Dados do programa MapBiomas indicam redução na superfície de água em todos os biomas, incluindo a bacia do São Francisco. No litoral, ameaça vem dos oceanos.
Por Artur Ferraz
Barragem de Furnas, em Minas Gerais, com baixo volume de água - Foto: Douglas Magno/AFP
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stá nas manchetes, capas e chamadas dos
noticiários há algumas semanas. A seca grave que atinge o Centro-Sul do Brasil,
onde ficam os reservatórios das hidrelétricas responsáveis por 70% da geração
nacional de energia, como Furnas (MG), faz o País enfrentar a pior crise
energética dos últimos 20 anos.
Como um fantasma que assombra quem já
está abalado pelo contexto caótico de pandemia, inflação e desemprego, o medo
do “apagão” traz de volta à memória o racionamento de 2001, quando o Governo
Federal realizou uma série de blecautes para evitar o colapso da rede de
abastecimento. Desta vez, ainda não há previsão de cortes, mas a conta de luz
ganhou uma tarifa nova, de “Escassez Hídrica”, subindo para além da bandeira
vermelha.
Para o futuro, a perspectiva é que, pela forma
como o meio ambiente tem sido tratado, os ciclos de seca se tornem mais
frequentes e graves, impactando a vida das pessoas nos aspectos mais básicos do
dia a dia.
Velha conhecida de quem mora no
Semiárido nordestino, a falta d’água se intensifica nos períodos de seca no
Cerrado, o maior bioma brasileiro depois da Amazônia, que ocupa uma área de 2
milhões de m² do sul do Maranhão ao interior de São Paulo, equivalente a 25% do
território nacional. E é um reflexo da ação humana sobre a natureza.
Menos água
Os dados são do Projeto de Mapeamento Anual do Uso
e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), rede colaborativa de pesquisadores
criada em 2015, que utiliza imagens de satélites, a partir da plataforma Google
Earth Engine, para uma análise das transformações na geografia do País desde
1985.
De acordo com o programa, que, no dia 23
de agosto, lançou uma plataforma dedicada aos recursos hídricos, o território
nacional perdeu 15,7% de superfície aquática nos últimos 30 anos, caindo de
19.719.050 em 1991 para 16.631.572 hectares de área coberta por água em 2020,
sem incluir lençóis freáticos e outras camadas subterrâneas (veja no
infográfico abaixo).
A redução foi observada nos seis biomas, incluindo
as regiões hidrográficas do São Francisco, que abrange o Sertão pernambucano, e
do Atlântico Nordeste Oriental, onde fica a Região Metropolitana do Recife
(RMR), a Zona da Mata e grande parte do Agreste.
A primeira, localizada na Caatinga, encolheu 12,3%
de 2004 até o ano passado, enquanto a segunda, mais concentrada na Mata
Atlântica, apresentou uma diminuição de 39% no mesmo período. Em todo o Estado,
que teve um pico de 139.458 hectares 17 anos atrás, foram 106.767 hectares em
2020, 23% a menos.
Ciclos e interferências
As estatísticas indicam uma queda na disponibilidade de água, que compromete o nível dos reservatórios e, consequentemente, a geração de energia elétrica.
“Estamos muito próximos do esgotamento [dos recursos hídricos]”, vaticina o coordenador do MapBiomas Caatinga e professor do Programa de Modelagem em Ciências da Terra da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Washington Franca Rocha.
Embora variações façam parte do ciclo hidrológico, o pesquisador considera que mudanças climáticas globais e intervenções humanas contribuem para a escassez. “Apesar de não podermos confrontar ainda com períodos de observação mais longos, estamos levantando a relação disso com as ameaças ambientais. O avanço do desmatamento é uma delas”, comenta.
Assim como o Pantanal e a Amazônia, a Caatinga sofre com a devastação, que, segundo Franca Rocha, também cresceu em Pernambuco, especialmente nas áreas próximas às divisas com o Ceará e a Paraíba.
Alguns sinais já são notados no meio ambiente, ainda que de maneira sutil. No interior do País, por exemplo, o pesquisador do MapBiomas cita estudos que mostram uma mudança no comportamento de espécies, como a de um tipo de beija-flor comum na Caatinga que tem sido encontrada na direção do Planalto Central.
“O que se observa é que as bordas do Cerrado estão ficando mais ‘áridas’, porque essas aves não iriam para outras áreas se as condições ambientais não fossem favoráveis”, comenta.
Rio São Francisco perdeu 10% de superfície aquática em 15 anos, segundo o MapBiomas (Foto: Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
Baixa de chuva
O alerta maior, porém, vem da Floresta Amazônica, que, apenas em julho, teve
2.095 km² de mata destruída, extensão superior à área de toda a cidade de São
Paulo, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Considerando os últimos 12 meses, é o pior índice acumulado de desmatamento
desde 2011. E isso está diretamente associado à queda na frequência de chuvas
na região central do País, que, historicamente, sempre passa por um período
mais seco entre julho e outubro.
“A evapotransposição da Amazônia fornece para a atmosfera um excesso de
umidade, que é transportado para o Sudeste e o Sul do Brasil. E é justamente
esse excesso de umidade que faz chover”, explica o professor de Oceanografia
Moacyr Araújo, vice-reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e
coordenador da Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais
(Rede Clima).
“Uma árvore em pé na Amazônia vale muito mais do que qualquer cultura voltada
para a exportação”.
E não é só no Cerrado que cai menos água das nuvens, detalha o especialista. Na
região do São Francisco, houve uma queda de 20% na média de precipitações em
três décadas. Já nas bacias dos rios Paraná e Paraguai, foram menos 30% e 40%,
respectivamente.
