sexta-feira, novembro 02, 2018

ESPECIAL: A equação de Bolsonaro

Capitão reformado passa a tesoura nos ministérios, mas utiliza uma lógica elementar na hora de distribuir as pastas da Esplanada de modo a não desagradar seus grupos de apoio

André Vargas / ISTO É

O grande inchaço da máquina pública, desde a redemocratização, ganhou forma entre os governos Fernando Collor e Itamar Franco. Em 1992, sob a administração do autoproclamado caçador de marajás, o Brasil possuía 14 ministérios. Pulou para 28 pastas — ou seja, dobrou — dois anos depois, na coalizão montada para dar sustentação ao vice do presidente deposto. Foi quando o Ministério da Economia acabou desmembrado no tripé Fazenda, Planejamento e Indústria e Comércio. E ganhou vida o ministério do Meio Ambiente. De lá para cá, a Esplanada dos Ministérios só aumentou, embora não com o ímpeto daquele intervalo de apenas dois anos. Vinte e seis anos depois, o presidente eleito Jair Bolsonaro trilha o caminho inverso. Para a hercúlea tarefa de passar a tesoura na estrutura ministerial, sem se indispor com os aliados, o capitão reformado montou uma equação matemática simples e de lógica elementar. Ao reduzir para 15 o número de pastas, dividiu-as em três grupos de cinco e criou sua própria regra de três: está concedendo cinco pastas para militares, como o General Augusto Heleno para a Defesa, cinco pastas para colaboradores da campanha, como Paulo Guedes, da Economia, e outras cinco para integrantes dos partidos aliados, como Onyx Lorenzoni, do DEM, escolhido para a Casa Civil. A vantagem dessa composição é que lhe sobra margem de manobra para encaixar mais apoiadores de outras legendas, como o DEM, caso encontre dificuldades mais adiante em seu governo. Nesse caso, ele pode sacrificar algum integrante da ala militar ou do grupo dos colaboradores de campanha, que lhe são fiéis, para agregar ao grupo dos 15 algum neoaliado com o propósito de alcançar a governabilidade.

Homem forte
Essa nova equação do poder, Bolsonaro pretende resolver até o início de dezembro, quando anunciará a lista completa dos novos auxiliares. Antes disso, o presidente eleito começa a solucionar uma questão mais simples, de somar dois mais dois: na largada escolheu os quatro principais ministros. Na área econômica, o homem forte do governo será o economista Paulo Guedes, que assumirá o superministério da Economia, englobando a Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio Exterior. Ou seja, a pasta desmembrada por Itamar Franco, no longínquo ano de 1994, volta a sua composição original. A Casa Civil, pasta criada em dezembro de 1938 por Getúlio Vargas, será comandada pelo deputado reeleito Onyx Lorenzoni (DEM-RS) que assumirá o papel de principal gestor político. Em sua estreia, conduzirá a equipe de transição.
Outro nome proeminente será acomodado na Justiça, pasta nascida em 1822, pelas mãos do então Príncipe Regente D. Pedro de Bragança, mas que agora será robustecida a partir da incorporação de novas atribuições, como a administração do COAF. Até então, o ministeriável era o advogado Gustavo Bebianno, presidente do PSL que cuidou da estratégia jurídica da campanha. Mas na quinta-feira 1 Bolsonaro realizou seu sonho dourado, acalentado desde os primórdios da campanha: obteve o “sim” do juiz Sergio Moro para a pasta. O martelo foi batido em encontro no Rio. A Justiça deve ser o carimbo no passaporte para, em menos de dois anos, Moro ascender ao STF.  Por fim, ao general Augusto Heleno será entregue a chave da Defesa, outro órgão de destaque no governo.

Derrotado na disputa ao Senado, Magno Malta (PR-ES) está cavando espaço no grupo dos colaboradores diretos. Ele foi um dos mais ardorosos articuladores com as lideranças evangélicas. Cotado para as Relações Exteriores (MRE), o ministério mais longevo de todos, criado em 1736 por D. João V, encontrou resistências internas no Itamaraty, onde a preferência é por um diplomata de carreira. Mas o diplomata Ernesto Fraga Araújo também é considerado em razão de suas posições favoráveis ao presidente dos EUA, Donald Trump, o que agrada Bolsonaro. A alternativa para Malta seria o novíssimo Ministério da Família, que pode ser criado e reuniria fragmentos das pastas do Desenvolvimento Social, dos Direitos Humanos e da Cultura. A cereja do bolo é o controle do Bolsa Família, com um orçamento estimado em R$ 30 bilhões para 2019.

