A corrupção e a
incompetência administrativa afundam o Rio de Janeiro num abismo sem fim. Em
menos de 24 horas, dois ex-governadores são presos. Até quando o Estado irá
suportar?
O RETRATO DO RIO
As prisões dos ex-governadores Anthony Garotinho e Sérgio Cabral embalaram
manifestações pelas ruas da cidade.
O
dinheiro amealhado sem qualquer pudor dentro da sede do Executivo local,
segundo as investigações, em reuniões com executivos das construtoras serviu
para patrocinar o que a população mais abomina nos políticos, independentemente
de ideologia ou coloração partidária: o enriquecimento pessoal. Bancou viagens,
iates, vestidos, jóias caras da esposa do ex-governador do PMDB e até o
cachorro quente da festinha de um de seus filhos. Só a mulher de Cabral teria
recebido R$ 49 milhões no esquema desbaratado pela PF na última semana. As
empresas, por sua vez, foram agraciadas com aditivos em contratos públicos e
incentivos fiscais, que constituem a base da atual insolvência financeira do
Estado. Useiro e vezeiro em práticas nada republicanas, Garotinho não foi menos
ousado. Na quarta-feira 16, dia anterior à detenção de Cabral, o político do PR
foi preso preventivamente acusado de comandar um esquema de compra de votos na
eleição em Campos (RJ) por meio do programa Cheque Cidadão. Segundo o juiz
Glaucenir Silva de Oliveira, da 100ª zona eleitoral, “Garotinho comanda com
‘mão de ferro’ um verdadeiro esquema de corrupção eleitoral” na cidade em que
sua mulher, Rosinha (PR), é prefeita. Na quinta-feira 17, o político que
governou o Estado entre 1999 e 2002 protagonizou cenas teatrais ao ser
transferido do hospital municipal Souza Aguiar para a cadeia. “Vocês estão de
sacanagem. Querem me matar”, gritou o ex-governador à entrada da ambulância,
enquanto se debatia numa maca empurrada por funcionários do hospital. Um
espetáculo de horrores e vitimização (leia mais na página 42).
CENA INUSITADA Policial abandona tropa que avançava contra a população e muda
de lado
O mais
estupefaciente é que, há pouco mais de dois anos, o Rio tinha um oceano de
possibilidades para, enfim, dar certo. O cenário era alvissareiro. Além do
dinheiro proveniente dos royalties do petróleo, a alimentar generosamente as
arcas do Estado, e dos megaeventos esportivos mundiais, como a Copa do Mundo e
a Olimpíada, batendo à porta, havia uma sintonia fina com os governos petistas
de Lula e Dilma Rousseff, a permitir uma série de parcerias que, ao menos na
retórica, deveriam resultar em benefícios para a população fluminense. Não
foram poucas as ocasiões em que os chefes do Executivo federal participaram de
inaugurações de obras no Rio em solenidades marcadas por discursos inflamados,
trocas mútuas de rasgados elogios e muita mas muita pompa e circunstância. O
resto da história, no entanto, todos sabem. O Estado foi tragado pela
barbeiragem administrativa e a corrupção, e afundou numa crise econômica sem
precedentes. Não há recursos para despesas mais básicas, como segurança e
saúde, por exemplo.
Enquanto o Rio
respirava – e ainda respira – por aparelhos, para a turma de Cabral não faltava
“oxigênio”. Era dessa maneira que o ex-secretário estadual de Obras Hudson
Braga tratava o suborno exigido das empresas nos grandes contratos de obras, de
acordo com a delação premiada das empreiteiras. Cálculos do Ministério Público
Federal demonstram que o esquema comandado pelo ex-governador provocou um rombo
em projetos executados pela Carioca Engenharia e pela Andrade Gutierrez. De
acordo com as delações das duas empresas, 7% do valor total foi convertido em
propina e dividido da seguinte forma: 5% para Cabral, 1% para Braga e 1% para
conselheiros do Tribunal de Contas do Rio (TCE), responsável pela fiscalização
dos contratos. O pagamento de propina era efetuado em espécie. Cada empreiteira
tinha um responsável pelo pagamento e cada beneficiado, o seu cobrador. As
principais obras fraudadas foram o Arco Metropolitano, a reforma do estádio do
Maracanã e o PAC das Favelas.
