João
Paulo Saconi / Época
A
neurologista Bruna Villela, médica da linha de frente do Instituto Estadual do
Cérebro Paulo Niemeyer, transformado em unidade de referência para o tratamento
de Covid-19 no Rio de Janeiro. Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Até menos de dois meses atrás, a médica
neurologista Bruna Villela, de 42 anos, dividia seus dias entre seu
consultório, em Niterói, e o Instituto Estadual do Cérebro Paulo Niemeyer, na
Lapa, no Rio de Janeiro, onde dava expediente. Com quase 15 anos de carreira,
frequentar uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) era atividade corriqueira
decorrente de sua profissão e também das histórias ouvidas de seu pai, que é
médico intensivista, hoje aposentado. Casada e mãe de uma menina de 5 anos,
Bruna tinha uma vida estável. Tinha.
Hoje, as marcas em seu rosto começam pouco a pouco
a sumir. Vão-se os últimos resquícios de mais de uma dezena de plantões
trabalhados sob rigoroso esquema de paramentação. Para amenizar a dor da pele
ferida pelas máscaras de uso contínuo, Bruna tentou subterfúgios.
Comprou ela mesma um estoque de um modelo mais
confortável do que o usado na rede pública, encontrado numa rara oferta na
internet. Para amortecer a fricção dos movimentos da face ao respirar com a
superfície dura do equipamento, colou protetores de calcanhar na parte mais
rígida. Resultado: menos marcas.
Truques de sobrevivência numa rotina quase diária
de 12 horas ininterruptas salvando e perdendo vidas no hospital transformado,
desde março, em referência para o tratamento de Covid-19 no Rio. Outro truque
para perseverar diante da nova realidade é cobrir os móveis de sua casa vazia
com um lençol, para evitar o acúmulo de poeira. Nas poucas horas que sobram entre
os plantões e a desinfecção de seus pertences, Bruna não quer perder tempo
fazendo limpeza. Prefere conversar, por meio de chamadas de vídeo, com sua
filha, de quem se separou desde o início da pandemia. Tanto a menina quanto seu
marido tiveram de sair do apartamento em Icaraí, Niterói, e passaram a viver
com o pai de Bruna, enquanto durar o caos.
Para aguentar a barbárie que presencia diariamente na UTI do instituto, Bruna foi aconselhada, pela psicóloga que atende a equipe, a externar sua experiência na pandemia e resolveu escrever um diário como forma de aliviar a angústia. “Não tenho com quem falar em casa. Então, comecei a escrever”, explicou. Reunidos nesta edição de ÉPOCA, os relatos foram escritos, em geral, à noite, quando ela se deitava para dormir, depois de um longo processo profilático. Em algumas ocasiões, vencida pelo cansaço, Bruna dormiu enquanto digitava. A médica descreve desde suas expectativas com a nova rotina, logo no início da pandemia, até a dor e o desespero que se instalam enquanto os fracassos se empilham na forma de vidas perdidas.
Bruna teve de se separar da filha, de 5 anos, como medida de segurança para evitar a infecção. Há quase dois meses, as duas só se veem por chamada de vídeo. Foto: Leo Martins / Agência O Globo19 de março
Hoje foi meu primeiro dia de atendimento aos
pacientes com Covid-19. Havia, nos profissionais de saúde, um semblante de medo
e tristeza. Todos eles — médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem,
fisioterapeutas, fonoaudiólogos, pessoal da limpeza e técnicos de laboratório —,
todos estavam diferentes. Tudo estava diferente. Treinamento para utilizar
equipamentos de proteção individual, treinamento de técnicas especiais de
ventilação do paciente, uma explosão de informações diferentes a cada minuto.
Nos pacientes sedados e intubados, a expressão de
plenitude trazida pela sedação. Nos que respiram em ar ambiente, o rosto do
medo. Medo de a falta de ar piorar e de não conseguir se despedir dos
familiares. Sim, as visitas são proibidas. Uma vez internados, eles não veem
mais ninguém. Só aqueles profissionais aos quais eles entregam suas vidas.
