Seria muita pretensão – e até um exagero da minha parte-se de alguma forma eu deixasse transparecer que, ao lançar este documento (que considero mais legítimo compará-lo a um trabalho de repórter), estivesse me colocando na condição de escritor. Nada disso. Trata-se de um relato feito às pressas, dada à premência do tempo, sobre um pouco da vida de um amigo meu, pois passei a admirar João Câncio a partir do momento em que o conheci.
Acredito eu que nós tínhamos as mesmas ideias. Era um humanista, uma criatura de Deus, do tipo que tomava as dores dos pequenos e que, por isso mesmo, arrumou algumas encrencas com pessoas conservadoras, claro que cidadãos que detinham um pouco de poder, mas que também tinham lá suas qualidades, pelo menos as que conheci. Mas será que existe algum idealista que nunca teve problema? Não conheço um!
Pois bem, tratava-se de um padre diferente daqueles que passam a vida inteira de batina, fazendo o convencional. O padre cidadão comum, filho de Mestre Chico barbeiro, tinha como esporte preferido a derrubada do boi, a festa dos vaqueiros, a corrida do mourão. Era o padre João dos vaqueiros de Serrita e dos municípios vizinhos e Sítio dos Moreira, Bodocó e Exu, que aprendreu montar a cavalo e derrubar boi com Valírio Luciano, que era criador e vaqueiro, irmão de Osvaldo, da comunidade do Mameluco, que foi embora para o Paraná.
Este trabalho pretende revelar como era o relacionamento do padre-vaqueiro com a comunidade, através de depoimentos das pessoas mais próximas dele, os seus amigos da vaquejada e os colaboradores nas atividades religiosas, dentro da Igreja e nas celebrações itinerantes que aconteciam nos sítios e fazendas da região do Araripe, as chamadas missas dos vaqueiros; o difícil romance e o namoro proibido do sacerdote com a estudante Helena, com quem teve um casamento secreto que marcava seu afastamento da Igreja Católica, como sacerdote que criou a Missa do Vaqueiro, considerado o maior evento popular de Pernambuco depois da Paixão de Cristo de Nova Jerusalém.
Foi preciso andar algumas centenas de quilômetros e gastar muitas horas de trabalho para localizar documentos e pessoas que foram muito importantes na vida de João Câncio, como seu sacristão e homem de confiança, João Miranda dos Santos (não confundir com João Miranda, de Serrita), o Primo, de Sítio dos Moreiras; Tonha de Bárbara, que foi sua amiga e governanta por um longo tempo em Serrita, a preta velha de Exu, Eudócia, que preparava as missas das vaquejadas; os presidentes da Associação dos Vaqueiros do Alto Sertão, Antônio de Mendes (fundador) e Ciro Couto e tantas outras pessoas que tiveram paciência e muita boa vontade em colaborar com este trabalho, como Pedro Bandeira, a própria Helena Câncio, seu Antônio Avelino, irmão do Mestre Chico e Dernil, filho de Pedro Braz, que considero o verdadeiro idealizador da missa não convencional hoje conhecida no mundo inteiro.
Há questões polêmicas – delas tornadas públicas em grande volume de matérias publicadas na imprensa e outras que ficaram guardadas na memória de algumas pessoas e só agora comentadas – que irão se eternizar e que são comentadas aqui, como a morte de Raimundo Jacó, e a do próprio João Câncio, para lembrar os fatos relacionados com o fundador da missa e o vaqueiro que a inspirou, sabendo que nada vai mudar, pois se houve crimes, a Justiça já se pronunciou sobre eles; se houve impunidade, cabe à sociedade ter o discernimento e a compreensão necessários para fazer o juízo que o caso merece. Não compete a mim, passado tanto tempo, fazer nenhum juízo de valor, senão lembrar os fatos sem querer tirar nenhum proveito deles, a não ser a importância que eles tiveram diante da história de um homem que teve a vida diferente de muitos outros mortais. Foi inovador e, até certo ponto, revolucionário.
Machado Freire
Autor do Livro: João Câncio – A Saga do Padre-Vaqueiro
Blog do Paixão