ali na
concha" e também à herança de outro cantor. "Como a obra do [Dorival]
Caymmi [1914-2008]: pequena, mas toda perfeita."
Blog do Paixão