Postos estratégicos
Para a Ciência e Tecnologia, uma pasta da lavra do governo José Sarney, Bolsonaro anunciou o nome do astronauta Marcos Pontes, mais um nome técnico, contrastando com o desfile de figurinhas carimbadas da velha política que sempre compuseram os ministérios dos seus antecessores. Considerada estratégica, a Agricultura é alvo de negociações. Os ruralistas batiam o pé contra a intenção de colocar o Meio Ambiente sob a tutela da pasta, mas a fusão está consumada, segundo anúncio de Onyx Lorenzoni na terça-feira 30. Os postulantes para o cargo são Nabhan Garcia, agropecuarista que preside a União Democrática Ruralista (UDR), o senador eleito Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Valdir Colatto (MDB-SC), que não se reelegeu. A articulação é acompanhada pela deputada Tereza Cristina (DEM-MS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que também tem chances de ser escolhida.
Para a Educação são quatro os candidatos: Aléssio Ribeiro, Stravos Xanthopoylos, Mendonça Filho e Eduardo Mufarej. Ribeiro é general da reserva e foi assessor de campanha para o tema e é contra o que chama de “ideologia de esquerda e de gênero”. Xanthopoylos é especialista em ensino à distância, uma das bandeiras da campanha. Derrotado para o Senado, o ex-ministro da Educação de Temer Mendonça Filho (DEM) está no páreo. Eduardo Mufarej, da ONG RenovaBR, conta com o apoio do futuro ministro da Fazenda Paulo Guedes. Para a Saúde, os cotados não são políticos, como Nelson Teich, oncologista do Rio. Bolsonaro prometeu formar um governo longe do toma-lá-dá-cá dos partidos tradicionais. Até aqui, a equação logrou êxito.

Política em família



CASA Eduardo, Renan, Carlos e Eduardo: influenciados pela política do pai desde cedo (Crédito: Divulgação)

APOIO Dona Olinda, mãe de Bolsonaro, e as irmãs Maria Denise (à esq.) e Vânia. Ele tem mais três irmãos (Crédito:Divulgação)

É a primeira vez na história do Brasil que uma família assume o poder de forma tão coesa quanto os Bolsonaro. Haverá representantes do clã em três instâncias legislativas. No Senado, estará o filho mais velho, Flávio, 37 anos, eleito senador pelo Rio de Janeiro com 31% dos votos. Na Câmara Federal, ocupará assento Eduardo, 34 anos, o deputado federal mais votado do País, com 1,8 milhão de votos. Na Câmara do Rio de Janeiro, continuará atuando o filho do meio, Carlos, 35 anos. Em 2016, ele foi eleito vereador com número recorde de votos. Os três são filhos do primeiro casamento do presidente eleito, com Rogéria Nantes Nunes Braga, e, cada um a sua maneira, influenciam nas decisões do pai. Não sem doses de ciúmes, rompimentos e brigas.

Os desentendimentos são fruto dos temperamentos levemente diferentes entre os filhos de Bolsonaro e entre eles e o pai. Nenhum deles é o que se pode chamar de uma pessoa moderada, mas eles se destacam entre si no grau de radicalismo de suas posições. Flávio, ou 01, como Jair se refere a ele, usando o linguajar militar para enumerar sua prole, é o mais moderado. Advogado, defende as propostas do pai, mas tende a dialogar com a oposição, ao contrário dos irmãos. Nesse ano, desobedecendo Bolsonaro, fez campanha para o governador eleito no Rio, Wilson Witzel, pelo PSC.