Nos médicos, falando por mim, há um medo grande de
também adoecer, de não saber o que essa doença reserva para nós. Acima de tudo,
um medo enorme de levar a doença para nossa casa, para nossa família. Mas,
apesar de todo o pavor, há ainda um outro sentimento: o de dever a ser
cumprido. Ele transborda em nossa consciência e temos a certeza de que ali é o
nosso lugar.
Foi o primeiro dia de atendimento e meu primeiro
dia de isolamento também. Lateja o tempo todo na minha cabeça a pergunta da
minha filha, quando nos despedimos ontem: “A mamãe vai morrer?”. Assim como eu,
muitos de meus colegas estão isolados, longe de suas famílias, para tentar
protegê-las da infecção. Nós sabemos que a probabilidade de sermos infectados é
enorme. É iminente. E assim seguimos, enquanto pudermos. Seguimos honrando
nosso juramento. Que Deus nos abençoe.
20 de março
Corri para ver o paciente que ontem estava com
falta de ar. A respiração dele havia piorado. O exame mostrou que o pulmão
esquerdo já não funcionava mais. Ele estava cansado e não ia suportar por muito
tempo. O oxigênio faltava. Não tinha jeito: precisava ser intubado e acoplado à
ventilação mecânica. Enquanto isso, eu pensava: “Ele não viu a família, ele não
viu a família! Há quantos dias que ele não vê alguém que conheça?”. Cheguei a
jogar no ar a ideia de fazer uma chamada de vídeo para a família dele. São
minúsculos segundos em que a emoção fala mais que a razão. Mas eu sabia que não
era permitido, já que o celular pode se tornar um transmissor do novo coronavírus
e infectar outras pessoas.
Voltei à realidade. O momento chegou. E ali,
minutos antes de ser intubado, vi nos olhos dele o medo de “dormir” e nunca
mais acordar. Tinha pavor naquele olhar. Tinha entrega. Ele estava lúcido, só
não conseguia mais respirar adequadamente. Às vezes, olhava para o teto, como
se estivesse falando com Deus. E foi, então, sedado... Pensei: “Ora! Já passei
por isso tantas vezes! Intubar um paciente em terapia intensiva não é nada
especial!”. Mas em se tratando de uma unidade com tratamento para a Covid-19, será
que esse procedimento se tornará regra e não exceção?
Como percebi no primeiro dia, tudo estava
diferente. Tudo tinha proporções diferentes: o medo do incerto, de não saber
quantos pacientes perderemos para esse vírus, quantos pacientes virão. Naquele
momento, recebemos a informação que mais dois pacientes estavam chegando, muito
graves. Já em ventilação mecânica. E começamos tudo de novo. Um dia trabalhoso,
cheio de reflexões, mas contornável. Sei que daqui a alguns dias não será
assim. Dias piores, muito piores, virão.
Hoje, o medo de me contaminar já não é mais o mesmo
que ontem. De tanto colocar e retirar os equipamentos de proteção individual, e
diante do aumento do número de doentes, o meu “eu” fica meio esquecido. Nós
pensamos mais “neles”. Isso é ser profissional da saúde. Deus nos abençoe e nos
ajude a enfrentar os dias piores.
Hoje vi minha filha de longe...
“HOJE MEU NARIZ DÓI MAIS, ESTÁ CALEJADO PELA MÁSCARA. MINHAS MÃOS ESTÃO ÁSPERAS, DE TANTO ÁLCOOL E SABÃO. UNHAS BEM CURTAS, SEM ESMALTE, PARA NÃO ESCONDEREM NENHUM VÍRUS. NÓS ESTAMOS FEIOS E CANSADOS. SÓ ESPERO NÃO SAIRMOS DERROTADOS”
23 de março
Saí do hospital e observei, logo ao lado, um bar
onde um grupo de pessoas se aglomerava em torno de uma mesa jogando baralho.
Cartas de papel passavam de mão em mão, justo com a superfície na qual o
coronavírus sobrevive por mais tempo. Se eles soubessem o que se passa por trás
da parede do hospital, estariam escondidos em suas casas. Lá dentro, todos os
doentes, com exceção de um, estavam intubados. Os pacientes necessitavam de
ventilação mecânica, muitos com ambos os pulmões tomados pela infecção, em
estado grave.
