As bravatas do presidente e as ações do governo em temas como o
desmatamento da Amazônia arranham a imagem do país e podem gerar perdas na
economia
Por Eduardo Gonçalves e Edoardo Ghirotto / Veja

IDEIA POLÊMICA - Bolsonaro em visita
recente a Manaus: projeto de “mini-Serras Peladas” nas reservas
indígenas (Alan Santos/PR)
Dia sim,
outro também, o meio ambiente tem sido um dos alvos prediletos da verborragia
de Jair Bolsonaro, que parece se divertir deixando boa
parte do mundo arrepiada com suas ideias — exceto, é claro, a tropa radical de
seguidores que enxerga em qualquer pessoa dotada de alguma preocupação
ecológica um comunista enrustido ou um inimigo do progresso do Brasil.
Implacável no discurso, o “Capitão Motosserra”, como ele mesmo passou a se
definir, vem distribuindo golpes contra o bom-senso, a lógica e os interesses
econômicos do país, que supostamente deveria preservar. Para os que ousaram
criticar sua ideia de transformar Angra dos Reis na “Cancún brasileira”, por
exemplo, o presidente disse que quem se importava com isso eram “os veganos que
comem só vegetais”. Sobre a fiscalização ambiental, já falou em “segurar”
multas ambientais e “fazer uma limpeza” no Ibama, o órgão de controle no setor.
Defrontado com evidências da aceleração do desmatamento da Amazônia, como bom
pupilo de Olavo de Carvalho, chamou os dados científicos de mentirosos e
ironizou as preocupações. No último dia 8, proferiu uma pérola escatológica ao
responder a um repórter como seria possível conciliar o desenvolvimento
econômico com a preservação do planeta: “É só fazer cocô dia sim, dia não”,
declarou.
Se
ficassem apenas no campo da retórica, situações assim teriam apenas o efeito de
aumentar a extensa lista de declarações folclóricas do presidente. O problema é
que tais bravatas já se materializam em políticas do governo. No caso de Angra
dos Reis, iniciou-se um mapeamento para avaliar as ações necessárias à criação
da “Cancún brasileira”. A promessa de passar o facão no Ibama também tem sido
cumprida. De janeiro a abril deste ano, o número de operações de fiscalização
contra o desmatamento promovidas pelo órgão caiu 58% em comparação ao mesmo
período do ano passado, segundo dados do Observatório do Clima.

REAÇÃO INTERNACIONAL – Protesto na embaixada brasileira em Londres: país
na posição de novo vilão ambiental (Peter Nicholls/Reuters)
Nada
disso, no entanto, repercutiu mais negativamente que o episódio da demissão de
Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Galvão foi o responsável pela produção de alertas e divulgação de dados do
sistema de monitoramento da Floresta Amazônica que apontaram uma área desmatada
278% maior em julho de 2019 em comparação com o mesmo mês de 2018. É uma
diferença tão gritante que não permite questionamento sobre o aumento do
desmatamento da Amazônia. Indignado com a atitude, em sua opinião, contrária
aos interesses do Brasil, Bolsonaro atirou no mensageiro, substituindo o
renomado cientista pelo coronel Darcton Policarpo. Em suas primeiras
declarações como diretor interino do instituto, Policarpo afirmou que o
aquecimento global “não é minha praia”.
Delicada
e tratada com toda a seriedade que o assunto merece, a questão ambiental
apavora a comunidade internacional. Na visão de alguns analistas, a política
atual de Bolsonaro para o setor pode transformar o Brasil no novo inimigo
ambiental do planeta (um título nada positivo). Até mesmo a China, a atual vilã
número 1, vai na direção contrária, pelo menos tentando se comportar de forma
mais responsável. Com o impulso das declarações do presidente e o afrouxamento
dos controles ambientais, o Brasil virou o novo centro das preocupações no
exterior. Em editorial recente, a revista inglesa The Economistsugeriu que o desmatamento não autorizado
da Amazônia poderia prejudicar os fazendeiros brasileiros se levasse a um
boicote estrangeiro de produtos. A Foreign Policy, uma
das mais respeitadas publicações sobre relações internacionais no mundo, trouxe
um artigo de Stephen M. Walt, um professor da Harvard, cujo título original era
o seguinte: “Quem vai invadir o Brasil para salvar a Amazônia?”.

