Carlos José Marques
Foto: Reprodução
Consolidou-se o descalabro. Mais cedo ou mais tarde aconteceria.
Levado ao pé da letra, o penduricalho na legislação anticorrupção, aprovada
recentemente, acabou por provocar uma inominável injustiça e, em consequência,
revolta social. O movimento de ataque à Suprema Corte, por conta do ocorrido, é
sem precedentes. Ninguém se conforma. E com razão. Sentimentos de perplexidade
e indignação tomaram a maioria. O código contrabandeado para dentro do pacote
anticrime que abriu a cela do narcotraficante André do Rap, chefão do PCC, a
maior facção organizada de drogas no País, é de uma desfaçatez e
operacionalidade inconcebíveis.
Para um sistema penal e legal caótico como o brasileiro, anotar
a obrigação de se revisar prisões preventivas a cada 90 dias equivale a
multiplicar o problema das ações por mil. Com processos abarrotados de recursos
de habeas corpus, o Judiciário simplesmente travaria diante da missão hercúlea,
caso seguida à risca. Pois o ministro Marco Aurélio Mello achou por bem se
apegar a literalidade do texto, sem olhar a “capa” do processo (como disse), ou
mesmo o histórico do criminoso e a sua capacidade de delinquir, para colocar
nas ruas um marginal com duas condenações em segunda instância, que havia ficado
foragido por seis anos, responsável por operações que, de uma só sentada, teria
enviado mais de quatro toneladas de cocaína à Europa.
Marco Aurélio fez isso, basicamente, por que havia vencido o
prazo de 90 dias para a renovação da preventiva. Burocracia pura. Ou seja, por
mero decurso de tempo, uma figura do calibre delituoso de Andre do Rap ganhou a
oportunidade de voltar a agir serelepe na vida da bandidagem em alta voltagem.
O poder togado falhou, fragorosamente, na opção voluntariosa do ministro Mello.
Registre-se que esse era um caso que cabia a sua colega de Corte Rosa Weber, e
não a ele. Aponte-se, também, como alegam inúmeros juristas, que um condenado
em segunda instância não possui mais o benefício da dúvida, sujeito a
julgamentos que o livrem do xilindró. Mas o magistrado Marco Aurélio ignorou
detalhes processuais e foi adiante na decisão.
Em qualquer lugar do planeta, alguém com tamanha folha corrida,
que exibia quando preso, na mansão onde foi encontrado, dois helicópteros,
iate, lancha, carros de luxo, dignos de um *capo di tutti capi, conquistados à
base de sangue, contrabando de drogas e toda sorte de ilegalidades, é tido como
mega marginal, sendo trancafiado em cadeias de segurança máxima, sem chance de
perdão ou atenuante. Por aqui, “do Rap” conseguiu sair sereno e candidamente
pela porta da frente em uma cena que retrata à perfeição o desmanche do
arcabouço legal anticrime no País. É de um surrealismo jurídico sem tamanho.
Como não dimensionar as consequências de tal ato, que mistura
barbeiragem técnica, pendor midiático e imprudência de uma autoridade que,
monocraticamente, tal qual um monarca, comete tamanha insensatez? Como
exatamente alguém acha razoável adotar um veredicto assim, em casos como esse?
Tudo começa lá atrás. Na seara política, que buscava brechas para interromper
as longevas prisões da Lava Jato, verifica-se o pecado original. Parlamentares
do Centrão maquinaram a artimanha, dominaram a votação e, com o beneplácito e
endosso do mandatário Bolsonaro, levaram adiante o benefício matreiro que,
evidentemente, abre os portões da impunidade principalmente para os vendilhões
da Nação.
Podia não ter sido assim. O então ministro da Justiça Sergio
Moro, que conduziu as negociações do projeto da Lei Anticrime, era contra.
Alertou o presidente de forma veemente para o risco de soltura em massa e
automática, caso o dispositivo vingasse. Foi ignorado. O pacote, desfigurado.
As mexidas oportunistas na proposta original deram a senha pró bandidagem.
Mesmo a permissão para a prisão de condenados em segunda instância ficou
escanteada. A cleptocracia venceu. No rastro, um mutirão de soltura teve
início. Andre do Rap não é, lamentavelmente, o único exemplo.