Ciúmes e reprimenda
A proximidade de Carlos com o pai despertou ciúmes entre os outros dois irmãos, especialmente em Eduardo, o caçula 03. Policial federal e formado em Direito, ele sempre foi visto como o herdeiro de Jair, pela semelhança de posições e de temperamento, inclusive na publicação de declarações explosivas. Uma das últimas rendeu ao pai um momento delicado na campanha. Em evento no Paraná, Eduardo afirmou que bastaria um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal. Os ministros do STF reagiram e, no dia seguinte, Bolsonaro foi obrigado a dizer que havia dado uma reprimenda no “garoto”.
É difícil saber como se dará a atuação de cada um deles no governo do pai e quanto barulho causarão. Mas o fato é que os três exercerão impacto nas decisões de Bolsonaro. O presidente eleito tem um quarto filho homem, Renan. Ele é fruto de seu segundo casamento, com Ana Cristina Valle. O jovem tem 20 anos e somente agora começa a se interessar pela política. Longe da exposição, mas com forte influência sobre Bolsonaro, está a futura primeira-dama Michelle. Na campanha, teve atuação apagada, aparecendo apenas para tentar suavizar a imagem do marido em um programa eleitoral veiculado às vésperas do segundo turno. Ela já avisou que, em público, será discreta. Michelle cultiva a fama de controlar o acesso ao marido, que a escuta em questões que vão além do cotidiano doméstico. Sua principal bandeira é a defesa de pessoas com necessidades especiais. Fluente em Libras, a Língua Brasileira de Sinais, ela fez com que Bolsonaro assinasse um termo de compromisso para melhorar a vida dessa população. Michelle aprendeu o idioma por causa de um tio deficiente auditivo e se aprimorou após ficar amiga de um casal de surdos em uma igreja evangélica que frequentou.
PRIMEIRA-DAMA Discreta em público, a esposa Michelle exerce forte influência sobre o novo presidente (Crédito: Raquel Cunha/Folhapress)
Michelle e o presidente eleito se conheceram em 2006, quando ela trabalhava como secretária na Câmara. Foi levada para o gabinete de Bolsonaro e casaram-se no civil dois meses depois. Em 2008 deixou o cargo após o STF proibir o nepotismo no serviço público. A cerimônia só ocorreu em 2013, celebrada pelo pastor evangélico Silas Malafaia. A festa simbolizou a conversão do futuro presidente, antes católico. O apoio dos evangélicos foi fundamental para sua eleição. O casal tem uma filha, Laura, de 8 anos. Michelle outra, Letícia, de 16 anos, fruto de um relacionamento anterior. De longe, estarão também apoiando Bolsonaro sua mãe, Olinda, e seus cinco irmãos. Nunca uma família amealhou tanta força política.
Apesar das divergências entre os filhos, todos terão um papel nas decisões do pai na Presidência

Onde tudo começou


Como a infância humilde na pequena Eldorado(SP), no Vale do Ribeira, moldou a personalidade de Jair Bolsonaro, o garoto que durante um recreio na escola fez o vaticínio que se cumpriu: “serei presidente”

ISTO É



FORMAÇÃO Dedicado às atividades físicas, o interesse de Bolsonaro pela caserna surgiu em 1970, quando o Exército enfrentou a guerrilha de Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. Aprovado nas Agulhas Negras, se tornou oficial de artilharia paraquedista. (Crédito: Divulgação)


A vida na pequena Eldorado, onde pescava com o pai Percy Geraldo ficou apenas para as folgas e férias (Crédito: Marco Ankosqui)


O recreio da escola Professora Maria Aparecida Viana Muniz, em Eldorado, no interior de São Paulo, há cinqüenta anos, permanece vivo na memória de muitos estudantes daquela época. Não é para menos. Entre uma mordida e outra no sanduíche levado na lancheira, o então garoto Jair Messias Bolsonaro afirmou para quem quisesse ouvir: “Vou ser presidente do Brasil”. Uma das testemunhas foi Lurdinha, a professora Maria de Lourdes Santana. Vadico, atual prefeito da pacata cidade Durval Adélio de Morais (PR), coleguinha de escola de Jair, hoje se diverte ao lembrar da profecia que se cumpriu. Na ocasião, a “promessa de campanha” ensejou gostosas gargalhadas, incluindo do próprio Bolsonaro, que à época estava mais preocupado em jogar bola, pescar e colher palmito nas matas – o que lhe rendeu o apelido de Palmitão, dada sua altura, magreza e pele clara. Não era para ser um vaticínio. Apenas uma maneira de reafirmar sua liderança sobre os colegas, já que era ele quem organizava os jogos e brincadeiras. Anos depois, cadete da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), Jair apareceu em casa com ares de chateado e vontade de desistir. Seu pai, o protético Percy Geraldo Bolsonaro, apelou: “Você vai voltar, se formar e ainda vai ser o presidente”. Estava escrito. Como dizia Tancredo, Presidência é destino. E ele sorriu para Jair Messias Bolsonaro. Cinco décadas depois, aos 63 anos, o garoto de Eldorado chegou lá.



