Em Pernambuco, estado líder em casos de microcefalia, famílias se unem
para batalhar pelo desenvolvimento e pelos direitos dos filhos com essa
condição
Jaqueline Silva cuida do filho Daniel, de quatro
meses, que nasceu com 29,5 cm de perímetro cefálico: “Se Deus me deu Daniel, é
porque tenho condições de segurar o tranco” diz
Enquanto conta sua
história, Susana da Silva busca uma posição confortável para Willian, que
descansa em seu braço esquerdo. Logo depois do parto, em janeiro, a médica
levantou a suspeita de microcefalia, uma vez que o recém-nascido tinha 32
centímetros de perímetro cefálico, próximo à medida que a Organização Mundial
de Saúde (OMS) classifica a anomalia: 31,9 cm para meninos, 31,5 cm para
meninas.
A notícia pegou de
surpresa a mãe, que julgara o filho saudável. A tomografia identificou pequenas
manchas brancas espalhadas pelo cérebro – calcificações que confirmaram a
hipótese. “Quando soube, foi como se meu mundo tivesse acabado”, conta a
recifense de 25 anos. “Mas hoje vejo que não é bem assim. Apesar do cansaço
físico e psicológico, a gente tem que continuar.”
Já é noite de
sábado em Recife (PE) e Susana enfim consegue descansar. Senta-se na sala de
estar de sua casa, com o marido, Anderson José, 32, e a filha, Ana Beatriz, de
quase 2 anos. A família vive semanas intensas desde o nascimento de Willian. De
ônibus, a mãe encara diariamente uma maratona de hospitais. O pai, padeiro,
trabalha de domingo a domingo. Enquanto isso, a filha tem de ficar com a avó
paterna.
Mães e pais aprendem técnicas para estimular seus
bebês com microcefalia em um grupo na Fundação Altino Ventura – “Por conta da
inflamação pelo vírus, o cérebro do bebê tenta crescer, mas não consegue” Dra
Ângela Rocha
“É tanta correria
que às vezes você quer parar, desabafar um pouco, mas nem tempo para isso tem,
e fica aquela coisa guardada”, diz Susana. “Tem que pensar positivo, que ele
pode ter uma vida normal”, completa Anderson. O otimismo do casal justifica-se
pelas conclusões médicas. Uma neurologista, por exemplo, disse que se trata de
uma calcificação leve e tudo indica que Willian evoluirá. “Isso é o que alivia
mais – pensar que ele vai progredir, andar, falar”, afirma Susana. “Os médicos
mesmo dizem”, emenda Anderson, “que ele terá uma vida melhor se forem feitas as
consultas precocemente”.
Nos últimos seis
meses, Susana e Willian passam as manhãs de quinta-feira na Fundação Altino
Ventura (FAV). É quando funciona um centro de reabilitação multidisciplinar,
gratuito, para crianças com microcefalia. “É difícil predizer o futuro de cada
bebê”, observa Kátia Guimarães, pediatra e diretora médica da FAV. “Neste
momento, a única maneira de ajudar é atuar em todas as potencialidades, e as
famílias precisam estar motivadas. A gente sente cada vez mais amor delas pelos
filhos.”
Até meados de maio,
113 bebês estavam inscritos no programa e 122 aguardavam vaga. Os doutores
estudam a causa da anomalia por meio de exames (tomografia,
eletroencefalograma, eletrocardiograma, exame do líquido cefalorraquidiano). Além
disso, grupos de empoderamento e apoio, frequentados por 72 pais, trabalham o
desenvolvimento precoce das crianças, com estímulo visual e neuropsicomotor, e
promovem sessões de terapia.
Evolução gradual
Com o tratamento,
Susana tem sentido a evolução do filho. “Nos dois primeiros meses de vida, ele
era mais durinho, não sorria. No terceiro já começou a melhorar”, conta ela,
enquanto mostra os exercícios que aprende na FAV e põe em prática em casa. Um
brinquedo colorido serve para o aspecto visual; outro, com textura, aguça o
lado sensorial e trabalha os músculos ao deslizar pelo corpo do filho; o
chocalho ajuda na audição; já a luz da lanterna contribui para acompanhar, com
foco, os movimentos. Sobre a mesa redonda de jantar, Willian solta gargalhadas
durante a fisioterapia. “Se a cada mês tem uma evolução, há esperança, né? A
nossa felicidade é ver o avanço dele.”
