As marchinhas políticas que inundaram o Carnaval refletem o cisma do país. Felizmente, em tons mais galhofeiros
SÉRGIO GARCIA COM BEATRIZ MORRONE
Se fôssemos botar numa cápsula do tempo apenas uma canção que sintetizasse os tempos atuais do país, ela não viria de nenhum dos medalhões da MPB, muito menos dos nomes de maior apelo junto ao grande público. A música tema de nossos dias leva o jamegão de um grupo de compositores obscuros, que se inspiraram num personagem onipresente do noticiário: o agente da Polícia Federal Newton Ishii, famoso por escoltar os acusados da Operação Lava Jato rumo ao xilindró. Só quem acaba de desembarcar de Marte não reconhece os versos Ai, meu Deus, me dei mal/Bateu na minha porta o japonês da Federal, cujo clipe caseiro soma mais de 6 milhões de visualizações nas redes sociais.
O inesperado hit impulsionou outros autores a fazer o mesmo, resultando numa enxurrada de marchinhas de viés político nesteCarnaval. Saem de cena as pastorinhas, a colombina e a mulata bossa-nova, substituídas por uma categoria de “musas” inéditas:petrolão, pedaladas, Cerveró, Cunha e Lula. Diga-se que todos eles se prestam a uma infinidade de rimas.
Nem mesmo a folia, porém, conseguiu contornar a polarização que domina o debate político. A divisão do país se reflete também nesse terreno – mas, felizmente, em tons mais galhofeiros e menos grosseiros que o das discussões travadas habitualmente nas redes sociais. É preciso inteligência para fazer piada – da mesma maneira que a grosseria e o mau humor são, em geral, sinais de falta dela.
Há as marchinhas “petralhas” e, do outro lado, as “coxinhas” . Duas delas tornaram-se o símbolo desse cisma carnavalesco. A “Marchinha do Japonês da Federal” virou uma espécie de hino da turma de oposição. O grupo alinhado com o governo elegeu “Não enche o saco do Chico”, que trata do famoso bate-boca travado na rua pelo cantor Chico Buarque. Há, inclusive, enquetes na internet para saber qual delas é a melhor. “Sou crítico deste governo”, diz o administrador de empresas mineiro Vitor Velloso, um dos autores da canção sobre Chico. “Mas o ódio chegou a um ponto que você não pode nem demonstrar que gosta de uma pessoa. Nossa letra é contra a intolerância.”
Para adicionar fervura ao embate, o japonês da Federal, apesar de toda a popularidade, não ficou sequer entre as dez finalistas doconcurso de marchinhas da Fundição Progresso, no Rio de Janeiro. Segundo os organizadores da competição, ela não passou pelo crivo dos jurados, ao contrário de “Não enche o saco do Chico”, selecionada para a final. O advogado paulista Thiago Vasconcellos, um dos autores da composição preterida, desconfia de uma motivação ideológica no corte. “Fomos eliminados de um modo estranho, ainda mais em se tratando de um concurso que se propõe a divulgar o gênero”, diz ele. “O radicalismo petralha versus coxinha está dentro de tudo, é chato demais.”
Marco Aurélio Nogueira, professor de teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), pondera que a polarização, na verdade, é uma caricatura do debate político. “E nada melhor para incentivar o espírito carnavalesco das pessoas do que uma caricatura que aparece na vida real.” Essa é uma boa explicação para a atual torrente de marchinhas políticas. O concurso da Fundição Progresso, que está em sua 11ª edição e é o mais abrangente do país, dá bem a dimensão do furacão temático que invadiu a agenda carnavalesca. Quase 70% das 861 músicas inscritas neste ano tinham como tema nossa classe de governantes e parlamentares, com foco nas maracutaias rotineiras, no mar de lama de Mariana e nas prisões decorrentes da Lava Jato.
É uma tendência que já vem de temporadas anteriores, mas que agora assumiu proporções “impressionantes”, como enfatiza Vanessa Damasco, produtora da Fundição e organizadora do torneio desde sua primeira edição. Determinados autores pesaram a mão, e se deram mal. De cara, a comissão avaliadora cortou concorrentes panfletários demais, que pareciam jingle de campanha eleitoral. “Quando a música tem muito ranço, não dá. Algumas delas eram agressivas demais e caíram logo na primeira audição”, diz Vanessa.