Vice-reitor da UFPE, Moacyr Araújo (Foto: Lidiane Mota/Folha de Pernambuco)
Impactos nos extremos
As modificações na paisagem provocadas pela
escassez dos recursos biológicos refletem ainda as mudanças climáticas, que
afetam a dinâmica dos fenômenos da natureza. Nesta semana, a Organização
Meteorológica Mundial das Nações Unidas divulgou que, em 50 anos, o número de
desastres naturais aumentou cinco vezes em comparação com períodos anteriores.
Em Pernambuco, o prognóstico também é de
acirramento dos efeitos no clima, com distribuição irregular das chuvas, cada
vez mais concentradas na faixa litorânea e na Zona da Mata, e agravamento da
seca no Sertão, onde há áreas, como em Cabrobó, que já passam por um processo
de desertificação.
“Temos períodos mais chuvosos em algumas regiões,
aumentando o risco de inundações, e, em outras, escassez. As previsões climáticas
são de muita incerteza, mas a alteração pluviométrica é um fato. É um
agravamento dos extremos”, define o professor de Recursos Hídricos Abelardo
Montenegro, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
No futuro, será cada vez mais difícil a equação de
conciliar a baixa oferta de recursos naturais com o consumo das cidades e da
produção agrícola. Para o professor, é necessária uma coordenação nacional na
gestão do uso da água.
“É preciso uma regulação conduzida pela Agência
Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA)”, diz. “A visão deve ser integrada
e as agências ambientais precisam ser valorizadas, porque o rebatimento
econômico é uma conta que não vai fechar”. Para atenuar o problema, a solução,
na visão do especialista, passa por adoção de medidas como o reúso de água
tratada do esgoto para irrigação.
Desmatamento crescente na Amazônia agrava seca no Cerrado (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)
Ameaça do mar
Outro risco vem dos oceanos, que têm se expandido com o aumento da temperatura
e o derretimento das geleiras no Ártico, na Groenlândia e na Antártida. Uma
ameaça que atinge, em especial, o Litoral pernambucano, incluindo a Capital.
A plataforma Sea Level Projection Tool (Ferramenta de Projeção do Nível do Mar,
em inglês), lançada pela Nasa no mês passado com base nos dados do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), das Nações Unidas, prevê
que, no Recife, onde hoje o nível do mar avança 0,5 metro em relação à costa,
esse avanço cresça gradativamente nas próximas décadas, chegando a 1,22 metro
no ano de 2150.
Parece distante, mas basta uma caminhada em praias como Boa Viagem para notar
os trechos onde as ondas batem com força nas pedras, dificultando a
passagem.
“O aumento do nível do mar está muito mais acelerado do que nós imaginávamos”,
alerta o vice-reitor da UFPE, Moacyr Araújo. “E toda a água do planeta está
sendo empurrada para a borda oeste do oceano, onde fica a costa brasileira. E o
Recife é um ponto sensível. A cidade está localizada em um delta, com uma
altitude muito baixa, de, em média, apenas 4 metros acima do nível do mar”.
Engorda de praias, como a de Jaboatão, ajuda a reduzir efeitos do avanço do mar (Foto: André Nery/Folha de Pernambuco)
Uma das áreas mais ameaçadas, segundo o
pesquisador, é o Centro histórico, no encontro do rio com o mar. No País, os
locais críticos, além da Capital pernambucana, são a costa de Santa Catarina,
no Sul, e as cidades de Santos (SP) e Rio de Janeiro, no Sudeste.
Para lidar com esse futuro, o professor ressalta a necessidade de se ter um
monitoramento constante e detalhado desse avanço em toda a costa do Estado e um
planejamento por parte dos municípios. Uma solução que pode ser tomada em
algumas praias são as engordas nas faixas de areia, como a que foi realizada há
oito anos em Jaboatão dos Guararapes.
Políticas públicas
No âmbito local, o superintendente de Conservação da Biodiversidade da
Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Semas), Maurício Guerra, diz que a pasta
executa um programa de reflorestamento com o objetivo de reduzir os impactos
ambientais produzidos pela ação humana. A meta é replantar 3,5 milhões de
árvores em três anos nas nascentes dos rios e em áreas de preservação.
“Reativamos os recursos do Fundo Estadual do Meio Ambiente e estamos direcionando
para as ações de reflorestamento. Na primeira ação, estamos com a perspectiva
de seis projetos, que estão em fase de elaboração dos planos de trabalho. A
outra é um edital, que deverá ser publicado nos próximos dias e visa dotar os
municípios de capacidade de produção de mudas, com apoio a viveiros já
existentes ou à criação de novos”, conta.
Órgão que faz o monitoramento da seca e das questões hídricas no Estado, a
Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac) disse, em resposta por e-mail, à
reportagem que o São Francisco é um rio federal e que é a Agência Nacional de
Águas (ANA) a responsável pelo acompanhamento da superfície aquática na região
hidrográfica.
Sobre a estiagem na Caatinga e as incertezas em relação à previsibilidade do
clima, a instituição afirmou que monitora o Semiárido de maneira mensal e
contínua em um trabalho que “vem se expandindo além do Nordeste do Brasil”.
“Há alguns estudos sobre a tendência do aumento das temperaturas máximas, como
também há estudos sobre o aumento da ocorrência das precipitações acima de 50
mm em Pernambuco. Esses estudos são evidências do aumento da ocorrência de
eventos extremos de chuva, principalmente”, confirma o texto. Com relação a
medidas contra o desperdício, a Apac informou que, “periodicamente, são
realizadas campanhas e ações de conscientização sobre o uso da água”.
A reportagem procurou ainda o Ministério do Meio Ambiente e a ANA, mas, até o fechamento desta edição, não obteve resposta.
Blog do Paixão