Dois deles me chamaram a atenção. Há uma mulher de
apenas 37 anos, contrariando a maioria dos casos de Covid-19. Ela deve ter
filhos pequenos, como eu, que estão sentindo a falta dela, como a minha. Outro
me chama a atenção pela gravidade, pelo semblante sem vida. Ele tem pulmões
gravemente acometidos e quase se despediu de nós hoje. Mas conseguimos reverter,
só não sei por quanto tempo...
Graças a Deus, o número de pacientes ainda não é
grande e conseguimos dar a atenção que eles necessitam. Meu medo é que o número
cresça a ponto de não podermos atender a todos adequadamente.
Permanece entre nós o medo da infecção. Passamos
horas sem ir ao banheiro, sem beber água, com fome. Só nos permitimos fazer
tudo isso uma vez ao dia, para evitar retirar repetidas vezes os equipamentos
de proteção individual. É a hora em que mais comumente a infecção acontece.
Em um momento do plantão, recebi fotos de minha
filha. Meus olhos se encheram de lágrimas. Lágrimas de saudade. Mas não pude
chorar: as lágrimas prejudicariam os óculos e a máscara de proteção. Desliguei
o celular e tentei não pensar. Ao longo do dia, o nariz doeu e ficou machucado,
imprensado pela parte rígida da máscara.
26 de março
Hoje um paciente foi transferido para outro
hospital. Nunca conheci a família e a história dele. Sempre gostei de colher a
trajetória dos meus pacientes. Assim, o diagnóstico e a assistência são mais
eficientes. Mas, quando se trata da Covid-19, com a maioria deles intubada e
sedada, nada conhecemos além de seus pulmões gravemente doentes. Me sinto
“meia” médica, praticando “meia” assistência. É frustrante. Insisto: é tudo
muito diferente. Ao mesmo tempo, penso: “Será que a família desse paciente
soube que ele veio pra cá? E saberá para onde ele vai?”. O isolamento é cruel,
para ambos os lados.
Vi no noticiário que, na Espanha, um médico fez uma
chamada de vídeo para a família do paciente antes de intubá-lo. Quero poder
fazer isso também. Isso é humanizar a medicina. Eu queria ter feito isso
naquele dia! Eu queria!
Hoje meu nariz dói mais, está calejado pela
máscara. Minhas mãos estão ásperas, de tanto álcool e sabão. Unhas bem curtas,
sem esmalte, para não esconderem nenhum vírus. Nós, profissionais da saúde,
estamos feios e cansados. Só espero não sairmos derrotados. A epidemia só está
começando. Mais três pacientes graves chegaram. E a saudade de abraçar a
família só aumenta.
2 de abril
Já esperava por isso, mas preferia estar errada.
Era uma esperança. Em apenas uma semana de pandemia, o cenário piorou muito.
Muito mesmo. Antes, tínhamos vários casos suspeitos, com apenas algumas
confirmações. Agora, quase todos são Covid-19 e uma minoria é apenas suspeita.
Todos graves. Apenas um deles não precisava de ventilação mecânica hoje. Bom
para ele, espero que continue assim, e daí para melhor. Mas triste para nós,
que ouvimos que o pai desse paciente havia morrido dias antes, também vítima da
Covid-19. A mãe dele também está gravemente acometida em outra instituição. E
ele conosco, lutando para respirar. Não tive coragem de perguntar se ele tinha
filhos. A doença está exterminando famílias inteiras.
Logo um coração parou de bater. Foram mais de 20
minutos de ressuscitação. Para quem esquece rapidamente do ocorrido, amanhã
cada músculo nos fará lembrar, através da dor, do esforço de tentar trazer
alguém de volta à vida por tanto tempo. Dói, dói bastante. Mas foi inútil,
infelizmente. Aquele paciente não apresentava mais nenhum reflexo de tronco
cerebral, mostrando-nos que a morte estava rondando por ali. Pouquíssimas horas
depois, o coração dele parou de bater para sempre. E já são três corações que
se foram em apenas 24 horas. Só aqui. Um pequeno pontinho no meio da epidemia
mundial.
A pergunta que não cala em nosso coração é:
“Quantas vezes mais seremos inúteis?”.
