Por Elida Oliveira e Luiza Tenente
Sala de aula de escola de Santo Amaro, Zona Sul de
São Paulo. Cada mesa agora possui um divisor de plástico para que os alunos não
fiquem em contato direto uns com os outros. — Foto: Marco Ambrosio/Estadão
Conteúdo
Seis meses após a
suspensão das atividades presenciais, o debate sobre a reabertura das escolas
ganha ainda mais força. Os argumentos sobre o momento certo para a volta às
aulas envolvem tanto questões de saúde (como um possível aumento de casos de
Covid-19 na população em geral) como prejuízos sociais de manter as
crianças afastads das salas de aula por tanto tempo.
Para
epidemiologistas, infectologistas e educadores ouvidos pelo G1, a
discussão é urgente.
“É uma empreitada
grande, complexa, e o Brasil tem costume de simplificar as coisas. A criança
não vai para a escola sozinha e pode morar com pessoas de grupo de risco.
Temos de pensar na estrutura toda e em como vão ficar as famílias mais pobres,
que já foram as mais atingidas pela pandemia”, afirma o epidemiologista Pedro
Hallal, coordenador-geral do maior estudo sobre prevalência do coronavírus na
população, o Epicovid.
“Se é o momento ou
não, vai depender da situação de cada município. Mas a decisão do ‘quando’
não pode substituir a do ‘como’ retomar as aulas”, diz Gabriel Corrêa,
gerente de políticas educacionais do Todos pela Educação. “Mesmo que ainda não
seja seguro reabrir as escolas, o planejamento não deve ser adiado.”
As desigualdades
sociais tornam o debate ainda mais complexo. Quatro a cada dez escolas do
país já não tinham estrutura para lavagem das mãos antes da pandemia,
segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Dados do Censo
Escolar 2018 apontam que 26% das escolas brasileiras não recebem
abastecimento público de água, e quase metade (49%) não têm acesso à rede
pública de esgoto.
Por outro lado,
justamente os alunos das escolas com estrutura precária são os que mais ficam
vulneráveis a problemas sociais durante a suspensão das aulas presenciais -
como fome, trabalho infantil e baixa aprendizagem.
Como evitar o
aumento da desigualdade na educação e garantir o cumprimento dos protocolos
básicos de prevenção contra a doença?
Confira abaixo os
principais pontos da discussão:
Qual
é a hora de reabrir escolas?
Sob o ponto de vista
da saúde, depende de cada região do país e da realidade local, afirma o
infectologista Julio Croda, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“De forma
técnica, são duas condições: quando as curvas de casos e mortes estiverem
descendentes [caindo] e quando tivermos como detectar os surtos nas escolas,
isolando pessoas e fechando salas.”
Os dados mais
recentes do estudo Epicovid, divulgados na segunda (15), mostram que a pandemia
está desacelerando no país.
A proporção de
pessoas com anticorpos para o coronavírus na população diminuiu de 3,8% (com
margem de erro de 3,5 a 4,1%), no final de junho, para 1,4% (com margem de erro
de 1,2 a 1,6%), nos últimos dias de agosto. Isso significa menos infecções
recentes. As curvas estão em queda em 13 estados.
Mas para Catarina de
Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e membro da
Campanha Nacional pela Educação, a hora de reabrir as escolas não é agora.
“Não podemos dar
garantias ao país e aos 56 milhões de estudantes, 2 milhões de profissionais da
educação e todos os seus familiares de que os protocolos de saúde que nossos
sistemas de ensino darão segurança”, afirma. “Na UnB, seria necessário o dobro
do orçamento para voltar às aulas em segurança. Imagina nas escolas”, relata.
Um editorial
publicado na revista científica "Science", no início deste mês,
aponta três condições essenciais para a retomada: só reabrir quando houver
redução sustentada de número de casos da doença, testagem ampla e medidas rigorosas
de prevenção nas escolas.