Susana e a família
vivem na Várzea, um bairro simples de Recife, cortado por estreitas ruas de
terra batida. Na região, o mosquito Aedes aegypti fez boa parte da vizinhança
adoecer, em meados de 2015. Susana passava para o quinto mês de gravidez quando
teve coceira e olhos avermelhados. Fez um hemograma que indicou relação com
algum tipo de vírus, mas descartou dengue e chikungunya. Na época, o zika – um
vírus descoberto, em 1947, em Uganda, África, batizado com o nome da floresta
no qual fora encontrado – entrava de vez no debate de saúde pública nacional. O
tipo que circula no Brasil, por sua vez, tem origem asiática e provavelmente
veio da Polinésia Francesa, onde houve uma epidemia de zika entre outubro de
2013 e abril de 2014.
A tomografia nas mãos da mãe, Susana, mostra que as
calcificações no cérebro de Willian indicam microcefalia leve – “Se a cada mês
tem uma evolução, há esperança, né? A nossa felicidade é ver o avanço dele.” ,
diz.
Em abril de 2015, o
Ministério da Saúde confirmou a transmissão autóctone do zika, cujo vetor é o
Aedes. No início de setembro, apareceram os primeiros casos de bebês com
microcefalia ou outras malformações.
O quadro clínico
dos recém-nascidos era bem mais agressivo que o histórico da anomalia e não
seguia um padrão, recorda Ângela Rocha, 67, coordenadora do setor de
infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz. Ângela pega um
resultado de tomografia no armário e passa o dedo indicador sobre os pontos
brancos nos crânios das imagens. São as calcificações, explica, espécies de
cicatrizes que indicam que houve infecção viral. “O vírus entra na corrente
sanguínea da mãe e se multiplica no feto. Por conta da inflamação, o cérebro
tenta crescer, mas não consegue. Quanto mais cedo afetar a gestação, mais
lesões o bebê terá.”
Emergência mundial
A suspeita da
relação da anomalia com o surto do vírus cresceu à medida que causas conhecidas
da microcefalia eram descartadas (rubéola, citomegalovírus, herpes viral,
sífilis, toxoplasmose). As pesquisas ganharam corpo quando a ONU classificou a
difusão do zika como emergência mundial, em 2 de fevereiro – o vírus já se
alastrava por 45 países e ilhas, grande parte na América Latina. Em 13 de
abril, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos,
confirmou a conexão entre as duas epidemias.
Em um ano, no
Brasil houve 91.387 casos prováveis de febre pelo zika, 31.616 (34,59%)
confirmados, de acordo com o Ministério da Saúde. A taxa de incidência é de
44,7 notificações por 100 mil habitantes. Entre as gestantes, 2.844 das 7.584
suspeitas foram comprovadas. O que complica é que quatro em cada cinco pessoas
infectadas pelo zika não possuem sintomas. Foi o caso de Jaiane Santos, 17, que
só soube que contraíra zika ao fazer exame de sangue durante a gravidez. O
vírus era desconhecido na aldeia da tribo xukuru, onde ela vive com o marido
Daniel Santana, 20, o filho David, 3, e Nathally Vitória, que nasceu em outubro
– a única aldeada diagnosticada com microcefalia entre os 36.888 registrados no
Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena.
Maria de Fátima, Paulo Rogério e Eduarda Vitória:
sem renda, o casal espera auxílio financeiro do INSS – “É muito novo isso para
mim, de lidar com essa situação toda. É aquela luta, né?” , diz Maria de
Fátima
Em março, a família
encarou uma viagem de ônibus para Recife e hospedou-se em uma casa de apoio da
Fundação Nacional da Saúde. Nathally iniciou a reabilitação na FAV. Passou pela
estimulação visual, pois ainda enxergava em preto e branco; os pais aprenderam
técnicas para iniciar o desenvolvimento a partir do chão, no aspecto
craniocaudal; a mãe depois participou de um grupo de terapia. Jaiane sentiu
progresso no primeiro dia: “Ela já está procurando mais o som. É bom receber
notícias boas”.