As notícias dos óbitos têm de ser dadas por
telefone. Ouvimos choros desesperados. Barulhos de quedas, de quem não suportou
saber. Não podemos nem ao menos expressar nossos olhares de compaixão. Repito,
o isolamento é cruel: para todos os lados, em todos os sentidos. E sabe o que é
pior? É saber que dias piores virão.
A doença evolui muito rápido para os mais graves.
Aquele único paciente que não dependia de ventilação mecânica, em apenas poucas
horas, já não conseguia mais respirar sem ajuda. Os pulmões iriam entrar em
falência em breve. Foi quando pensei: “Não! Dessa vez, não”. Resolvi tentar
mais uma vez a possibilidade de ligarmos para a família antes de intubá-lo. Não
sei se ele vai sobreviver a esse vírus maldito. Tenho de tentar. Ele tem de ter
a oportunidade de se despedir. E nós podemos fazer isso. Agora é inevitável,
temos de perguntar mais sobre a família. Ele tem filhos e esposa.
Conseguimos! Eles se falaram por chamada de vídeo.
Mesmo com os olhos carregados de lágrimas e medo, ele avisou aos parentes: “Vou
ser intubado”. Falou com a família. E conseguiu conversar com eles por um curto
espaço de tempo. Tempo esse que pode aliviar a alma deles, não sei. Nesse
momento, tive mais um pensamento: “Seria melhor que pudéssemos deixá-los
conversando sozinhos”. Nossa presença inibe os sentimentos do paciente. Talvez
ele quisesse dizer algo e não disse por estarmos ali. Vou pensar sobre isso
também.
E assim aconteceu. Ele foi sedado e intubado. Agora
a máquina faz o que o pulmão dele não estava mais conseguindo fazer. Agimos no
tempo certo: os exames mostraram que realmente os pulmões estavam à beira da
falência total.
Não quero acreditar neste momento nas taxas de
mortalidade dos casos graves. Quero acreditar que fizemos algo bom. Que fizemos
aquilo que nosso juramento exige. Mas que também fizemos algo a mais: aquilo
que nosso coração manda. Todos nós nos beneficiamos com aquela atitude. Todos
nós.
E caiu o dentinho de leite da minha filha. Mas,
devido ao meu isolamento, bate a tristeza de não poder dividir esse momento com
ela. Mas darei um jeito de a fada do dente ir visitá-la. Só que ainda havia
mais seis pacientes graves para chegar.
6 de abril
A cada dia de trabalho, o número de pacientes
aumenta e o número de profissionais da saúde diminui. Com as várias baixas de
nossos soldados (que é como temos chamado nossos colegas), os que ainda não
foram abatidos pela doença trabalham ainda mais para compensar a falta dos
outros. A demanda é enorme e a gravidade dos doentes exige muito de nós. Ao
final do dia, as pernas doem absurdamente. Os equipamentos de proteção
individual ferem nossa pele. E, mesmo com todos os esforços, esse maldito vírus
ainda consegue nos vencer.
Hoje a nossa unidade só não está completamente
lotada porque o número de internações se igualou ao número de óbitos. Meu Deus!
Que peso tem essa constatação. Causa revolta liberar várias declarações de
óbito descrevendo a causa da morte: Covid-19, Covid-19, Covid-19... Estamos
perdendo muitas vidas para um inimigo invisível e desconhecido. Antes dessa
pandemia assolar o mundo, um dia emitindo declarações de óbito era exceção.
Agora, se tornou regra. Não fomos treinados para isso. Fomos treinados para
salvar vidas. A impressão é de que o vírus não poupa ninguém. Gente saudável,
doente, idosa e jovem. Ele mata qualquer um. Triste constatação.
Ao sair do hospital, deparei com uma filha aos
gritos. Desesperada, ela implorava por notícias de sua mãe e dizia não ter
nenhuma ideia se havia chance de sobrevivência. Ela tem toda razão. Isso logo
me faz pensar nos que reclamam de estarem isolados com suas famílias, no
aconchego de seu lar. Nada sabem sobre isolamento. Isolamento de verdade...