Bolsonaro será o primeiro presidente descendente de imigrantes italianos do século 19. Seu bisavô, Vittorio Bolzonaro, veio com 10 anos para o Brasil, abrasilerando o sobrenome. Os registros apontam que Vittorio nasceu em Anguillara, cidadezinha da Pádua, norte da Itália. Seu filho, Ângelo, casou com uma descendente de alemães. Percy Geraldo, filho de ambos, se tornou marido de Olinda Bonturi, cuja avó era natural da Toscana. A ligação familiar com a Itália o fez torcer pelo Palmeiras, como a maioria dos parentes. Apesar de a família com seis filhos ter vivido em outras cidades paulistas, como Glicério e Campinas (onde Jair teve o nascimento registrado), foi em Eldorado que o pai quis ficar até o apagar da chama, em 1995.
Na caça de Lamarca
O interesse de Jair pela caserna surgiu ainda na adolescência em Eldorado. A presença de tropas combatendo os guerrilheiros do capitão dissidente Carlos Lamarca, em 1970, no Vale do Ribeira foi marcante. Com 15 anos, ele outros garotos ficaram fascinados com os soldados, que reuniam os moradores para obter informações sobre trilhas, grutas, abrigos e eventual circulação de gente estranha naquela vasta região de matas. Bolsonaro e outros garotos ajudaram os soldados em pistas sobre Lamarca, mas o papel de guias pelas florestas ficou para mateiros mais experientes. O certo é que a proximidade com os soldados levou Jair, aos 18 anos, a estudar na Escola Preparatória de Cadetes. Ele voltava a Eldorado apenas nas férias para ver pais e irmãos.

Hoje, na cidadezinha à qual chegou criança, em 1966, há esperança de dias melhores, a partir da ascensão do filho de Geraldo Dentista ao cargo máximo do País. Eldorado fica no Vale do Ribeira, a região mais pobre de São Paulo. Com quase 15 mil habitantes, sem indústrias e uma economia baseada na monocultura da banana, a prefeitura possui um orçamento apertado, de R$ 42 milhões. Sem os repasses federais, nem a folha do funcionalismo fecharia. A região engloba vários componentes que o próprio Bolsonaro atribui como fatores de atraso: 65% do território é composto por Mata Atlântica, com áreas preservadas. Há também 28 comunidades quilombolas e centenas de indígenas. Todos muito pobres. Nas urnas, os eleitores de Eldorado lhe deram 54,44% dos votos no segundo turno, proporcional ao índice nacional. Mas, quando o filho à casa tornar, em breve, certamente irá concentrar 100% das atenções.

O avanço da direita

Por que essa ideologia política, que inevitavelmente guarda em si o conservadorismo social, ganhou força em diversos países e agora chega ao poder no Brasil
PASSADO E PRESENTE Seguindo o conservadorismo europeu, Jânio Quadros proibiu o biquíni nos desfiles de misses e também nas praias, mandando multar as mulheres que o usassem, a exemplo do que ocorria no litoral de Rimini, na Itália. Como o moralista Jânio, Bolsonaro será um delegado de costumes? (Crédito: Divulgação)

Antonio Carlos Prado


DEMAGOGIA O combate ao jogo do bicho era uma das peças populistas de Jânio Quadros; a outra tática foi receber, mais de um ano antes, os jogadores que iriam à Copa de 1962 (Crédito:Divulgação)


Um tsunami de conservadorismo social e de ideologia política de direita cobre atualmente boa parte do mundo — e o Brasil, pela democrática soberania da vontade popular, acaba de ingressar justamente nesse cenário com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Entre os países que formam tal bloco, independentemente de suas localizações geográficas, há particularidades advindas da formação e do desenvolvimento de cada sociedade. Todos eles, no entanto, guardam um ponto em comum: a falência de regimes democráticos. Isso é cíclico na história da humanidade, e impõe-se, aqui, a lembrança do estadista britânico Winston Churchill (ícone antifascista que Bolsonaro diz admirar) e da historiadora americana Barbara Wertheim Tuchman, autora do clássico “The Guns of August”. Churchill dizia que a “democracia é o pior dos regimes políticos, exceto todos os demais” — exercendo o inteligente e seco humor dos ingleses, ele criticava, assim, as recaídas dos povos em regimes que pendem para a extrema direita. Barbara preferiu referir-se a tal pêndulo histórico como a “marcha da insensatez”. Por que insensata? Porque é sempre um salto de alto trapézio. Pode-se ou não ouvir rufar de tambores. Mas nunca há rede de proteção.

