Após ignorar riscos da Covid-19, trio
de empresários do Pará acaba infectado e voa para São Paulo em busca de socorro
em unidades estreladas como Albert Einstein e Sirío-Libanês; viagens chegam a
custar R$ 120 mil
Ullisses Campbell
Paciente com coronavírus é colocado em uma UTI
aeromédica, que deixou Belém do Pará com destino a hospital de São Paulo Foto:
Reprodução
A família do empresário Jonas Rodrigues,
de 41 anos, é uma das mais ricas do Pará. Ela é proprietária da maior rede de
supermercados do estado, o Grupo Líder. Mesmo com as recomendações das autoridades
sanitárias para ficar em casa, ele saía diariamente sem máscara, como se a
pandemia de coronavírus não tivesse chegado a Belém, onde mora.
"Não era muito adepto do
álcool em gel. Estava trabalhando todos os dias no escritório, sem home-office,
passeava pela cidade e ia às compras mesmo sendo dono uma rede de supermercado.
Adoro visitar mercados pelo país afora", conta. Não deu outra. Ele, o pai
e a mãe contraíram Covid-19. "Se arrependimento matasse...", comenta.
Outro supermercadista
afortunado do Pará, José Santos de Oliveira, de 77 anos, achava que estava
imune ao vírus. Atleta, exercitava-se todos os dias em casa e no trabalho e
sempre manteve uma alimentação saudável. Ao descumprir as recomendações de
distanciamento social, foi infectado pela Covid-19 e agonizou com a doença,
deixando familiares muito apreensivos.
O empresário Kleber Ferreira
Menezes foi secretário de Transportes do Pará. Quando esteve no cargo, chegou a
ser denunciado pelo Ministério Público por improbidade administrativa e crime
contra o erário, envolvendo valores na casa dos 20 milhões de reais em
contratos com sérias suspeitas de fraudes. Ele refuta todas as acusações
("Não sou ladrão!"). Kleber também não dava a menor bola para o
coronavírus e levava uma vida em Belém como se nada estivesse acontecendo.
Sentiu uma tosse enquanto assistia televisão e, em poucos dias, passou perto de
morrer.
Mas o que Jonas, José e Kleber têm em comum além do teste positivo para
Covid-19 e da conta bancária milionária? Para fugir da morte, os ricos de Belém
– como o trio de empresários – estão abrindo a carteira, correndo para o
aeroporto e embarcando em jatinhos de luxo equipados com UTIs. Eles seguem rumo
aos melhores hospitais de São Paulo em busca de sobrevivência. Jonas foi
socorrido no Hospital Alemão Oswaldo Cruz, José no Hospital Israelita Albert
Einstein e Kleber no Sírio-Libanês, todos na capital paulista. Os três estavam
em estado grave quando fizeram a viagem.
Levantamento de ÉPOCA atesta que são
embarcados diariamente oito pacientes de Covid-19 em jatos com UTI de Belém
para outros estados e até para o exterior. A maioria segue para São Paulo. Os
paraenses endinheirados não fogem do Pará à toa quando são contaminados pelo
coronavírus. A nova doença está devastando a capital numa velocidade
assustadora.
Em duas semanas, os casos de
mortes pela Covi-19 aumentaram 900% no Estado. Até terça-feira (5/5), o Pará já
computava 4,756 casos confirmados e 375 mortes, uma taxa de 4,2 óbitos por 100
mil habitantes. Na média do Brasil, esse índice está em 3,7 por 100 mil.
A maioria dos casos se
concentra em Belém, que vive clima de terra arrasada. Todos os hospitais –
tanto da rede pública quanto da privada – estão lotados e operando acima do
limite. No Hospital Abelardo Santos, a maior referência paraense em
coronavírus, há pacientes definhando em macas à espera de uma vaga na UTI.
Sem capacidade de atender a demanda, Belém
vive uma situação inédita no país: os pacientes estão saindo de casa em busca
de atendimento médico, dão de cara na porta e acabam sucumbindo no meio da rua.
Com o estado de calamidade e com uma adesão de 45% ao isolamento social na
capital, o governo foi obrigado a decretar lockdown (bloqueio total) na
quinta-feira (7/5) em dez municípios da Região Metropolitana de Belém.
Jonas, o dono de mercados,
conta que o primeiro a pegar coronavírus na família foi o pai, José Corrêa
Rodrigues, de 70 anos. Rapidamente a doença avançou e sua mãe, Ana Célia, de 67
anos, também foi contaminada. Ele chegou a ligar para alguns hospitais
particulares de Belém, mas não havia leito de UTI disponível nem no mais
aparelhado da capital.
"Se não tivéssemos
embarcado na UIT aeromédica, meu pai teria morrido, pois essa doença evolui
numa rapidez impressionante. Graças a Deus ele apresentou melhoras",
agradece. "Olha, eu assumo que subestimei a essa doença. Achava que ela
era algo distante. Até que vi meu pai passando mal como nunca vi antes. Aí
passei a achar que era coisa de idoso. Foi preciso eu sofrer uma súbita falta
de ar para atestar que não dá para brincar com isso", descreve. Jonas se
curou e teve alta hospitalar, mas resolveu ficar em São Paulo para cuidar do
pai. "Só saio daqui com ele", avisa.