“SAÍ DO HOSPITAL E OBSERVEI, LOGO AO LADO, UM BAR ONDE UM GRUPO DE PESSOAS SE AGLOMERAVA EM TORNO DE UMA MESA JOGANDO BARALHO. SE ELES SOUBESSEM O QUE SE PASSA POR TRÁS DA PAREDE DO HOSPITAL, ESTARIAM ESCONDIDOS EM SUAS CASAS”
9 de abril
A cada dia que passa saio mais tarde do trabalho,
tentando dar conta de todos os cuidados de que cada paciente precisa. Mas sinto
não ser suficiente. Para muitos, esse vírus é mais cruel e não adoece só os
pulmões, mas também os rins. Máquinas para respirar. Máquinas para substituir
os rins. E isso é só apenas parte do que muitos necessitam: tudo que fazemos
não parece ser o bastante para enfrentar esse vírus.
E os pacientes não param de chegar. Tanto não param
que ocupamos todos os leitos disponíveis no hospital. Todos. Estávamos felizes
pois, pela primeira vez, iríamos completar um dia sem perder ninguém. Mas o
vírus venceu mais uma vez, e, logo após chegar, um paciente se foi. Mais uma
batalha perdida. Ainda não tivemos a alegria de ver um paciente voltando para
casa. Sonho para esse dia chegar.
Enquanto estamos paramentados (a imensa maioria do
tempo), somos todos iguais. Fica até difícil reconhecermos uns aos outros.
Tanto que tivemos de escrever à caneta no capote uns dos outros os nossos
nomes, para que pudéssemos ter uma identidade. Parece que somos mesmo soldados
lutando em uma guerra, todos iguais e uniformizados, lutando contra o tal
coronavírus. Cada um fazendo a sua parte e até mais do que isso. Muito mais.
No único horário do dia em que nos despimos de
nosso uniforme, vemos os rostos de derrota de cada profissional da saúde. É um
misto de exaustão física e psicológica. É muito difícil. Ninguém está preparado
para ver um hospital inteiro acometido pela mesma doença, com pacientes muito
graves e muitos óbitos diariamente. Ninguém está preparado para isso. Dói no
corpo pelo trabalho ininterrupto horas a fio. Dói na alma ver tantas vidas indo
embora.
Internamos hoje um único paciente que não estava
intubado. Um vovozinho fofo e lúcido, que só estava precisando de um pouco de
oxigênio para respirar. Logo pensei: “Que Deus o conserve assim, que isso não
evolua como a maioria aqui. Que Deus olhe por ele!”. Hoje recebi uma foto da
minha filhota fazendo um suco verde. Mal tive tempo para ver, mas foi o
suficiente para o coração apertar e eu chorar de saudade.
Peço a Deus todo dia para ter força física e
psicológica para poder voltar para minha família logo.
13 de abril
Continuamos com os leitos lotados. Perdemos
pacientes todos os dias para o vírus, mas em poucas horas novos pacientes
ocupam os leitos esvaziados para continuarem conosco a sua luta pela vida.
Nunca antes uma instituição inteira foi substituída para se tornar unidade de
uma doença só. Isso demonstra a infectividade brutal desse vírus.
Ao olhar para um lado, vemos uma paciente em
provável morte cerebral, esfregando em nossa cara a vulnerabilidade da vida e
nossa impotência diante da doença. Mas agora, já com algumas semanas de casos
da Covid-19, alguns poucos sobreviventes começam a apresentar melhora e isso
nos enche de esperança. Estamos acostumados a avaliar várias vezes ao dia a
função pulmonar de cada paciente. Tratando-se dessa doença, a regra é decepção
atrás de decepção.
Mas hoje — pela primeira vez após semanas — um
paciente, apenas um paciente, demonstrou um grau de melhora nunca visto antes
em seu exame. Espontaneamente, vibramos, aplaudimos e até batemos na mesa de
tanta alegria. Como nós, profissionais da saúde, somos bobos... Vibramos com
cada pequena conquista do paciente. E vibramos de verdade. Também começamos a diminuir
a sedação do paciente, na tentativa de permitir que ele comece a respirar por
si próprio.