O joguinho da esquerda
Mesmo em uma rápida viagem pela União Europeia, como será a nossa viagem nesse momento, vemos civilizações (antigas civilizações) optando claramente pelo ideário de direita no campo político e pelo conservadorismo na área do comportamento social. O exemplo mais recente nos vem de uma das mais ricas e prósperas regiões da Alemanha, a região da Baviera, da qual se irradia efeitos políticos para todo o país. Desde o término da Segunda Guerra Mundial havia no país uma espécie de blindagem contra a ideologia de direita. O escudo se tecia com a aliança entre a União Social Cristã e a União Democrata Cristã, partido da atual chanceler Angela Merkel. Era na Baviera que tal aliança não poderia se romper. Foi na Baviera, com a ida da população às urnas, que a aliança se rompeu. Pela primeira vez o partido radical de direita Alternativa para a Alemanha, empunhando a bandeira da anti-imigração, conseguiu cadeiras no Legislativo. A União Social Cristã já não tem maioria, faz-se imperioso negociar com os extremistas. Angela Merkel, ela sabe e admite, está a um passo de cair. Na terça-feira 30, anunciou que não será candidata a mais uma gestão.
Ainda com a proposta de que imigrante bom é imigrante barrado na fronteira, países como Hungria, Áustria, Dinamarca, Suécia, França e Itália seguem o mesmo caminho político — o do nacionalismo exacerbado que toma corpo como xenofobia e se torna o ventre dos extremismos populistas. É esse mesmo sentimento de onipotência nacionalista e de isolacionismo que move o Reino Unido na direção de abandonar a União Europeia, provavelmente em março de 2019, e mergulha a Espanha numa grave crise institucional, a partir da onda separatista da Catalunha.
Falou-se acima sobre o fato de cada país ter suas particularidades. Pois bem, voltemos ao Brasil. Não foi, é claro, a questão imigratória que colocou, pelo voto, Bolsonaro no poder. Um dos motivos é que o povo brasileiro cansou (e olha que demorou!) do joguinho que a esquerda, representada pelo PT, e a social-democracia, encarnada no PSDB, faziam o tempo todo. Quando precisava conquistar eleitor do centro, o PT movia-se nesse rumo, mas ai de quem o rotulasse como não sendo de esquerda. Quanto ao PSDB, ao carecer de votos da direita, pedia-os envergonhadamente, mas também ai de quem não o chamasse de social-democrata. Junte-se a isso a bandalheira da corrupção. Nesse vaivém de posicionamentos, o PSDB não soube mais fazer oposição e, em decorrência, também não soube mais como enfrentar o PT. Já o Partido dos Trabalhadores, quando esteve no poder, tirou a máscara de democrata e de centro, apostando pesado na esquerda stalinista e aparelhando partidariamente o Estado. Formou-se a república do patrimonialismo e do compadrio. Melhor: a república da organização criminosa.
Delegado de costumes
Em nome do rigor histórico é preciso reconhecer um fato: desde a bem-vinda redemocratização do País, que fundou em 1985 a Nova República, os governantes civis, exceto Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, frustraram a expectiva da Nação. Não estamos afirmando com isso que a ditadura militar foi melhor, ela foi péssima. Ditaduras civis ou militares têm de ser banidas. Democracia sempre! O que se quer dizer é que o governo de José Sarney foi mal na economia, o de Fernando Collor desaguou em seu impeachment sob a acusação de corrupção, as gestões de Lula deram no que deram (ele está preso em Curitiba por lavagem de dinheiro e corrupção), Dilma Rousseff acabou afastada e também sofreu impeachment por tratar do erário sem o devido zelo. Era portanto inevitável que uma nova direita, que PT e PSDB supunham ou fingiam supor que não existia — ao se julgarem os únicos e eternos agentes no cenário político nacional — mostrasse o seu rosto.
Com o pensamento liberal de Bolsonaro o Brasil poderá se estabilizar economicamente? Deus queira que sim. No terreno comportamental o Brasil avançará? Não, não mesmo. E corremos o risco de termos um presidente que atuará também como uma espécie de delegado de costumes, a exemplo do que foi Jânio Quadros no início dos anos 1960 — Jânio preocupava-se sobretudo em mandar multar quem trajasse biquíni nas praias (imitando o que ocorria na Itália), jogasse no bicho ou apostasse em briga de galos. O Brasil recuará na questão da legalização do aborto e o Estatuto do Desarmamento vai para o museu. Mas Bolsonaro não poderá ser criticado por nada disso, ele foi eleito democraticamente deixando mais do que claro que esses dois pontos constavam de seu programa. Aliás, em referendos, a maioria dos brasileiros já se mostrou contrária à interrupção da gravidez e a favor de possuir uma arma em casa para usá-la em legítima defesa da vida. Bolsonaro nada mais fez do que encampar tais consultas populares. E o povo, agora consultado sobre ele, o colocou no Planalto.
PT e PSDB se julgavam os únicos e eternos agentes no cenário político nacional. Imaginavam, ou fingiam imaginar, que a direita não existia