Mesmo em países que
seguiram esses protocolos, no entanto, foi impossível evitar totalmente as
contaminações nos colégios. Israel
enfrentou problemas.
No Brasil,
Manaus está próxima
de completar 40 dias de reabertura das escolas - a primeira
capital a retomar aulas na rede estadual. Não há registro de alunos que
morreram por causa do coronavírus ou de contaminação entre estudantes desde
então.
O governo amazonense
disse na última quinta que, na população em geral, ocorreu um aumento de
internações por Covid, mas que não
prevê uma segunda onda da doença no estado.
Quais
os riscos de contaminação de crianças, familiares e professores?
Daniel Lahr,
professor da Universidade de São Paulo (USP), explica que, como as crianças
foram as que mais respeitaram a quarentena ao longo da pandemia e menos se
expuseram ao vírus, também são o grupo sobre o qual a
ciência tem menos certezas em relação à doença.
O que se sabe é que
elas tendem a desenvolver quadros menos graves - mas não há dados
conclusivos sobre a capacidade delas de transmitir a Covid-19. E, durante a
pandemia, foi registrada a ocorrência em crianças de uma doença rara, porém
muito séria: a síndrome de
Kawasaki.
“Existem evidências
tanto de que elas têm uma carga viral maior que a dos adultos. Ainda não há
consenso”, diz Lahr. Quanto maior essa “concentração” de vírus no
organismo, mais alta é a possibilidade de contaminar outras pessoas.
Com a reabertura das
escolas, segundo Lahr, “as crianças podem se tornar importantes vetores da
doença”.
“Retomar as aulas
presenciais representa um risco: não sabemos o que vai acontecer. O volume de
pessoas se deslocando pela cidade e convivendo no mesmo espaço vai aumentar
significativamente”, diz. “É um exército de professores, funcionários e
familiares que vai ficar mais exposto.”
Crianças realizam atividade escolar em casa durante
a pandemia de Covid-19 — Foto: Jessica Lewis/Unsplash
Dentre todos os
indivíduos que convivem com as crianças, há idosos, obesos, pessoas com
problemas respiratórios e outros grupos considerados “de risco” para a
Covid-19.
Renato Kfouri,
vice-presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São
Paulo, concorda que é difícil prever o que ocorrerá após a reabertura das
escolas. Mas, na visão dele, a capital paulista, por exemplo, tem
condições de retomar as atividades presenciais.
“Em primeiro lugar,
a curva da epidemia precisa estar em queda, de forma sustentável. Em São Paulo,
estamos no nosso ‘melhor’ momento até agora, no número de casos e mortes. É
possível voltar, mas com alfabetização sanitária e estratégias de cuidado”, diz
Kfouri.
“Sempre haverá o
risco, como em qualquer outra reabertura. Mas dá para minimizá-lo, tendo calma
e critério.”
Uma pesquisa feita
pela prefeitura de São Paulo aponta que 64% dos
alunos da rede pública tinham anticorpos para o coronavírus, ou
seja, entraram em contato com o Sars-CoV-2. O percentual é o mesmo entre
adultos das classes D e E.
Isso indica que as
crianças estão se contaminando na comunidade. “O fato de estarem em casa não
está as protegendo. Os pais saem para a rua e voltam com a doença”, afirma
Julio Croda.
É
certo abrir bares e restaurantes, mas não as escolas?
Não há consenso
sobre esse ponto.
Segundo o
epidemiologista Pedro Hallal, faz sentido abrir shoppings e restaurantes antes
das escolas, porque é mais fácil controlar o acesso e o fluxo de pessoas nesses
estabelecimentos de lazer. “Não tem como dizer que escola não vai gerar
aglomeração. Vai gerar”, afirma.
O infectologista
Croda discorda sobre a ordem de reabertura: “Qual prioridade a gente dá para a
educação no momento em que libera show e não libera escola?”.