Logo ao lado, o vovozinho da semana passada já
consegue respirar sem ajuda nenhuma, nos dando mais uma alegria. Ele nos
contagiou com a sua conversa por vídeo com a esposa. Eles têm 55 anos de
casados e ela diz estar com saudades do marido, esperando ansiosamente a volta
dele. Que esperança na vida eles nos deram! E assim, com pequenas batalhas
vencidas, nos permitimos ter alguma alegria em meio à guerra.
16 de abril
A exaustão física e psicológica me venceu e dessa
vez não consegui escrever meu diário ao final do meu dia de trabalho. A
gravidade e a complexidade dos pacientes nos consomem física e tecnicamente, e
torna tudo caótico. Há também o fato de que estamos cansados, às vezes com
fome, sede, vontade de ir ao banheiro e usando equipamentos que nos machucam.
Nenhum médico está preparado para isso. Mesmo nos
piores dias de uma UTI, o cenário nunca é tão devastador quanto o que essa
pandemia vem nos apresentando. Tivemos altas de pacientes menos graves. Mas,
desde que tudo começou, ainda não tivemos a alegria de dar alta a nenhum
paciente que tenha necessitado de ventilação mecânica. Eles são os mais graves.
Para esses, nosso empenho continua incansável, dia após dia. Lutamos pela vida
de cada um deles, esperando que vençam o vírus e todas as complicações a ele
relacionadas.
Logo cedo, soube da morte daquele primeiro paciente
que se comunicou com a família por videochamada antes de ser intubado. A
notícia nos arrasou. Ele era saudável, tinha cerca de 40 anos e já havia
perdido o pai para a Covid-19. A mãe estava internada e não sabemos se ela
sobreviveu ou não. A morte dele deixa claro que o coronavírus não poupa
ninguém. Por outro lado, nosso vovozinho teve alta e pôde retornar ao seu
casamento de 55 anos. A luz no fim do túnel.
Seguimos esperando por dias melhores. Hoje fiz um
novo teste de sorologia para a Covid-19. Tive sintomas gripais há cerca de 15
dias, mas o primeiro exame deu negativo. Às vezes, o primeiro exame pode ser um
falso negativo. Faço outro agora, na esperança de avaliar se já fui infectada e
se desenvolvi anticorpos contra a doença.
Ficar longe da minha filha já está causando um
sofrimento desumano para mim e para ela. Faço o exame na esperança de poder
trazê-la para perto de mim novamente.
“DEPAREI COM UMA FILHA AOS GRITOS. ELA IMPLORAVA POR NOTÍCIAS DE SUA MÃE E DIZIA NÃO TER NENHUMA IDEIA SE HAVIA CHANCE DE SOBREVIVÊNCIA. ISSO LOGO ME FAZ PENSAR NOS QUE RECLAMAM DE ESTAREM ISOLADOS COM SUAS FAMÍLIAS, NO ACONCHEGO DE SEU LAR”
20 de abril
A neurologista bem arrumada, de salto alto,
maquiada, cabelos bem arrumados e unhas feitas teve de dar lugar a uma médica
de pijama de hospital, com um coque muito bem preso no cabelo, unhas bem curtas
e sem esmalte, tudo escondido por equipamentos de proteção contra um vírus
desconhecido. Antes apaixonada pela especialidade que escolheu, agora se dedica
a fazer algo que não escolheu, em nome da Medicina.
Eu, assim como a maioria dos meus colegas, tive de
me “reinventar” para cuidar dos doentes com Covid-19. Deve ser por isso que a
frustração é tão grande. Parece que estamos entrando em um jogo para perder.
Até já passou pela minha cabeça a possibilidade de
desistir. Meu pai já conversou sobre isso comigo, e disse que me apoiaria em
qualquer decisão que eu tomasse. Mas esse pensamento logo desaparece. Como vou
desistir no momento em que a Saúde e minha equipe mais precisam de mim? Com
tantos profissionais da saúde afastados e infectados, como abandonar tudo e
colocar o trabalho da equipe em risco? Não tenho coragem.