O ministro Marco Aurélio — sempre ele! —, que tempos atrás foi
responsável também pela liberação do banqueiro Salvatore Cacciola (autor de um
golpe financeiro milionário e que se escafedeu após a benevolência do
magistrado), já soltou outros 79 criminosos pelo mesmo critério. Da
experiência, uma lição implacável: enquanto a Justiça for considerada uma
espécie de condomínio fechado, sujeita às interpretações subjetivas e distintas
dos luminares da ciência legal, e não um patrimônio indiscutível, claro e
objetivo erigido pela própria sociedade e com o seu endosso, não haverá, no
Brasil, Justiça alguma. Esse casulo majoritariamente aristocrático, de
apreciações e análises diametralmente opostas de um mesmo artigo, coloca em
caos o sistema.
Da mesma forma, as tais deliberações monocráticas, em última
instância, com hierarquias pronunciadas dignas de soberanos, são — como
seguidamente demonstrado — discutíveis, por carregar impulsos quase
impenetráveis e escolhas até passionais dos honoráveis juízes. Senão, vejamos:
como explicar que, ato contínuo à deliberação de Marco Aurélio, o presidente do
STF, Luiz Fux, tenha considerado adequado derrubar a tal liminar e, não
satisfeito, em plenário da Corte, a mesma turma, majoritariamente, entendeu que
a decisão do colega foi errada? Ou, para usar um termo mais harmonioso,
inadequada? A barafunda no ambiente Judiciário está formada.
É assombroso que uma filigrana, meramente de ordem metodológica,
que trata de procedimentos, aliás, sem propósito, seja capaz de tamanho
estrago. Em conjunto para o desastre e dentro de um conceito garantista do
texto, a retórica do ministro Marco Aurélio soa, por assim dizer, bisonha.
Dispõe da virulência e da solidez dignas dos monumentos de barro. Trilhando
ajaezadas metonímias e saltando com a devida destreza sobre os obstáculos do
vernáculo, o magistrado ainda demonstra acreditar, piamente, que vem fazendo
justiça.
Marco Aurélio é o verbo em pessoa, ainda que suas palavras
circunstancialmente possam soar flácidas. Ele se presta ao papel de homem da
lei rigoroso, com a toga cerimonial, mas sua eloquência parece promover, ao
longo de sentenças de ontem e de hoje, sem constrangimento algum, o atendimento
a demandas de poucos, em um sarau de privilegiados, no avarandado dos
poderosos, contra o sentimento de correção do povo subalterno. Para os de fora,
não há como afastar a sensação de um sistema legal de castas.
Já o eminente ministro Mello, talvez movido pelo senso de
“noblesse oblige”, pressuponha ter uma imutável, quase instintiva,
superioridade de discernimento. O problema é que o novelo do escabroso enredo
não se esgota no veredicto em si. Foi levantada a participação de um
ex-assessor do magistrado, que trabalharia no processo, insinuando suspeitas de
favorecimento, que o ministro reputa como injúrias. Não seria o caso — mera
pergunta — de se declarar impedido a julgar, pela proximidade com o advogado do
réu? De tudo resta a crua e triste realidade, fruto da confusão armada: Andre
do Rap já está foragido. Sumiu do radar, debandou.
Dizem, para o Paraguai ou vizinhanças e, claro, não vai atender
a uma convocação de volta. Nem todo o aparato policialesco, inclusão na lista
da Interpol, mobilização de agentes federais e estaduais serão capazes de
reabilitar o dano e a consequência. Todo trabalho feito lá atrás foi por água
abaixo. Há, não é de hoje, uma distância abissal entre a atuação dos
investigadores e dos togados no balé da Justiça. Um grupo prende, o outro, via
de regra, manda soltar. Sempre sob o argumento de brechas na lei.
De que adianta tamanho arcabouço regendo um sistema que favorece
os maiores infratores? Acomodações que promovem libertação após um sexto da
pena cumprida demonstram que muito ainda precisa ser mudado. Saem de
esquizofrenias processuais como essa o fato de um ladrão de galinha poder ficar
anos no sistema carcerário enquanto chefões da droga são lançados de volta às
ruas em meses. Parece certo? Evidente que não. De uma canetada só, para
desencanto, desassombro e desespero dos cidadãos de bem, que pagam seus
impostos, um marginal de alta periculosidade voltou a ameaçar a sociedade. É
essa a Justiça que queremos?
Blog do Paixão