segunda-feira, agosto 12, 2019

HISTÓRIA DE ARARIPINA: MÃE ROSA (Rosa Felícia de Jesus)


Foto: Ilustração


boa velinha que me criou, que criou meu pai, que criou meu avô, baixinha, andando curvada, com o apoio do bastão. Cabelos castanhos escuros, lisos, sobre um rosto arredondado, de olhos pequenos e esverdeados, nariz achatado, orelhas grandes, tez morena. Trigueira, cabocla. O seu problema na coluna nunca a permitiu vestir vestido inteiro. Sempre de saia e de blusa.

Chegou para a casa do meu bisavô João Custódio, em Pio IX (PI), no ano da grande seca de 1877, com 12 anos mais ou menos. Os seus pais e irmãos demandaram para terras desconhecidas, fugindo da seca e nunca mais se teve notícia deles. Teria ela outro destino. Seu Joãozinho era assim que ela o tratava, a recebera como filha. Cresceu como membro da família, cuidando do meu avô, Hermenegildo

Quando João Custódio veio para a Boca da Mata, em 1903, Mãe Rosa acompanhou a família, agora, cuidando de meu pai, com um ano de idade. Aqui na Boca da Mata, passou a integrar outra família, a Modesto, pois minha avó era filha do Cel. Antônio Modesto. Ampliava-se o seu círculo familiar. Ninguém a tratava como serviçal. Participava de todas as atividades domésticas e, nas decisões de família era obrigatoriamente consultada. Ninguém lhe fazia reserva. 

Meu pai se casou em 1931 e Mãe Rosa o acompanhou. Dona Lulu (como chamava a minha bisavó Luiza Gomes Arraes) morrera em 1930. Mãe Rosa ficou lá em casa, até a morte. Cuidava de casa e da gente. Gostava de viver na cozinha. Ali era o seu mundo. Nunca saía à rua, salvo para ir a missa aos domingos. Poucas vezes, sentava-se à calçada. Mas era bem informada do que se passava lá fora. 

Não dormia em cama. Sua rede tinha lugar sagrado no quarto da minha irmã Socorro. Além das tarefas de casa, ajudava minha mãe na disciplina. Brigava conosco e às vezes nos batia. Era uma pancada fofa, com a face superior de seu chinelo. Fingíamos chorar, para não lhe causar decepção. Ela sabia o que fazia, com “esses meninos impossíveis”. 

Tinha cuidado com as nossas amizades e companhias. Não nos queria brincando com os filhos de fulano ou de beltrano. Não por razão de preconceitos sociais ou cor, mas porque “eram sem estilo”. Ela conhecia a raiz de toda a população de Araripina e sabia quem “prestava” e quem “não prestava” dentro dos seus padrões éticos. Nossos amigos de infância também chamavam Mãe Rosa e lhe tomavam a bênção, maneira de cativar-lhe a simpatia. 

De manhã, no café, um pedia que lhe esquentasse o pão, outro lhe pedia uma tapioca, outro queria mais escaldado (pirão de leite) e quando se via azucrinada, perdia a paciência e largava um “arre, que menino arado”. Ou então quando a brincadeira passava um pouco do limite, ameaçava: “eu te abarco com o chiquerador” (pedaço de pau, com um relho na ponta, para espantar as galinhas que entravam na cozinha). 

Tinha os seus preconceitos. Não comia macarrão, porque dizia que era feito de tripa de galinha. Nem ver a carne de charque, feita de carne de cavalo. 

Já no fim da vida, veio para Recife. Já não tinha mais disposição para cuidar da cozinha, mas não se rendia. Alegava que não sabia mexer com o fogão a gás. Comia pedaços gostosos de carne de charque, porque a convencemos de que se tratava de carne de sol de Recife. Não tinha quem a convencesse de que era charque mesmo. – Pois eu num bem conheço, dizia ela com a mais pura das convicções. 

Certa tarde, o rádio tocava uma música de Augusto Calheiros. – Mãe Rosa, esse homem que está cantando já morreu, disse Gonzaga. – Deixa de conversa menino, tá agourando os outros, ela o repreendeu. Gonzaga explicou que era a voz do cantor gravada num disco e lhe mostrou um. Ela se fez de entendida. – Ele não canta bem, Mãe Rosa? Perguntou Gonzaga. – É, a vista de quem já morreu, canta até bom, respondeu inocentemente. 

Contava histórias e recordava fatos passados. Se tínhamos alguma dúvida sobre qualquer fato do passado “vamos consultar o dicionário”, dizíamos. E ela esclarecia com detalhes. Tinha uma boa memória e guardou a lucidez até os últimos momentos da vida. 

No dia 4 de outubro de 1970, dia de São Francisco e Assis, lá se foi a boa velhinha, toda vestida de branco, de véu e grinalda, como era o seu desejo de moça donzela, para junto do finado João Custódio, da finada Lulu, do compadre Mendu, da comadre Senhora, de Neozinha, de Alfredo, de Bastim e de tantos outros parentes e amigos. 

- Chama o resto da cambada da Boca da Mata e vamos fazer a festa da chegada da Véia Rosa, deve ter dito o irreverente Tio Bastim. 

De fato, naquele dia, lá no céu, deve ter havido uma grande festa, com a chegada de ROSA FELÍCIA DE JESUS. 

Do Livro: Araripina, História, Fatos e Reminiscências
De: Francisco Muniz Arraes


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