Hoje, durante o round (tempo em que os
profissionais se reúnem para discutir o caso de cada paciente), era
desesperadora a expressão de tristeza dos meus colegas ao constatarmos que
tínhamos coisas boas para contar sobre apenas um de nossos 12 pacientes. É
muito frustrante lutar horas, dias, semanas e um mês inteiro para perceber que,
além de perder alguns, a maioria dos pacientes não está melhorando. Foi um
momento triste e de reflexão. Saímos diferentes dali. Somos médicos e pessoas
diferentes depois daquilo.
Uma equipe inteira trocando olhares de derrota. É
isso que essa pandemia faz com a gente. Foi a primeira vez que participei de
uma cena dessas em minha carreira. Definitivamente, isso nos mudou para sempre.
Graças a Deus, não presenciamos só tristezas. Esse
único paciente se livrou da ventilação mecânica e está quase curado da
Covid-19. Uma razão para seguir em frente. Vimos olhares de agradecimento e
esperança em seus familiares durante a chamada de vídeo após sua melhora. Isso
nos fortalece! Assim como ele, em outras unidades nossas, outros poucos
pacientes estão melhorando. Eles nos permitem vencer algumas batalhas, mesmo
que sejam a minoria.
Eu também ganhei uma chamada de vídeo. Nela, minha
filha perguntava chorando se eu não me importo mais com ela. Hora em que o
coração de mãe sangra mais uma vez. É isso que a pandemia tem para nós.
24 de abril
Chego em casa cada vez mais tarde e mais cansada.
Há dias em que não consigo escrever meu diário ao final da jornada de trabalho
e tenho de postergar para o dia seguinte. A angústia não passa, mesmo após
horas de descanso. Este diário é um desabafo. Uma forma de terapia.
Quando cheguei ao trabalho dessa vez, já na frente
do hospital vi familiares chorando, desesperados. Pensei: “Perdemos mais uma
vida. O que será que o dia de hoje reserva para nós?”. Mas, apesar das perdas
diárias, hoje tive notícias maravilhosas. Três pacientes muito graves foram
curados e tiveram alta do hospital. Que felicidade! Que força para continuar!
Por mais dias assim, por favor!
Conversei com parte da equipe, durante nosso
horário de almoço, sobre minhas angústias e a quantidade de doentes que temos
perdido. A conversa me ajudou a acreditar que estamos fazendo nosso melhor,
oferecendo todo cuidado e o tratamento que nossos doentes necessitam. Os
pacientes, no entanto, já estão chegando para nós muito, muito graves. Talvez
por isso, junto com a gravidade da infecção, perdemos tanto para o coronavírus.
Isso tranquilizou minha alma, pois tenho sempre
comigo a interrogação: “Estamos fazendo o nosso melhor? O suficiente?”. Com a
ajuda da equipe, acho que sim.
30 de abril
As marcas e a dor da paramentação já não somem mais
no dia seguinte e tenho de aprender a conviver com elas. Ao mesmo tempo, penso:
“Quanto egoísmo! O que é uma pele machucada perto dos pacientes e familiares
dos doentes com Covid-19?”. Olho para o lado, engulo a reclamação e me sinto
grata por estar saudável.
A procura por vagas de UTI aumenta cada vez mais e
a minha preocupação com a saúde da população lá fora também. A saúde pública no
Brasil sempre foi um caos. Alguém tinha dúvidas que a pandemia seria catastrófica
aqui? Eu não. Aqui em nossa instituição, mais médicos, enfermeiros e
fisioterapeutas se unem a nós na tentativa de melhorar os cuidados aos doentes.
Mas sei que lá fora não é assim. Aqui, somos uma instituição pública, mas
privilegiada por uma coordenação consciente, profissionais competentes e
dedicados.
Triste constatar que lá fora muitas vezes não é
assim. E vivo isso a cada dia que recebo os pacientes vindos de outras
instituições. Dá vontade de chorar. Entre eles, o índice de mortalidade é
altíssimo e, por isso, continuamos a perder muitos.
Cada vez mais vemos que esses pacientes graves têm
seu pulmão quase que totalmente atingido e necessitam de ventilação mecânica.
Depois, seus rins necessitam de hemodiálise. Ainda há disfunção do coração, que
precisa de drogas para poder funcionar razoavelmente. O sistema nervoso também
não escapa. Temos visto vários casos de acidente vascular cerebral (AVC)
relacionados à complicações da Covid-19. Tudo em um mesmo paciente.
