Turistas e peregrinos, muitos
deles movidos pela fé, vêm seguir os passos de Cristo, tocar as águas do rio, e
se conectar aos acontecimentos bíblicos.
Por Mariam Fam, Associated Press
Uma vaca atravessa o Rio Jordão, perto do Kibbutz Karkom, no norte de Israel, sábado, 30 de julho de 2022 — Foto: Oded Balilty/AP
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risten Burckhartt estava embevecida. Ela precisava
de tempo para refletir, para deixar assentar a ideia de que havia acabado de
mergulhar os pés nas águas onde Jesus teria sido batizado, no Rio Jordão.
”É muito profundo”, disse a visitante de 53 anos,
do estado americano de Indiana. “Eu nunca havia andado por onde Jesus andou,
para começo de conversa.”
Aqui, turistas e peregrinos, muitos deles movidos
pela fé, vêm seguir os passos de Cristo, tocar as águas do rio, e se conectar
aos acontecimentos bíblicos.
Simbólica e espiritualmente, o rio tem um poderoso
significado para muitas pessoas. Fisicamente, porém, o Baixo Rio Jordão é
atualmente muito mais minguado do que poderoso.
Peregrinos cristãos entram nas águas do Rio Jordão durante uma cerimônia de batismo que faz parte da Festa da Epifania Ortodoxa, no local de batismo Qasr al-Yahud, próximo à cidade de Jericó, na Cisjordânia — Foto: Oded Balilty/AP
Quando chega ao local do batismo, suas águas cada
vez mais escassas parecem lentas, em um tom opaco de verde amarronzado.
Seu declínio está interligado a décadas de conflito
árabe-israelense e à disputa pela preciosa água em um vale onde tantas coisas
são contestadas.
Um trecho do rio, por exemplo, era uma fronteira
hostil entre Israel e
Jordânia quando estavam em guerra. O curso d’água também separa a Jordânia, a
leste, da Cisjordânia, de ocupação israelense, tomada por Israel durante a
guerra de 1967 e pleiteada pelos palestinos para constituição de um Estado.
“Ele (o rio) é definitivamente uma vítima do
conflito. É uma vítima das pessoas, porque é o que fizemos ao rio como pessoas,
basicamente, e agora além disso é uma vítima das mudanças climáticas”, explica
Yana Abu Taleb, diretora na Jordânia da organização EcoPeace Oriente Médio, que
reúne ambientalistas jordanianos, palestinos e israelenses e pressiona pela
colaboração regional para salvar o rio. “Então, ele é uma vítima em todos os
sentidos.”
O cristão sírio Zuhair Al-Sahawi mergulha uma mão na água do local de batismo Betânia do Além-Jordão, na margem oriental do Rio Jordão, na Jordânia — Foto: Raad Adayleh/AP
Há anos a EcoPeace diz que o Baixo Jordão, que
corre para o sul saindo do Mar da Galileia, está ameaçado por décadas de
desvios de água e poluição. Apenas uma ínfima fração do fluxo histórico de água
chega atualmente à sua desembocadura no Mar Morto.
De pé no local de batismo jordaniano de Betânia do
Além-Jordão, Burckhartt enfrentou muitas emoções – entre elas, a tristeza pela
diminuição do rio.
“Tenho certeza que Deus, lá em cima, também está
triste.”
As margens opostas abrigam locais de batismo rivais
onde acontecem rituais de fé, um reflexo do duradouro fascínio exercido pelo
rio.
Vista dos prédios em Al-Maghtas, ou Betânia do Além-Jordão, na margem oriental do Rio Jordão, na Jordânia — Foto: Raad Adayleh/AP
O rio tem ainda mais significado como cenário de
milagres no Antigo Testamento.
No local de batismo jordaniano, recentemente, uma
mulher mergulhou os pés na água e pegou um pouco com as mãos, esfregando-a no
rosto e na cabeça. Outros fizeram o sinal da cruz ou se debruçaram para encher
garrafas.
Rustom Mkhjian, diretor-geral da Comissão do Local
de Batismo da Jordânia, falou apaixonadamente sobre a alegação de autenticidade
pela Jordânia – a UNESCO declarou o local um Patrimônio da Humanidade “de
imensa importância religiosa para a maioria das denominações da fé cristã, que
aceitaram este local como o lugar onde Jesus” foi batizado.
“Todos os anos celebramos a harmonia
inter-religiosa, e entre os dias mais felizes da minha vida estão aqueles em
que vejo judeus, cristão e muçulmanos visitarem este local, e todos eles
chorarem”, diz Mkhjian.
Olga Bokkas, uma visitante de Connecticut, EUA, entra nas águas do Rio Jordão no local de batismo Qasr al-Yahud, próximo à cidade de Jericó, na Cisjordânia — Foto: Oded Balilty/AP
Tanto o local jordaniano quanto o da Cisjordânia
dão aos visitantes acesso a uma faixa estreita do rio, de onde se vê as pessoas
do outro lado. Uma bandeira israelense em Qasr al-Yahud, na Cisjordânia, lembra
que o rio é uma fronteira separando os dois mundos.