“Deveria abrir
escola e, depois, esses setores”, diz Croda. Cenas de aglomeração de jovens sem
máscaras em bares foram alvo de crítica. Em alguns estados, há shows liberados,
com concentração de até 50% do público de antes.
Já Lahr, da
USP, dá um terceiro ponto de vista: sim, parece ter havido uma inversão de
valores ao abrir certos estabelecimentos de lazer. Mas isso não significa que
seja correto abrir escolas no momento atual.
Catarina Santos, da
Campanha Nacional pelo Direito à Educação, também afirma que houve um desvio de
foco na discussão da sociedade durante a pandemia sobre o que seria mais
importante. Deveríamos, segundo ela, ter pensado em como organizar as escolas e
os currículos.
O editorial da
revista "Science" diz: “Quanto menor a taxa de infecção na
comunidade, menos rigorosas precisam ser as outras medidas de prevenção. Se a
sociedade priorizar a supressão da disseminação viral em outros grupos sociais,
[então] as crianças podem ir à escola”.
Quais
os problemas sociais de manter as escolas fechadas?
Florence Bauer,
representante do Unicef no Brasil, afirma que a prioridade das esferas públicas
deve ser garantir a reabertura segura das escolas. Um período tão longo de
fechamento traz prejuízos emocionais a alunos e professores, além de
aumentar o risco de abandono dos estudos.
Segundo o Unicef,
após desastres naturais, como ciclones e terremotos, há redução de até 20% nas
taxas de matrícula na educação básica. Em situações de isolamento social,
aumentam os casos de violência doméstica e de problemas financeiros, associados
à evasão escolar.
Diante do risco, há
três principais formas de evitar que os jovens abandonem a escola, segundo os
especialistas ouvidos pelo G1:
- a busca ativa pelos alunos que não voltaram às aulas,
- o contato frequente com as famílias
- e a articulação de diferentes órgãos públicos (de assistência social, saúde, educação).
Os maiores danos trazidos pelo fechamento das
escolas são sentidos pela população mais vulnerável. “Até os hábitos de
alimentação foram prejudicados. Sem a merenda, crianças ficaram sem comer
ou passaram a consumir mais produtos industrializados. Os impactos vão além dos
prejuízos pedagógicos”, diz Bauer.
"Ter a merenda como principal refeição do dia
não significa que a criança precisa voltar à escola", afirma Catarina
Santos, da Campanha Nacional pela Educação. "O que precisa ter é
distribuição de alimentos. Não foi a pandemia que levou essas crianças a não
ter o que comer, já não tinham antes. Não só em locais remotos, há crianças em
comunidades no Lago Paranoá [em Brasília, capital federal] que passam fome
todos os dias", afirma.
Corrêa, do Todos pela Educação, afirma que “já
tínhamos, no Brasil, uma situação de oportunidades muito melhores para alunos
de maior nível socioeconômico. A pandemia escancarou isso.”
“O setor público precisa olhar para os mais
prejudicados, que estão sujeitos a estresse tóxico em casa, violência sexual,
casas sem condições de estudo. Todas as experiências mostram que os efeitos de
um afastamento da escola são duradouros. As crianças estão perdendo um tempo
precioso para a aprendizagem, principalmente as que estariam sendo
alfabetizadas.”
Segundo o especialista, não será possível esperar
até uma vacina da Covid-19 para pensar em reabrir as escolas. Ele reforça a
importância de ouvir as autoridades de saúde para detectar o momento de menor
risco à população.
Enquanto a hora não chega, é preciso planejar. “Não
pode ser uma questão política para o ano que vem. A premissa básica é garantir
a segurança de todos e planejar uma retomada que mitigue os efeitos da
pandemia”, diz.
A saúde mental dos professores também deve ser alvo
de atenção. Eles enfrentam sobrecarga de trabalho e estresse. Trabalham em mais
de uma escola, têm de se deslocar pela cidade e se adaptar ao novo sistema
híbrido de ensino (que mistura o ensino remoto com o presencial).
Em Manaus, professores já relatam
sobrecarga de trabalho.