Maldito vírus. Lá fora, o grupinho de jogo de cartas em frente ao barzinho ao lado do hospital sumiu. Será que a Covid-19 ganhou um nome
e um rosto?
2 de maio
Na véspera do plantão, um paciente recebeu alta com
toda pompa e circunstância que a vitória merece. Ouviu aplausos da equipe,
feliz com aquele momento. Mas seu leito rapidamente foi ocupado por outro
paciente. Pensei: “Vamos salvar esse também! Vamos salvar esse também!”. Era um
caso grave, mas seguíamos nossos cuidados incansáveis. De repente, uma piora
súbita se iniciou. Um quadro que nunca tínhamos visto antes em nossa unidade:
uma embolia pulmonar maciça, com potencial para causar graves complicações,
incluindo uma parada cardíaca. Nem a ventilação mecânica, nem as drogas comuns
salvariam aquele paciente. Tínhamos de agir muito rápido.
Quando olhei em volta, havia mais de dez
profissionais ao redor do leito. Correndo, lutando para salvar aquela vida.
Novamente, percebi orgulhosa a importância de trabalhar naquele lugar. Somos um
time e todos são necessários.
Havia uma intensivista que, com seu ultrassom,
visualizava o coração do paciente com o lado direito parado. Ao lado dela, uma
neurologista, com experiência na única droga que poderia salvá-lo naquele momento:
o trombolítico. Na luta, enfermeiros e técnicos corriam para preparar a
medicação. E, com a ajuda de todos, demos ao doente o cuidado de que ele
precisava.
Como médica, sei que a complicação que ele teve é
de difícil diagnóstico, de difícil tratamento e que o levaria a morte em
minutos. Por isso, sei que aquela vida não seria salva em qualquer instituição,
nem com quaisquer profissionais. Tudo foi possível porque tínhamos uma equipe.
Não sei se a Covid-19 vai deixá-lo viver, mas tenho certeza que lutaremos até o
fim. Ao voltar para casa, soube que a esposa desse paciente também está com a
doença, lutando pela vida em outra instituição. Repito: esse vírus está exterminando
famílias inteiras.
“ERA DESESPERADORA A EXPRESSÃO DE TRISTEZA DOS MEUS COLEGAS AO CONSTATARMOS QUE TÍNHAMOS COISAS BOAS PARA CONTAR SOBRE APENAS UM DE NOSSOS 12 PACIENTES”
4 de maio
Quando eu falei, lá atrás, que sabia que dias
piores viriam, eu realmente sabia. Mas isso não significava que eu estaria
preparada para eles. Voltei para casa com um aperto no peito, com o som do
carro tocando alto, muito alto, na tentativa de não escutar a voz que insistia
em vir do coração. O som era para me poupar da dor e evitar que as lágrimas
caíssem. Pela primeira vez em meus relatos não consigo encontrar palavras para
expressar exatamente o que senti hoje.
Havia quatro profissionais da saúde infectados. Um
deles era médico da nossa instituição e estava em estado gravíssimo. Ele
trabalhou muito mais nas últimas semanas para compensar a falta dos outros.
Percebemos que, por mais que fizéssemos, aquela batalha muito provavelmente
estava perdida. Foi quando, às 16h30, ele nos deixou. E, com ele, levou parte de
nossa coragem e de nossa esperança. Ver um dos nossos ser levado pela Covid-19,
bem debaixo dos nossos olhos, em nossas mãos, desconfigurou a equipe inteira. A
unidade ficou cinza. Dali em diante, nossas falas tinham pausas. Pausas para
respirar fundo e engolir a seco o que aconteceu. Por vezes, as pausas eram
seguidas de palavras de pesar e de sofrimento. Nada descreve o significado de
perder um dos nossos. Mas, como somos profissionais da saúde, não temos direito
a luto. Mesmo calados e arrasados, seguimos cuidando dos que ficaram.
Resolvi abrir o quartinho da minha filha que estava trancado desde o dia em que nos separamos. Quando senti que havia o cheirinho dela lá dentro, chorei. Será que dias ainda piores virão?
Blog do Paixão