As investigações
reuniram uma fartura de provas de que o dinheiro pago ilegalmente foi, em
parte, lavado por empresas criadas pelos próprios favorecidos, usando nomes de
amigos e parentes. O esquema bancou uma vida de luxo para os envolvidos, que
inclui viagens internacionais, idas a restaurantes sofisticados, compras de
joias e uso de lancha e helicóptero em nome de laranjas. Uma das jóias,
avaliada em R$ 800 mil, teve como destino o dedo anelar da mulher de Cabral,
Adriana Ancelmo, levada em condução coercitiva pela PF na quinta-feira 17
acusada de embolsar R$ 49 milhões. O mimo foi um presente de Fernando
Cavendish, ex dono da Delta Construções, cuja revelação de amizade marca o
início da débâcle de Cabral. Outros integrantes do círculo íntimo do ex-governador
atuavam como operadores do peemedebista. São eles o economista Carlos Emanuel
de Carvalho Miranda, o Carlinhos, ex-marido de uma prima de Cabral, e Luiz
Cláudio Bezerra. Toda a negociação entre as empreiteiras e as autoridades era
arbitrada pelo ex-secretário de governo de Cabral, Wilson Carlos, responsável
pela distribuição da propina, segundo as próprias empreiteiras. Tanto Wilson
Carlos como Carlinhos foram detidos na última semana.
PRÁTICA CONTINUADA
As
práticas ilegais extrapolaram a gestão da Cabral no Rio de Janeiro. Alvo
principal da operação denominada “Calicute”, a expedição de Pedro Álvares
Cabral às Índias que marcou a ascensão e queda do navegador no início do século
XVI, Cabral, segundo o juiz Sérgio Moro, continuou recebendo propina mesmo
depois de deixar o mandato. Nos últimos dias, Moro determinou o bloqueio de até
R$ 10 milhões das contas do ex-governador, de sua mulher Adriana, e dos outros
detidos. “As provas são da prática reiterada de crimes contra a administração
pública e de lavagem de dinheiro”, justificou Moro em seu despacho. Ele disse
que seria uma afronta deixar que os investigados continuassem em liberdade
usufruindo “do produto milionário de seus crimes” frente a “ruína das contas
públicas do governo fluminense.” Em uma frase, o juiz de Curitiba resumiu a
corrupção que varreu o Rio: “Uma versão criminosa de governantes ricos e
governados pobres.”
Como
os pagamentos eram feitos em espécie, o rastreamento é difícil. Na lista de
gastos para lavagem de dinheiro há blindagem de veículos, compra de carro,
objetos de arte e móveis, e até o pagamento de cachorro quente para a festa de
um filho de Cabral, no valor de R$1.070,00. “A sociedade sofre e muito com os
efeitos da corrupção. Por isso, essas investigações são importantes e devem ser
levadas até o fim, doa a quem doer”, afirmou o procurador Athayde Ribeiro
Costa, do MPF do Paraná. Parte dos objetos adquiridos com dinheiro de propina
foi apreendida pelos agentes da PF. “Houve lavagem de ativos de forma
profissional e crimes seriados”, complementou Athayde Ribeiro Costa. Moro
destacou ainda que “causa certa estranheza, por exemplo, a frequência de
aquisições vultosas de bens”, sempre em espécie, como as feitas por Adriana
Anselmo”. Ele listou o pagamento, em agosto de 2015, de R$ 25.000,00 por dois
Mini Buggys; em março de 2012, de R$ 72.009,31 por equipamentos gastronômicos,
e em 2013, R$ 57.038,00 por vestidos de festa, sempre em dinheiro vivo. A
força-tarefa da Lava Jato concluiu, ainda, que Cabral recebeu mesada de R$ 350
mil da Andrade Gutierrez por pelo menos um ano, e, da Carioca Engenharia, de R$
200 mil mensais, no primeiro mandato, de R$ 500 mil, no segundo.