Kleber achava que ia morrer quando sentiu os piores efeitos da Covid-19.
Ele chegou a se internar em um hospital particular em Belém, mas correu de lá
tão logo conseguiu contratar a UTI aérea, e reservou duas vagas nos
apartamentos do Sírio-Libanês.
O empresário Kleber
Ferreira Menezes e a mulher, a cirurgiã plástica Lastênia Menezes, embarcaram
do Pará rumo ao Sírio-Libanês, em São Paulo, numa UTI aeromédica Foto:
Reprodução
Uma para ele e outra para a sua mulher, a cirurgiã plástica Lastênia
Menezes, uma das mais requisitadas da capital paraense. A médica também pegou o
vírus e adoeceu de Covid-19. Apavorada, escapou de Belém junto com o marido na
mesma UTI aeromédica.
No Pará, Kleber é uma figura polêmica. Além das acusações feitas pelo
Ministério Público, ganhou fama pelos vídeos que posta em suas redes sociais
ostentando riqueza. Quando embarcou na UTI aérea, no aeroporto de Belém, fez
questão de gravar um vídeo pelo celular e postar no grupo de WhasApp do
condomínio, todo paramentado com equipamentos de proteção individual. A ideia,
segundo diz, era mostrar aos vizinhos que estava bem.
No vídeo, ele tosse logo na introdução e faz uma narração na sequência:
"Oi gente! Estou embarcando agora de Belém para São Paulo. Estamos eu e
minha esposa, a doutora Lastênia. Estamos entrando na UTI aeromédica. Se Deus
quiser, vai dar tudo certo. Um forte abraço a todos." O vídeo, lógico,
migrou do WhatsApp para todas as redes sociais e rapidamente viralizou. Kleber
recebeu críticas por todos os lados.
Alguns comentários maldosos insinuaram que o ex-secretário pagou a UTI
aeromédica e as diárias do Sírio-Libanês com dinheiro supostamente desviado dos
cofres públicos. "Jamais!", defende-se. "Quando assumi cargo
público eu já era rico, pois atuava na área portuária. (...) Meu sangue é
nordestino. Na minha terra, pode até chamar alguém de corno, que se leva na
brincadeira. Agora, de ladrão? Nunca!", argumenta ele, que é baiano.
Pegar uma UTI aérea de Belém para São Paulo custa caro. ÉPOCA levantou
uma cotação com três empresas que fazem esse tipo de transporte. O valor é
calculado pela quilometragem. Em época de pandemia, as tarifas sofreram
aumentos de até 30% por causa da alta demanda e do risco de contaminação a que
a tripulação é submetida ao transportar doentes com coronavírus.
O custo médio para levar um paciente entubado da capital do Pará até São
Paulo gira em torno de 120 mil reais. Uma das maiores empresas que atuam com
pacientes de Covid é a Brasil Vida. Na cotação feita no sábado (2/5) pela
reportagem com essa empresa, o transporte de um paciente de Belém para o
Sírio-Libanês custaria 118 mil reais. Na quarta-feira (6/5), esse valor estava
em 125 mil.
O funcionário encarregado de fazer a
cotação, Tiago Pinheiro, justificou o aumento alegando a alta procura e os
custos de manter médicos em enfermeiros em casa à disposição 24 horas para uma
possível emergência. “Eles recebem diárias de plantão mesmo estando em casa sem
fazer nada”, ponderou. E garantiu que não há aumento no preço quando o paciente
tem Covid-19. “Tanto faz se ele foi contaminado com coronavírus ou se quebrou a
perna. O preço é o mesmo”, assegura.
O voo numa UTI aeromédica é
algo delicado quando o paciente tem problemas respiratórios por conta do
aumento da pressão atmosférica nas alturas. “O risco de óbito é muito maior. Os
pacientes precisam de muito cuidado, até porque o voo de Belém para São Paulo é
muito longo (dura três horas e meia) para um paciente que segue entubado”,
explica o enfermeiro de UTI aérea João Godoi.
Ele também diz que a equipe voa
com muito medo de ser contaminada, mesmo que o paciente siga a viagem todo
“embrulhado” num plástico de polietileno. Já os profissionais de saúde e o
piloto vestem-se com roupas impermeáveis, incluindo galochas de borracha, e
duas máscaras e mais o protetor facial de plástico conhecido como face shield.
Isso é proteção para contaminação
biológica, a de nível III. Mesmo assim há casos de profissionais de Saúde que
se contaminam com coronavírus durante o voo numa UTI. Algumas empresas de táxi
aéreo, inclusive, vêm se recusando a transportar pacientes com Covid-19 por
conta do risco de contágio.
