E lá
vamos nós, outra vez. Tal qual na deposição de Fernando Collor, tal qual na
denúncia dos anões do Orçamento, tal qual nas vitórias eleitorais de candidatos
ou partidos nas quais se vislumbrava a vitória da ética e dos bons costumes,
eis-nos embalados pela esperança de que agora vai, agora é para valer, o país
superou uma etapa e galgou um novo patamar civilizatório. Nenhuma dúvida de que
o julgamento do mensalão representa uma virada de página. Jamais tantos e tão
notáveis réus foram condenados. A questão é saber se o movimento iniciado pelo
Supremo Tribunal Federal é “sustentável”, para tomar emprestada uma palavra
mais frequente no repertório dos economistas e ambientalistas. Nesse ponto, o
passado nos condena. Em seguida ao caso Collor imaginou-se que estava
exorcizado o risco de alguém tentar algo parecido. Da perspectiva de hoje,
transparece que não poucos candidatos e partidos enxergaram ali um modelo de
conquista e manutenção do poder muito útil, desde que executado sem tanta
ostentação e despreparo, além de muito proveitoso para o patrimônio pessoal.
A
ministra Cármen Lúcia, a admirável campeã dos votos curtos e da economia na
erudição e na retórica, protagonizou um grande momento, na sessão da última
terça-feira, ao insurgir-se contra a tese da defesa do ex-tesoureiro do PT
Delúbio Soares. A ministra lembrou que o advogado de Delúbio, Arnaldo
Malheiros, afirmara que o cliente não negava ter operado no caixa dois. E por
que operara no caixa dois? Ora, acrescentou o advogado, porque a origem do
dinheiro era ilícita. Cármen Lúcia disse que nunca, em sua vida profissional,
vira alguém comparecer a um tribunal para confessar um crime, e sugerir que sua
prática é normal. “O ilícito não é normal”, continuou. “Caixa dois é crime,
caixa dois é uma agressão à sociedade brasileira. Fica parecendo que ilícito no
Brasil pode ser praticado, confessado e que tudo bem. Não está tudo bem.”
O mote da
ministra pode ser aproveitado em outras situações da vida brasileira, pública e
privada. No Brasil, “é normal” subornar o guarda de trânsito assim como “é
normal” os profissionais liberais perguntarem se o cliente quer fazer o
pagamento com recibo ou sem recibo (eles também praticam o caixa dois). Na vida
pública, “é normal” fatiar o ministério entre escusos parceiros e mais “normal”
ainda satisfazer com rendosas diretorias de estatais a cobiça dos aliados. O
julgamento do mensalão coincidiu com a campanha para as eleições municipais, e
o que se viu na campanha? O PT em São Paulo aliou-se a um político que não pode
pôr o pé para fora da ilha de sossego chamada Brasil porque, sendo procurado
pela Interpol, em qualquer outro país se arrisca a ser preso. Apresentaram-se
como candidatos, pelo país afora ─ como “é normal” ─ representantes de partidos
que funcionam como estandes de venda de si mesmos. Nas negociações para as
alianças do segundo turno, não se discutem, e nem sequer se finge discutir,
convergências de programas. O que ocorre ─ como “é normal” ─ são transações em
torno de cargos e outras vantagens, algumas ilícitas, “e tudo bem”.
O saldo
maior do julgamento do Supremo Tribunal Federal é a defesa do estado
democrático de direito. Por não acreditar nele, o PT tentou revogá-lo, ao
revogar o Congresso pelo suborno. O projeto, como disse o presidente do
tribunal, Carlos Ayres Britto, era de poder, não de governo, o que implicava
uma trampolinagem nos constrangimentos impostos pelas instituições. A
investigação que embasou o julgamento não foi longe o suficiente, no entanto,
para rastrear o destino final dos muitos milhões de reais envolvidos no caso.
Ficou nos líderes e presidentes de partidos que recebiam as quantias e não
apurou a quem teriam sido redistribuídas. Não só muita gente ficou de fora,
como não se fixaram as bases para requerer a devolução do dinheiro. Como não “é
normal” em episódios do gênero no Brasil, os réus foram condenados; mas, como
“é normal”, o dinheiro escapou.
O caminho
aberto com as condenações do mensalão será sustentável, entre muitas outras
premissas, quando as condenações incluírem a devolução do dinheiro. Ou quando
os partidos se empenharem em coligações baseadas em programas e não em
fisiologia. Ou ainda quando, em seguida a um episódio como este, elegermos um
Congresso melhor. E será, pobres de nós, não quando cada um desses fatores se
impuserem isoladamente, mas quando todos ocorrerem simultaneamente. Árduo é o
percurso que ainda temos pela frente.
Artigo de Roberto Pompeu e Toledo Colunista da Revista Veja
Blog do Paixão