Pernambuco tem a
sexta menor taxa de incidência de febre pelo zika (333 casos, ou 3,6/100 mil
habitantes), mas lidera em número de casos de microcefalia e outras
malformaçoes. Até 30 de abril, haviam sido confirmados 339 casos (26,67% do
total do país) e outros 653 permaneciam em investigação. Para a drª Ângela
Rocha, o que torna o estado mais propício à epidemia da anomalia são a maior
exposição do corpo, devido às temperaturas elevadas, o saneamento básico
precário e os aspectos socioeconômicos, já que a anomalia em geral afeta
classes mais baixas.
Revisão de vida
Calor e umidade
intensos imperam na casa de Maria de Fátima, 20, e Paulo Rogério, 49. O casal
mora na comunidade de Santa Luzia, no bairro Torre, Recife. Um incêndio em
fevereiro, no meio da noite, devastou parte das moradias do local. Paulo e
Maria acordaram a tempo de pegar as filhas e correr para a rua. O fogo parou a
50 metros do pequeno barraco de madeira.
Sentada na cama,
Maria observa a filha Eduarda Vitória imersa em um sono profundo. No início da
gravidez, ela passou dois dias com o zika, algo de que o casal nunca ouvira
falar. Em outubro de 2015, Eduarda nasceu, diagnosticada com microcefalia, com
29 cm de perímetro cefálico. Esse dia marcou um ponto importante na vida da
mãe, que decidiu largar as drogas. Órfã dos pais, aos 4 anos Maria foi morar na
rua, onde com o tempo ficou dependente de crack, até se casar e mudar para a
casa de Paulo.
Todos os dias da semana, mães
levam seus filhos a pé e de ônibus para tratá-los em hospitais da capital
pernambucana – “Muitas mães tiveram de deixar de trabalhar para cuidar dos seus
filhos, ” Germana Soares, mãe de Guilherme
Com a rotina de
médicos, Vitória, a primogênita, que faz 2 anos em setembro, foi para a casa da
avó paterna, em Boa Viagem. Há um mês, o casal vive com a saudade de quando
dormiam os quatro juntos, na cama de casal. “É muito novo isso para mim, de
lidar com essa situação toda. É aquela luta, né?”, diz Maria, que vai com o
marido de ônibus até os hospitais, de segunda a sexta. “Às vezes entro em
desespero, choro, e ele sempre me consola, me ajuda.”
A correria diária fez
Paulo recusar uma oferta de emprego de carteira assinada, em uma padaria. Sem
renda, deu entrada no INSS para solicitar o auxílio financeiro a Eduarda. O
benefício assistencial, reavaliado a cada dois anos, é de um salário mínimo
mensal. “Se não for por eles, a gente não sabe como vai fazer.” O processo na
Previdência Social poderia se estender por meses, não fosse a mobilização de um
grupo de mães pernambucanas que resultou em um mutirão em 12 de março, em
quatro capitais nordestinas: Recife, Fortaleza, Salvador e São Luís.
Vitória da mobilização
“Isso aqui é uma
conquista nossa”, comemora Germana Soares, 24, mãe de Guilherme, então com três
meses. A luta pelo mutirão do INSS, que atendeu 110 famílias em Recife,
começara três semanas antes, em fevereiro. “Os agendamentos estavam marcados
para daqui a quatro, seis meses”, diz. Eram quase 10 da manhã e ela já passara
por três fases na Previdência: cadastro do filho, entrada na parte
administrativa e assistente social. Faltava só a perícia médica, na qual Guilherme
seria aprovado minutos depois. “Muitas mães tiveram de deixar de trabalhar para
cuidar dos filhos, vários pais estão desempregados. Então precisamos do
benefício com urgência, porque o custo é alto: passagem, alimentação, exames,
remédios…”
Diante desse
cenário, Germana decidiu somar forças às outras conhecidas que vivenciavam a
mesma mudança de vida, após o filho nascer com microcefalia. Criou a União das
Mães de Anjos (UMA), que hoje tem mais de 130 famílias. Antes do mutirão, o
grupo conseguira o direito a passe livre nos ônibus e ao PE-Conduz, no qual
motoristas da prefeitura devem levar, para consultas médicas, famílias do
interior e da região metropolitana de Recife. Além da pressão política, as mães
de anjos visam trocar informação, experiência e, sobretudo, apoio psicológico.