O
jogo virou para o ex-governador, um dos mais influentes personagens da história
política do Rio de Janeiro. Na sexta-feira 18, depois de passar a primeira
noite numa cela de nove metros quadrados no complexo de Gericinó, em Bangu, ao
lado de outros cinco presos, Cabral era o retrato da derrota. De camiseta
branca e cabeça raspada, exibia os olhos avermelhados e um semblante abatido.
No café da manhã, aceitou o pão com manteiga e o café com leite oferecidos
pelos agentes penitenciários.
Os
eleitores fluminenses que possibilitaram a Cabral seis triunfos nas urnas –
três para deputado estadual, duas para senador e governador – não vislumbravam
uma ascensão e queda numa velocidade tão rápida. Bertolt Brecht dizia que “Do
rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem”. Sobre o Rio atual, que caminha célere para se tornar
um exemplar tupiniquim da Grécia, resta saber se sobrará algo da violência –
traduzida em administrações tão temerárias quanto corruptas – dos seus gestores
contra a população.
LUXO E OSTENTAÇÃO
A vida glamourosa de Sérgio Cabral antes da prisão: mansão em Mangaratiba e festas em Paris
A vida glamourosa de Sérgio Cabral antes da prisão: mansão em Mangaratiba e festas em Paris
UM HOMEM DADO A ESPETÁCULOS - A Polícia Federal tem sido criativa ao nomear as diversas fases da Lava Jato. Para designar a operação que culminou na prisão do ex-governador do Rio Sérgio Cabral, a PF recorreu a uma cidade que foi palco de trapalhadas de outro Cabral famoso. Em 1500, em um episódio conhecido como “A Tormenta de Calicute”, Pedro Álvares Cabral, o desbravador das terras brasileiras, tentou fazer fortuna na localidade indiana que, à época, funcionava como um entreposto mundial. Ao desembarcar ali com tropas portuguesas, Cabral pretendia negociar os direitos para a venda de especiarias e construir um posto comercial. O problema é que o comércio na região era dominado por árabes. Obviamente, eles não aceitaram a chegada dos garbosos concorrentes. Seguiu-se daí um embate entre árabes e portugueses, com embarcações queimadas e centenas de homens mortos. Derrotado, Cabral partiu em retirada – para nunca mais voltar a Calicute. Cinco séculos depois, a PF decidiu colocar a palavra novamente no mapa brasileiro. O paralelo é justo. Afinal, descobriu-se que o Cabral fluminense também atuava em uma espécie de comércio, saqueando dinheiro público em forma de propina, segundo as investigações. Na semana passada, uma piada que circulou nas redes sociais resumiu a questão: no Brasil, rouba-se desde Cabral.
O
ex-governador Anthony Garotinho adora fazer encenações para posar de vítima
O ex-governador Garotinho grita, esperneia e implora para não ser levado para o presídio de Bangu
Canastrão, cara de
pau ou simplesmente embromador. Não importa como se qualifique, o certo é que o
ex-governador do Rio, Anthony Garotinho, tal qual um meninão mimado, adora
fazer um show sempre que se vê contrariado. Foi assim na quinta-feira 17,
quando protagonizou um esperneio ao vivo no momento de ser transferido para o
complexo penitenciário de Bangu. Com a encenação patética, o ex-governador
queria se colocar no papel de vítima. Ator de péssima qualidade, sua atuação
não recebeu aplausos. Pelo contrário, o grosso da plateia comemorou a prisão.
Há dez anos, durante
a disputa presidencial, o mesmo Garotinho recorreu a outro espetáculo dantesco
para tentar comover o eleitor. Diante da acusação de haver recebido dinheiro de
empresas de fachada para sua campanha ao Palácio do Planalto, decretou uma
bizarra greve de fome com direito a soro fisiológico e acompanhamento médico.
Durante 11 dias sua encenação virou uma espécie de reality show, sem o menor
efeito político, e terminou tão desmoralizada quanto sua campanha. Até hoje,
dentro do PMDB há quem garanta que durante a greve Garotinho se alimentava
escondido.
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