O risco da tentação autoritária

O retorno dos militares ao poder reabre o temor de partidarização dos quartéis e de enfraquecimento das instituições democráticas
TENENTISMO Ideologia do soldado-cidadão: maior participação dos militares na política e viés autoritário (Crédito: Divulgação)

Vicente Vilardaga

LINHA DURA Dutra: proibição do Partido Comunista, intervenção em sindicatos e restrições ao direito de greve

Uma força que sempre acompanha governos militares, seja no Brasil ou em outros países, é a tentação autoritária. A experiência mostra que, historicamente, na maioria das vezes em que estiveram no centro do poder e prestigiados, eles buscaram a ampliação do controle social, tanto em ditaduras quanto em períodos democráticos. Desde os momentos de maior prosperidade econômica após o golpe de 1964, eles nunca se encontraram em condições tão favoráveis para implantar um novo projeto de poder. A eleição mostrou que voltaram vigorosos depois de mais de 30 anos de um silêncio quase que obsequioso. Nesse momento, parlamentares que apoiam o presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) tentam, por exemplo, aprovar uma lei que converte o ativismo político em ato terrorista e criminaliza o movimento social, medida autoritária por excelência – projeto que, dificilmente, será aprovado. Há outras iniciativas que estão sendo cogitadas, como a vigilância dos conteúdos transmitidos pelos professores nas escolas. No Brasil, sempre que a presença militar na política se intensifica mudanças profundas podem ser antevistas.