MARCHA – Cerca de 1 500 indígenas em Brasília: manifestação contra a
exploração da Amazônia (Evaristo Sá/AFP)
Exageros
à parte, o boicote a produtos brasileiros é uma ameaça real. Diplomatas do país
relatam, em condição reservada, que já ouviram o mesmo lobby sendo feito por
diretores de ONGs em representações na Europa. A questão chegou a ser debatida
entre embaixadores do Velho Continente quando o Brasil ameaçava deixar o Acordo
do Clima de Paris antes do início do governo Bolsonaro. A repercussão negativa
nos bastidores fez com que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
adotasse postura mais comedida, indo na direção contrária do próprio presidente
e do chanceler Ernesto Araújo, que defendiam expressamente o rompimento do
pacto. O comportamento pode pôr em risco ainda o esforço de duas décadas feito
para desenhar o acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. O
trabalho precisa ser ratificado pelo Poder Legislativo de todos os países
signatários, e o cumprimento de cláusulas ambientais terá um peso grande.

FÚRIA – Ponte queimada com pneus na Transamazônica na região de Placas,
no Pará: revolta popular contra a fiscalização (//Reprodução)
Uma
primeira sinalização dos riscos que o Brasil corre veio nesta semana, com o
congelamento de um financiamento de 155 milhões de reais que a Alemanha
destinava a projetos de preservação da Amazônia, em protesto contra o avanço do
desmatamento. Após Bolsonaro dizer que não precisava do aporte alemão, a
ministra do Meio Ambiente do país europeu, Svenja Schulze, afirmou que a
declaração era um indicativo de que sua Pasta havia atuado de forma correta.
Ricardo Salles entrou em campo para tentar reverter o mal-estar e recuperar o
investimento (veja a entrevista). Na
última quarta, 14, porém, o Capitão Motosserra desferiu outro golpe, sugerindo
que a chanceler alemã, Angela Merkel, utilize a verba negada ao Brasil para
“reflorestar a Alemanha”. Na quinta 15, foi a vez de a Noruega congelar o
repasse de 133 milhões de reais para o Fundo Amazônia.
Até aqui,
os únicos que estão no lucro com o descaso ambiental são os garimpeiros e
madeireiros que atuam na ilegalidade. “Eles estão se sentindo empoderados”,
relatou a VEJA um dos agentes do Ibama. Em abril, Bolsonaro desautorizou uma
ação do órgão, que, conforme manda a lei, incendiou dois caminhões e um trator
de desmatadores ilegais na floresta de Jamari, em Rondônia. “Não é para queimar
nada”, afirmou o presidente, acrescentando que mandaria abrir procedimento
administrativo contra os funcionários envolvidos. Em julho, fiscais foram
cercados por parte da população ligada às serrarias de Placas, no Pará, onde
havia uma área de derrubada ilegal. Uma ponte da Transamazônica chegou a ser
incendiada com pneus, e os funcionários tiveram de procurar abrigo em uma
delegacia. No mesmo mês, Ricardo Salles visitou a região de Espigão do Oeste,
em Rondônia, dias após uma ocorrência gravíssima. Homens encapuzados e armados
pararam um caminhão-tanque do Ibama, espancaram o motorista e atearam fogo ao
veículo. “O que acontece hoje no Brasil, infelizmente, é o resultado de anos e
anos e anos de uma política pública da produção de leis, regras, regulamentos,
que nem sempre guardam relação com o mundo real. O que estamos fazendo agora é
justamente aproximar a parte legal do mundo real”, declarou Salles na ocasião,
aplaudido pelos madeireiros.