“Já passou a época que família de bebê com a micro era coitada, triste. Na realidade,
nunca foi assim. A gente quer mostrar a nossa força.”
Mães e filhos recebem doações em encontro da União
das Mães de Anjos e da Aliança das Mães e Famílias de Doenças Raras – “Minha
filha já está procurando mais o som. É bom receber notícias boas” Jaiane
Santos, mãe de Nathally
A pernambucana mora
em Ipojuca, a 100 quilômetros de Recife. Grávida de três meses, contraiu o
vírus zika. Teve três dias de uma coceira desesperadora por todo o corpo. “Era
de coçar com uma faca até sair sangue.” Guilherme nasceu na virada do ano, com
32 centímetros de perímetro cefálico. A mãe conta que o filho não demonstra
atraso no desenvolvimento, mas continua o tratamento para prevenir futuras
limitações. Largou a vida de corretora de imóveis para se dedicar totalmente ao
primogênito e à presidência da UMA. Já o marido, desempregado, vive de bicos
para sustentar a família.
Professora de
formação, ela já testemunhou em sala de aula a exclusão de pessoas com
deficiência, o que contraria a legislação. Isso a faz almejar objetivos
maiores. O maior desejo, conta Germana, é garantir que no futuro haja ambientes
inclusivos, principalmente na área da educação, com profissionais capacitados
para acolher essas pessoas. Para isso, a UMA associou-se com a Aliança das Mães
e Famílias de Doenças Raras (Amar), um grupo consolidado e bem articulado
politicamente. “Com a força e a estrutura que temos hoje, podemos alçar altos
voos.”
Aguentar o tranco
Durante a conversa,
uma mulher se aproxima. É Jaqueline da Silva, 25, mãe de João Pedro, 4 anos, e
Daniel, 4 meses. Secretária da UMA, ela saiu da casa, em Olinda, às 2h da
madrugada, para chegar às 3h no INSS e conseguir um lugar bom na fila de
atendimento. Encararam uma chuva forte antes de o sol raiar, enquanto
aguardavam a abertura da Atenção Primária à Saúde (APS) Mario Melo. A perita
médica aprovou o pedido de Daniel, que nasceu com 29,5 centímetros de perímetro
cefálico. Mas adiantou que talvez o processo não fosse adiante. Assim,
Jaqueline entrou com recurso na Justiça para reverter a decisão.
O motivo é que a
mãe recebe auxílio-doença de R$ 880 mensais devido a um câncer que em 2013 apareceu
no útero e, no ano seguinte, surgiu no pulmão. Precisa espremer a renda mensal
para pagar remédios, alimentação, água, energia e o aluguel da casa térrea de
quatro cômodos no bairro Alto da Conquista. Mudou-se para lá quando se
divorciou do marido, que não aceitou a ideia de ter um filho com microcefalia.
A anomalia de Daniel foi identificada no sétimo mês de gravidez. O posto de
saúde próximo à sua casa não quis atendê-lo, por ser um caso especial. Por
isso, Jaqueline pega três ônibus para ir aos hospitais públicos de Recife.
Nesse novo dia a dia, ela concilia o desenvolvimento do filho com as ações da
UMA.
No sábado, logo
após o mutirão do INSS, houve o segundo encontro mensal do grupo, para
cadastrar mais mães e distribuir kits conforme a necessidade de cada família,
oriundos de uma pilha enorme de doações, de leite em pó a banheira. De onde vem
tanta energia para suportar a rotina sem trégua? “Creio que meu segredo seja
Deus. Mesmo quando tive o câncer, nunca me abaixei, nunca chorei”, diz. “Para tudo
tem uma explicação. Se Ele me deu Daniel, é porque tenho condições de segurar o
tranco. Agora vou tomar um banho e sair com meus filhos. Eu não ligo para
cansaço, não.”
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