Líder carismático
A popularidade dos militares não chega a ser tão alta como em outros importantes momentos da história, até porque comandos militares são enfáticos em assegurar o funcionamento das instituições e o cumprimento da Constituição. É bem diferente o ambiente das forças políticas que se vive hoje, se cotejado, por exemplo, com a época do movimento tenentista, conjunto de rebeliões, como a Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, que tomou as Forças Armadas na década de 1920. Destacou jovens militares de baixa e média patente e criou uma geração de líderes, como Juarez Távora, Góis Monteiro e Eduardo Gomes, que ocuparam grande espaço político a partir da Revolução de 1930 e permaneceram à frente dos governos das décadas seguintes, apoiando a ditadura do Estado Novo instaurada por Getúlio Vargas em 1937. Fortalece-se agora, a ideologia positivista do soldado-cidadão, surgida às vésperas da Proclamação da República, que preconizava uma maior participação dos militares na política como solução para dos problemas nacionais. A situação nova com Bolsonaro, que se difere de outros momentos do passado, é a chegada ao poder de uma liderança militar carismática, algo que seus antecessores da caserna não tinham.
“Nenhum eleitor elegeu Bolsonaro rei do Brasil e a maioria que votou nele está esperando que ele siga as regras democráticas” Roberto da Matta, antropólogo (Crédito:Nelson Perez)
Nenhum deles foi chamado de “mito”. Ex-paraquedista e capitão reformado do Exército, Bolsonaro é o militar de mais baixa patente a chegar à Presidência da República. Antes dele, dois marechais foram eleitos pelo voto direto: Hermes da Fonseca e Eurico Gaspar Dutra, ambos sem grande capacidade de seduzir as massas. “Não dá para comparar”, diz o historiador Sérgio Murilo Pinto, autor do livro “Exército e Política no Brasil”. “Hermes era respeitadíssimo, vinha de uma família de militares e havia sido ministro da Guerra, mas não era político”. Foi eleito em 1910 e criou o serviço militar obrigatório no Brasil. Tentou implantar uma política chamada de salvacionista, cujo objetivo era recuperar a influência e o prestígio dos militares na esfera pública. Na prática, Hermes, com o argumento de combater a corrupção e sanear as instituições republicanas, retirou do poder as oligarquias estaduais contrárias a seu governo por meio da força militar. Os presidentes dos estados foram substituídos por oficiais das Forças Armadas. O salvacionismo tinha um viés autoritário e não deu certo.
Primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do Estado Novo, Dutra havia sido ministro da Guerra de Getúlio Vargas e seu governo se caracterizou pelo alinhamento incondicional com os interesses americanos e pela perseguição ao comunismo e às organizações trabalhistas. Dutra tomou iniciativas políticas de natureza autoritária e atreladas ao contexto da Guerra Fria, um conflito que, sobretudo na Europa, dá, atualmente, sinais de que está voltando. O Partido Comunista foi colocado na ilegalidade, sob o argumento de que não seria um partido brasileiro, mas ligado aos interesses da extinta União Soviética – e, de fato, recebia apoio financeiro de Moscou. Ações repressivas contra organizações políticas alinhadas com a esquerda e trabalhistas também foram praticadas. Dutra interveio em 143 sindicatos e restringiu as greves.
INTERVENÇÃO Hermes da Fonseca: política salvacionista abriu espaço para interferência militar nos estados (Crédito:Divulgação)
“Tudo depende do tipo militar que será trazido para a política”, afirma o antropólogo Roberto da Matta. “Se forem militares com alto espírito de corpo e autoritários será um problema; mas se forem técnicos, honestos, trouxerem para a política a disciplina, o patriotismo e a capacidade de trabalho vai ser muito bom para o Brasil”. Da Matta acha que é cedo para falar em tentação autoritária, já que será preciso acompanhar o início do governo Bolsonaro para verificar se a sua prática política acompanhará seu discurso conservador. “Alguns de meus amigos estão esperando um governo fascista, mas temos uma democracia madura e que funciona”, completa. “Nenhum eleitor elegeu Bolsonaro rei do Brasil e a maioria que votou nele está esperando que siga as regras democráticas”.
“Autoritarismo suave”
O general Augusto Heleno, futuro ministro da Defesa, declarou que é um “preconceito bobo” não aproveitar os militares na política.“É um absurdo que não sejam aproveitados. Somos preparados para viver os problemas do País intensamente enquanto estamos na ativa e trazer esses conhecimentos que podem perfeitamente ser aplicados posteriormente”. Houve um aumento expressivo das candidaturas de militares. Para alguns, tal envolvimento expõe as instituições ao risco da partidarização, que pode levar à quebra do princípio da hierarquia. “O baixo clero dos militares pode ter alguma veleidade de engajamento”, diz o cientista político Aldo Fornazieri, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “Mas, de um modo geral, vejo que as Forças Armadas caminharam para a profissionalização”. Mesmo assim nunca tantos militares disputaram as eleições e conquistaram vagas. Levantamento feito pelo general da reserva Sebastião Peternelli, eleito deputado federal pelo PSL, em São Paulo, revelou que 105 integrantes das Forças Armadas concorreram, dos quais 32 estavam na ativa e 73 na reserva.
Estudo da Eurasia Group atesta que riscos de o governo Bolsonaro minar instituições democráticas são baixos, mas existem
Estudo da consultoria de risco político Eurasia Group divulgado na semana passada atestou que o perigo do governo Bolsonaro minar as instituições democráticas do País é baixo, mas existem. Na pior das hipóteses, o Brasil poderia ingressar no que a Eurasia Group classifica de “autoritarismo suave” que tem como exemplos os casos de Recep Erdogan, na Turquia, Vladimir Putin, na Rússia, Hugo Chávez, na Venezuela e Viktor Orbán, da Hungria. Em todos esses países os presidentes foram eleitos com grande apoio do eleitorado e usaram seu prestígio para centralizar o poder e cometer excessos por meio de referendo ou de reforma constitucional. Ao retirarem a máscara de democratas, restou o populismo, e descambaram para um autoritarismo. “É preciso considerar que as Forças Armadas são corporativas e se unem em torno dos seus objetivos de poder”, diz Sérgio Pinto. “Isso aconteceu diversas vezes na história do Brasil”. O risco é que esse corporativismo se fortaleça em torno de um ideário conservador e salvacionista e leve a propostas de endurecimento do regime.

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