CLIMA DE GUERRA – Caminhão do Ibama incendiado em Rondônia: em
represália à apreensão de madeira ilegal (//Reprodução)
Em meio à
ação, os agentes do Ibama descobriram 10 000 metros quadrados de toras de
madeira sem origem — ou seja, ilegais. O lote encontra-se até hoje sob embargo
do órgão. No último dia 8, o vice-prefeito da cidade, Waltinho Lara (PSDB), que
é ligado aos madeireiros locais, tentou liberar o material. “Foi acordado com o
ministro. Está parecendo uma afronta muito grande”, disse ele a uma fiscal,
referindo-se a Ricardo Salles, em uma gravação obtida por VEJA. Como a agente
não cedeu ao apelo, Lara elevou o tom: “Pode acontecer algo pior, estou
avisando”. Até a quinta 15, as madeiras continuavam no mesmo lugar. Servidores
do Ibama estão movendo um processo de assédio moral contra o ministro do Meio
Ambiente, acusando-o de criar um retrocesso ambiental e dificultar o bom
funcionamento da fiscalização. Salles diz que tudo não passa de um complô dos
funcionários que não querem trabalhar direito. Com base em documentos obtidos
por meio da Lei de Acesso à Informação, uma reportagem publicada no dia 14 pelo
jornal O Globo mostrou que, desde que assumiu o posto, o
ministro deu carona a dez deputados e senadores da bancada ruralista em voos de
aeronaves da FAB. Nenhum parlamentar ambientalista recebeu o mesmo agrado no
período. Entre os caronas de Salles, o mais proeminente é o deputado Alceu
Moreira (MDB-RS), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (não
exatamente o lado mais moderno e iluminado do agronegócio). Em janeiro, ele
entregou ao ministro um texto com treze pontos de interesse. Os principais eram
projetos de lei para flexibilizar o licenciamento e as multas ambientais. Um
deles — a criação de núcleos de conciliação para reduzir o número de infrações
aplicadas — entrou em vigor nesta semana.
Não é de
hoje que a política ambientalista do Brasil tem problemas. Enquanto se faz
vista grossa a ações de madeireiros e garimpeiros, há um cipoal burocrático que
dificulta a vida de quem tem a intenção de produzir legalmente ou aposta no
crescimento do país. Não raro, importantes obras de infraestrutura ficam
paradas para que os ambientalistas decidam o que fazer com espécies raras
encontradas no meio do caminho. A questão é que nem todos os casos de defesa do
meio ambiente são exageros de “esquerdistas”. Em muitas situações, as
acusações de agressão também exageram na histeria. No mês passado, por exemplo,
o Brasil foi colocado nas cordas novamente, pois teria permitido que
garimpeiros invadissem uma reserva indígena em Roraima e assassinassem um
cacique. Como de hábito, o caso ganhou rapidamente manchetes internacionais.
Parecia uma consequência lógica da política de Bolsonaro. O presidente já
manifestou a intenção de abrir esses territórios à exploração de mineradoras
internacionais para criar “mini-Serras Peladas”. Ocorre que, até agora, não se
sabe exatamente a causa da morte do cacique. A investigação também não
conseguiu encontrar vestígios de invasores. O que se sabe, como alertou o
colunista Elio Gaspari em artigo em O Globo e
na Folha de S.Paulo, é que nenhuma mineradora
internacional colocará dinheiro no Brasil se sonhar com uma manifestação de
índios em frente a sua mina. As grandes corporações, que obedecem às leis de
compliance de organismos e fundos internacionais (dos quais recebem recursos),
não arriscam sua reputação — e investimentos — em situações dessa natureza.

A FORÇA DO CAMPO – Plantação de soja no Centro-Oeste: o Brasil consegue
produzir mais, utilizando menos áreas (Rodolfo Buhrer/La Imagem/Fotoarena)
Espremidos
entre essas posições radicais, os produtores responsáveis do agronegócio
começam a se preocupar seriamente com os prejuízos que podem aparecer no campo.
