Por Adriana de Paula / Iconografia da História
A |
presentada de forma magistral em muitas
páginas de nossa literatura, a seca no Nordeste é uma realidade que assola
milhares de nordestinos todos os anos. Em alguns momentos, ela foi tão intensa
que deixou marcas profundas em nossa história. É o caso da seca de 1932, no
Ceará, momento em que vimos nascer campos de concentração em cidades cearenses
como uma forma de manter os flagelados afastados da capital.
Diante da miséria provocada
pela seca, todos os dias, homens, mulheres e crianças se deslocavam em direção
a Fortaleza na esperança de sobreviver. Com as estradas tomadas de retirantes
maltrapilhos, fracos, sujos e famintos, o poder público decide fazer algo para
conter essa gente que espalhava a miséria pela capital. Assim, foram criadas
frentes de trabalho, ações de emigração forçada para outros estados e, por fim,
os campos de concentração, locais onde essas pessoas eram abrigadas e vigiadas
para que não chegassem até Fortaleza.
Em 1932, foram construídos
sete campos de concentração no Ceará: Ipu, Fortaleza, Quixeramobim, Craiús,
Crato e Senador Pompeu. De acordo com os registros oficiais, 73,9 mil pessoas
passaram por esses lugares e ali receberam a promessa de comida e trabalho.
Eles foram extintos no ano seguinte, momento em que a seca deu uma trégua.
Construídos em locais
próximos de ferrovias, esses campos tinham o objetivo de conter as imensas
levas de miseráveis que migravam em direção à capital. Sem dinheiro, sem
comida, carregando seus filhos e os poucos pertences de que dispunham, esses
homens e mulheres andavam por longos caminhos até encontrarem uma estação de
trem que os pudesse levar em busca de alguma condição de sobrevivência.
Enquanto essas massas de
excluídos caminhavam, os jornais davam notícia de que retirantes haviam matado
o gado raquítico que ainda podia ser encontrado em algum pasto para conter a
fome que os dizimava. Manchetes de jornais falavam sobre os trens lotados de
miseráveis que se dirigiam todos os dias para Fortaleza. Diante desses fatos,
no final de abril de 1932, teve início a criação de Campos de Concentração para
conterem os flagelados. Além disso, o governo começou a proibir a distribuição
das passagens de trens para Fortaleza.
Levantados nas proximidades
de estações ferroviárias, os campos visavam impedir as tensões que aconteciam
nas estações de trem e conter a migração para a capital através das ferrovias.
Esses locais, entretanto, serviam apenas para evitar a circulação dos
flagelados pelas ruas, pois a miséria seguia firme ali. As doenças se
proliferavam e as mortes iam se tornando cada vez mais inevitáveis.
Os Campos de Concentração
garantiam ao Estado o controle dos miseráveis, impedindo que eles pedissem
esmolas e exibissem escancaradamente a miséria que os assolava. Eles eram uma
medida higienista que reservava aos famintos lugares determinados, proibindo-os
de circularem livremente e tornarem ainda mais visível a miséria que os tinha
levado para aqueles lugares.
Quando se deslocavam para a
capital, esses retirantes tinham o objetivo de conseguir um emprego, pedir
esmolas era algo que julgavam humilhante. A fome, porém, não espera, conseguir
um posto de trabalho era cada vez mais difícil, então, a esmola e a busca por
ações de caridade ou auxílio do governo iam se tornando o único caminho para
sobreviver.
Diante dessa situação, o
argumento oficial para defender a construção desses campos era o de que os
agrupamentos permitiam ações de assistência mais efetivas, já que os retirantes
poderiam ser monitorados pelo governo e, assim, melhor amparados.
Conforme Rios (2014), o
número de retirantes nesses locais aumentava a cada dia. Colocados em uma
espécie de prisão, os flagelados só podiam sair de lá quando eram convocados
para trabalhos de “melhoramento urbano” ou quando eram transferidos para outro
campo.
Chamados pelos retirantes de
“Currais do Governo”, esses campos eram organizados de modo a promover uma
intensa animalização dos miseráveis que ali viviam, como se realmente fossem
bois esperando o abate. Constantemente vigiados, proibidos de se deslocarem
pela cidade, punidos pela sua pobreza, morrendo de fome “um pouco por dia”,
homens, mulheres e crianças enfrentavam a falta de comida e de infraestrutura e
a proliferação de doenças que eram ainda mais arrasadoras em organismos
debilitados pela fome.
Em sua obra “O quinze”,
Rachel de Queiroz descreve um campo de concentração e mostra o mal-estar da
personagem Conceição ao passar no meio daquele “atravancamento de gente imunda,
de latas velhas e trapos sujos”. A obra narra a seca de 1915, momento em que o
primeiro campo desse tipo foi construído no bairro Alagadiço, em Fortaleza.
Mesmo isolados do resto da população, os flagelados causavam incômodo, pois
eram a explicitação diária da desigualdade que consome o país.
Vivendo precariamente,
enfrentando a escassez diária, os retirantes recebiam farinha, rapadura, sal e
café torrado no sangue de boi. Vestiam-se com o tecido dos sacos de farinha,
tinham os cabelos raspados e quase nenhum acesso a condições de higiene. Sem
direito a uma vida digna, muitos morriam, de fome, sede e doenças. Jogados à
margem da sociedade, tinham seus corpos enterrados em cemitérios construídos no
campo mesmo, como se nem mesmo depois de mortos pudessem se juntar ao resto da
cidade.
Com o fim da seca, esses
locais foram desativados e a existência deles foi sendo esquecida. Deles,
restam apenas as ruínas do campo de Senador Pompeu, local que foi tombado em
2019. Apagados da história, os campos de concentração do Ceará refletem uma
prática comum no Brasil: encurralar aqueles que vivem em situação de vulnerabilidade,
tirá-los da vista, como se, ao fazer isso, a miséria pudesse de tornar
invisível.
Referências:
NEVES, Frederico de Castro.
Curral dos bárbaros: os campos de concentração no Ceará (1915 e 1932). Revista
Brasileira de história, São Paulo, v. 15, n. 29, 1995.
CÂMARA, Yzy Maria Rabelo;
CÂMARA, Yls Rabelo. Campos de concentração no Ceará: uma realidade retratada
por Rachel de Queiroz em O Quinze (1930). Revista Entrelaces, Fortaleza, ano 5,
n. 6, p. 171-182, jul./dez. 2015.
RIOS, Kênia
Sousa. Isolamento e poder: Fortaleza e os campos de concentração na seca de
1932 / Kênia Sousa Rios. – Fortaleza: Imprensa Universitária, 2014. http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/10380/1/2014_liv_ksrios.pdf
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/08/politica/1546980554_464677.html
Nosso próximo tema do Túnel do Tempo segue mostrando assunto relacionado aos campos de concentração do Ceará
Se quiser saber mais sobre fatos históricos, clique no link acima
Blog do Paixão