A nova leva de marchinhas encontrou nas redes sociais a plataforma ideal para sua urgência temática. Se na era do rádio decorria um grande intervalo entre a canção ser feita e ganhar difusão nacional, agora o hiato é mínimo. Essa agilidade propicia a piada instantânea, uma característica dessa nova safra carnavalesca. No mesmo dia em que o vice-presidente Michel Temer enviou uma carta à presidenteDilma Rousseff para discutir a relação entre os dois, o grupo de parceiros responsável pelo hit do japonês compôs uma marchinha inspirada no episódio. No dia seguinte, ela estava disponível na internet, acessível em qualquer parte do planeta. “As redes são, dominantemente, um espaço de diversão, comércio ou comunicação com conhecidos e desconhecidos. Tudo aquilo que se encaixar nessas esferas terá mais repercussão do que algum tipo de reflexão, informação ou sugestão”, avalia Marco Aurélio Nogueira.
Noves fora o tom ofensivo de uma minoria, as marchinhas ganham popularidade fundamentalmente porque são divertidas sátiras de personagens e situações do dia a dia. “A marchinha é uma crônica do cotidiano. É natural que agora ela fale de política e economia, assuntos que estão na ordem do dia”, diz a historiadora Rosa Maria Araújo, autora, ao lado do jornalista Sérgio Cabral, do musical Sassaricando, sobre as marchinhas do Carnaval do Rio, há dez temporadas em cartaz. “Ela é sucinta como uma tirinha de jornal”, diz o cantor e pesquisador Pedro Paulo Malta, que integra o elenco do espetáculo.
Como toda piada imediata, essas músicas nascem num estalo e têm a marca do improviso. Foi numa noite de libação que o advogado paulista Thiago Vasconcellos e parceiros conceberam “Japonês da Federal”. Como ele próprio define, foi um pingo que provocou um tsunami. Composta numa roda de bar, ela foi gravada no dia seguinte, na carona de uns amigos que gravavam um disco em estúdio. Com o estouro na internet, o grupo na mesma semana assinou contrato com a Irmãos Vitale, editora musical de conceituados autores. Atento ao filão, Vasconcellos criou o grupo Marcheiros do Brasil, que já enfileirou uma produção em série, que atende pelos nomes: “Bar do Cunha” (Vamos todos tomar no Cunha), “Santo Cagueta no terreiro de pai Lu de Oxalá” e “Tia Wilma e a bicicleta”.
A engrenagem criativa não para de girar. Na semana passada, o hit mais badalado nas redes sociais foi a impagável “Papa Luiz 51”, na voz do sambista paulista Boca Nervosa. De seu repertório faz parte também “O triplex é meu”, uma zombaria em torno do apartamento polêmico destinado pela OAS ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. (Se não tem dono, o triplex é meu/Ou o dono sumiu ou o laranja morreu).
A origem das marchinhas remete à virada do século XIX para o XX. Esse ritmo binário ganharia o influxo do teatro de revista, das chanchadas musicais e do rádio, consolidando-se como o hino do Carnaval das ruas e dos salões. “As marchinhas contam a história do Brasil dos anos 1930 em diante”, diz o pesquisador Assis Ângelo. Poucos foram os políticos em evidência que escaparam da troça musical. O presidente Getúlio Vargas inspirou diversas canções carnavalescas, mais favoráveis que contrárias a ele. A mais conhecida delas é “O retrato do velho” (Haroldo Lobo e Marino Pinto), uma celebração da volta de Vargas ao poder, na década de 1950. Os presidentes Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros, o facínora Hitler, o imperador japonês Hirohito e até o líder chinês Chiang Kai-shek foram alvo de canções.
A partir dos anos 1970, no entanto, as marchas perderam espaço para o samba-enredo e, nas décadas seguintes, para o axé baiano. “O interesse pelas marchinhas diminuiu à medida que os bailes deixaram de ser as maiores atrações de Carnaval”, diz o musicólogo Zuza Homem de Mello. “Os bailes geravam uma renda para os autores das marchinhas porque propiciavam uma fiscalização do que era tocado. Conforme foram minguando, os grandes autores se desmotivaram.”
Agora, na esteira do sucesso dos blocos, as marchinhas ensaiam uma revitalização. “Estamos recuperando uma tradição”, diz o produtor Kuru Lima, mentor do concurso de marchinhas Mestre Jonas, em Belo Horizonte, que também se viu inundado da temática política. Nem mesmo o veterano João Roberto Kelly, remanescente da fase de ouro, ficou imune ao enredo. No Brasil em que o beijo homossexual está no horário nobre da TV, ficou anacrônico desconfiar da cabeleira do Zezé ou dos modos da Maria Sapatão. Aos 77 anos, Kelly acaba de compor “Cadê meu dinheiro?”, bem-humorado protesto sobre a penúria do brasileiro. “Estamos vivendo um momento muito complicado no país. Essa novela vai durar e render muitas canções”, diz ele. Nada como o ritmo acelerado das marchinhas para acompanhar a batida do Brasil dos escândalos em série.
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