“Imagine o que pensa o sujeito que mora em Nova York, acorda no domingo de
manhã e vê uma foto na capa do jornal sobre a Amazônia pegando fogo. É um
choque tremendo”, afirma Roberto Brant, presidente do Instituto CNA, braço da
Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). Aos poucos, começam a surgir
sinais do setor para se descolar do radicalismo. A Marfrig, gigante do mercado
de proteína animal, tem veiculado anúncios em que se diz preocupada com a
preservação da floresta e que rechaça fornecedores que não respeitam áreas
protegidas. Presidente da Suzano, a maior produtora de celulose do mundo,
Walter Schalka foi aplaudido em um evento nesta semana ao dizer que o
empresariado precisa aumentar a voz e não permitir o desmatamento da Amazônia.
São
tentativas de evitar que a postura do governo federal destrua a imagem positiva
que o setor construiu ao longo dos últimos quinze anos no exterior. O respeito
à floresta, o uso intensivo de tecnologia e o aprimoramento das técnicas
elevaram substancialmente a produtividade nos últimos quarenta anos — seu
crescimento foi de 412% no período, enquanto a área plantada aumentou apenas
68%. O compromisso com práticas de boa conduta ambiental também evoluiu. Uma
das iniciativas foi a formação da Coalizão Brasil Clima, Florestas e
Agricultura, que estabelece uma parceria do setor privado com entidades do
terceiro setor para garantir o cumprimento do Código Florestal, sobretudo no que
diz respeito ao começo da execução dos programas de recuperação ambiental
previstos desde a aprovação da lei, em 2012. “Qualquer país que se afaste do
compromisso de um meio ambiente saudável estará dando um tiro no pé”, afirma
Carlos Nobre, pesquisador do IEA-USP.
Tal
raciocínio baseia-se fundamentalmente na questão econômica. Estudos conduzidos
por Bernardo Strassburg, do Instituto Internacional para Sustentabilidade,
mostram que as áreas de conservação geram lucro consideravelmente maior do que
se fossem aproveitadas como terras de plantio ou pasto. De acordo com os
cálculos, cada hectare preservado da Amazônia garante 3 500 reais por ano. Se o
mesmo terreno virar pasto, o valor cairá para uma faixa entre 60 e 100 reais. A
conta é baseada nos serviços ecossistêmicos que as áreas prestam à própria
sociedade brasileira, como o fornecimento de água, a polinização e as
capacidades do solo preservado. “Não adianta se fechar num casulo e brigar com
os números”, alerta Brant, da CNA. “A preocupação mundial com a Amazônia
existe, e não vamos poder calar isso. Temos de agir diante do que estamos
vendo.”
A ação
precisa ser mesmo imediata, pois, em um piscar de olhos, os tratores abrem
caminho de forma ilegal. É o caso de uma área de quase 500 hectares (5
quilômetros quadrados) em Rio Sono, no Tocantins, que foi desmatada sem
autorização entre janeiro e março deste ano. A região da cidade, caracterizada
pelo cerrado, está localizada nas cercanias do Parque do Jalapão e era
considerada uma das mais bem preservadas de todo o estado. Imagens de satélite
mostram que a área registrou um dos maiores alertas consolidados neste ano pela
plataforma MapBiomas, que cruza dados do Deter, o sistema de monitoramento
utilizado pelo Inpe, com informações fundiárias e de fiscalização.
“Historicamente essa região apresentava pouco desmatamento, mas parece estar
despontando como uma nova fronteira”, diz a diretora de ciência do Instituto de
Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Ane Alencar. Pela análise das imagens, captadas
em quatro propriedades, Alencar afirma que a vegetação foi convertida em uma
área para o agronegócio, mas que ainda não ocorreu plantio no local. “Pelo
tipo, parece ser soja”, explica. VEJA mostrou as imagens a outro especialista
na região, que, em anonimato, chamou atenção para as leiras de limpeza
características de plantações de soja. No município, há aumento na procura de
terras para o cultivo de grãos. Os preços baixos, de 15 000 a 18 000 reais por
alqueire, têm atraído produtores de fora. Enquanto poucos vão lucrar, o Brasil
inteiro sai perdendo. Está na hora de o governo escolher o lado certo nessa
luta — o da racionalidade.
Colaborou
Leonardo Lellis
Publicado
em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648
Imagem
aérea da Amazônia feita pelo fotógrafo Paulo Vitale
Postar um comentário
Blog do Paixão