Quais
os protocolos necessários? Eles são aplicáveis para crianças?
A Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) publicou, no início de setembro, um documento com contribuições
de infectologistas para uma reabertura segura das escolas.
Veja, em tópicos, os
principais protocolos:
- fornecimento adequado de água e sabão para higiene das mãos e álcool em gel 70%; água sanitária para limpeza;
- distanciamento de 1,5 metro a 2 metros entre estudantes, professores e funcionários;
- garantia de ventilação natural, sem uso de ar-condicionado;
- se possível, preferência por atividades ao ar livre;
- uso correto de máscara por todos os maiores de 2 anos de idade;
- controle do transporte público e escolar, garantindo o distanciamento;
- afastamento de alunos e funcionários que pertençam aos grupos de risco (pessoas com cardiopatias, doenças pulmonares crônicas ou imunossupressoras; gestantes e maiores de 60 anos);
- diálogo com secretarias de educação e com a comunidade escolar;
- adaptação do conteúdo a ser ensinado;
- adoção de horários diferentes de entrada, saída e refeições de alunos;
- preferência por reuniões remotas de professores;
- rodízio de turmas;
- redução do número de alunos por sala;
- orientações claras sobre os protocolos de higiene;
- interdição de bebedouros;
- acolhimento emocional a todos;
- sistemas de rastreamento de doentes (ver mais abaixo).
Alunos da rede municipal de ensino de Barcelos, no
interior do Amazonas, voltaram às escolas. — Foto: Divulgação
Segundo
especialistas, não é fácil garantir o cumprimento de tais protocolos. “É
impossível que crianças pequenas mantenham o distanciamento e não compartilhem
brinquedos ou objetos em geral”, diz Kfouri.
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veja cuidados com o uso de máscaras por crianças
A estrutura das
escolas brasileiras também dificulta a adoção dos parâmetros de segurança. “As
aulas ao ar livre seriam ideais, como em quadras. Mas é a realidade para poucas
escolas”, complementa o especialista.
De fato, na rede
municipal, apenas 31,6% das escolas brasileiras têm parquinho e 27%, área
verde, segundo o Censo Escolar 2018.
Diante de salas de
aula lotadas, como manter uma distância segura entre os alunos? Sem água ou esgoto
encanado, como reforçar a lavagem de mãos? Com professores dando aula em mais
de um colégio, para complementar a renda, como instituir reforços escolares no
contraturno?
Lahr, da USP, ainda
acrescenta que, mesmo com todas as regras listadas acima pela Fiocruz, não
existiria uma garantia completa de prevenção. “Temos só uma redução da
probabilidade de contágio. Mas, em um espaço confinado e com muitas horas de
contato, o risco vai existir.”
Nesta última sexta,
o Ministério da Saúde lançou
um guia que compila dicas básicas de higiene e aponta que a
responsabilidade na condução do processo de reabertura é das autoridades
locais.
Quando
fazer testes? E se alguém se contaminar?
Segundo Lahr, a estratégia
de testagem não é simples - deve ser feita em termos estatísticos. “Não adianta
testar todo mundo antes de reabrir e só. É um gasto de dinheiro à toa, porque a
pessoa pode se contaminar no minuto depois de fazer o exame. O que deve ser
feito é o acompanhamento contínuo por amostragem, para detectar um possível
aumento de infecções”, diz.
A Fiocruz recomenda
que todas as pessoas com sintomas sejam afastadas imediatamente da escola e
testadas. O retorno só deve ocorrer 10 dias após o aparecimento dos
primeiros sinais da doença (ou 20, no caso de casos graves) e 24 horas sem
febre e sem uso de medicamentos.
Quem entrou em
contato com doentes deve ser afastado e permanecer atento - se tiver sintomas,
precisa fazer o teste RT-PCR. Caso não manifeste nada, pode retornar à escola
14 dias depois do último encontro com o contaminado.
Blog do Paixão