Na UTI aeromédica, há todos os
equipamentos que uma UTI hospitalar possui. Todos os voos são feitos com um
médico intensivista e um enfermeiro especializado. Se o paciente de Covid-19
embarcar respirando e, durante a viagem, enfrentar problemas de respiração, ele
é entubado durante a viagem.
Caso o estado de saúde se
agrave com risco iminente de óbito, o piloto decide se volta para a cidade de
origem ou se faz um pouso de emergência no aeroporto mais próximo. Segundo
todas as empresas consultadas por ÉPOCA, no valor cobrado pelo transporte aéreo
dos doentes estão inclusos os transportes em ambulâncias do hospital de origem
em Belém até o avião e do avião em solo paulistano até o hospital onde o
paciente será internado. No voo é possível levar até dois acompanhantes.
O médico intensivista César
Collyer atua na linha de frente no combate ao coronavírus em Belém no Hospital
Ophir Loyola. Pertencente à rede estadual, a entidade é especializada em
câncer, mas as 30 UTIs do hospital estão abarrotadas de pacientes com Covid-19.
"Nunca vi nada igual em meus 20 anos
de carreira. Ontem, um médico da minha equipe morreu contaminado por esse
vírus. Estamos esgotados fisicamente e psicologicamente. Me sinto com as mãos
atadas por ver pessoas morrendo todos os dias sem ter o que fazer",
desabafa. "Quem tem dinheiro tem mais que procurar atendimento fora de
Belém porque a rede particular também está colapsada", avisa.
O prefeito de Belém, Zenaldo
Coutinho (PSDB), também aconselha os ricos a procurarem tratamento fora da
cidade que administra, pois a situação no Pará está num nível de colapso nunca
visto antes. Ele diz que nunca viu nada parecido em 40 anos de vida pública.
"Aqui, a situação é
dramática. A população não deu muita bola para a pandemia. As feiras e os
supermercados ficam lotados no fim de semana. Nos bairros mais populares, as
pessoas vão para ruas e fazem aglomerações sem usar máscara. O paraense não acredita
no que vê na TV todos os dias. Parte da população também sai de casa porque
precisa trabalhar para sobreviver", avalia o prefeito.
Ele também atribui o pouco caso
dos paraenses em relação à pandemia às fakenews disseminadas na internet .
"Muita gente não acredita no avanço da doença porque se informa nas
bobagens publicadas em redes sociais", conclui. Ele diz que entende
que os ricos estejam procurando tratamento em outros estados. "Os muito
ricos vão para onde tem as melhores tecnologias. Isso é uma evidência de que a
rede privada no Pará também saturou", diz o prefeito.
Ricos e pobres do Pará costumam recorrer a
Nossa Senhora de Nazaré para alcançar a cura de doenças graves, como câncer. No
dia do Círio, no segundo domingo de outubro, os fiéis costumam pagar pelas
graças alcançadas ao longo do ano.
Em 2020, os promesseiros
poderão não ter como quitar a dívida com a Santa. Como o Círio de Nazaré se
constitui na maior aglomeração de gente – a procissão do ano passado reuniu
mais de 2 milhões de pessoas – não há a menor possibilidade de a festa
religiosa ser realizada daqui a cinco meses, conforme o previsto.
A Igreja Católica, que organiza
o evento, ainda não sabe como comunicar esse fato aos seus fiéis. Duas
cerimônias concorridas (a apresentação do cartaz do Círio e o ritual de descer
a imagem de Nossa Senhora do altar-mor no mês de maio) serão feitas
virtualmente até o fim de maio.
No entanto, noventa por cento
das reservas feita para o período da festa foram canceladas, segundo o
Sindicato dos Hotéis do Pará. Esse dado indica uma evasão em massa dos
turistas. "Pelo andar da carruagem está bem difícil ter Círio em 2020.
Embora eu seja o prefeito da cidade e devoto de Nossa Senhora de Nazaré, vou
deixar a decisão pelo cancelamento ou por um possível adiamento para a Igreja
Católica", diz o prefeito. "Mas, pelo caminho que estamos seguindo
com essa pandemia, não vejo cenário para uma aglomeração de centenas de
milhares de pessoas nas ruas. Não vislumbro a possibilidade de haver
Círio", avisa
O arcebispo de Belém, Dom Alberto Taveira
Correa, presidente do Círio de Nazaré, ficou irritado quando se cogitou o
cancelamento da festa religiosa. "Estamos mantendo todo o calendário do
Círio. No momento oportuno eu anuncio se vai ter Círio ou não ou se ele será
adiado, suspenso ou mesmo cancelado. Por ora, estamos trabalhando com todas
forças para fazer uma festa bonita para os paraenses. Mas vamos procurar as
autoridades para decidirmos juntos", ponderou.
Como os fiéis atribuem a Nazaré curas milagrosas, um padre de Belém pegou a imagem de Nossa Senhora usada no Círio e fez um sobrevoo de helicóptero pela cidade no início de abril, na tentativa de se alcançar um novo milagre: exterminar o coronavírus da maior metrópole da Amazônia e, sem ele, conseguir uma autorização sanitária para realizar o Círio. Até agora, não deu certo.
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