Esse local também é divulgado como o lugar onde
Jesus foi batizado. Jordânia e Israel, que assinaram um acordo de paz em 1994,
competem pelos dólares do turismo dessas pessoas.
Várias pessoas com túnicas brancas esvoaçantes
entraram na água, vindas da Cisjordânia. Visitantes de outro grupo ficaram de
pé na margem ou na água enquanto dois homens vestidos de preto derramavam água
do rio sobre suas cabeças.
“Oh, Brothers, let’s go down. (...) Down in the river to pray” (“Ah, irmão, vamos até lá. (...) Lá no rio rezar”, uma tradicional canção gospel americana), cantaram algumas pessoas.
Esses momentos serenos contrastam com as trocas de
hostilidades que já aconteceram nas margens do rio.
“Qualquer água doce deixada no rio seria vista no
passado como forma de fortalecer o inimigo”, diz Gidon Bromberg, diretor em
Israel da EcoPeace Oriente Médio. “Você leva tudo que pode.”
Turistas visitam Al-Maghtas, ou Betânia do Além-Jordão, na margem oriental do Rio Jordão, na Jordânia — Foto: Raad Adayleh/AP
“Israel, de uma perspectiva histórica, levou
aproximadamente metade da água, e Síria e Jordânia, a outra metade”, segundo
Bromberg.
Os palestinos não podem mais acessar o Rio Jordão
ou usar sua água, observou um relatório ONU-Alemanha de 2013. De acordo com o
relatório, a Síria também não tem acesso, mas construiu barragens na sub-bacia
do Rio Yarmouk, que faz parte da bacia do Rio Jordão.
“No passado, o Rio Jordão representava para os palestinos um meio de subsistência, estabilidade econômica e crescimento”, conta Nada Majdalani, diretora na Palestina da EcoPeace. Agora, acrescenta, ele foi reduzido a uma “ambição de estado e soberania sobre recursos hídricos”.
O declínio do rio, segundo ela, é especialmente
decepcionante para os palestinos mais velhos, que se lembram “de como pescavam,
como mergulhavam no rio”.
Um sacerdote ortodoxo sérvio batiza um peregrino nas águas do rio Jordão, perto da cidade de Jericó, na Cisjordânia. Centenas de cristãos ortodoxos participaram do ritual como parte de sua peregrinação da Páscoa para a Terra Santa — Foto: Gali Tibbon/AFP
Bromberg diz que “na tradição judaica, o rio e suas
margens são um lugar de milagres (...) ele não reflete um lugar de milagres em
seu atual estado de esvaziamento”.
Em julho, Israel aprovou planos para reabilitar um
trecho do Baixo Jordão, uma decisão que a ministra do Meio Ambiente, Tamar
Zandberg, considerou “histórica”.
“Por décadas, ele foi negligenciado e a maior parte de suas águas foi levada, até que ele efetivamente se transformou em um canal de esgoto”, disse ela em uma declaração. “Em uma era de crise climática e de graves crises ecológicas, há uma dupla importância na reabilitação do Rio Jordão.”
Por telefone, Zandberg disse que o projeto se
concentra sobre um trecho que corre em território israelense e reflete a
melhora na situação hídrica de Israel em decorrência de seu programa de
dessalinização, que deixou o país muito menos dependente da água que usava do
Mar da Galileia.
“Ele pode proporcionar uma história de sucesso nesse
setor, e então permitir mais parcerias bem-sucedidas no futuro” na região.
É algo que nem sempre aconteceu com facilidade.
Um plano diretor regional de reabilitação e
desenvolvimento, anunciado em 2015 pela EcoPeace, entre outros, foi adotado
pela Jordânia, mas não por israelenses e palestinos, em razão de questões
pendentes no processo de paz, de acordo com a organização.
Tensões políticas paralisaram outras iniciativas.
E o trabalho da EcoPeace não recebe o acolhimento,
nem a confiança, de todos.
“Sempre somos acusados de ser ‘normalizadores’”, por ter relações normais com Israel, conta Abu Taleb, a diretora do grupo na Jordânia. É um tema polêmico, detestado por muitos árabes por fatores como as ocupações israelenses e a falta de solução para a questão palestina.
Bromberg conta que também recebe críticas de uma
minoria barulhenta em Israel, acusando “indevidamente” a defesa de interesses
pelo grupo de beneficiar jordanianos e palestinos às custas dos interesses
israelenses.
Os problemas hídricos também complicam os esforços
de revitalização.
A Jordânia é um dos países com maior escassez de
água no mundo, e seus desafios são agravados por uma população em crescimento,
acrescida de ondas de refugiados. As mudanças climáticas ameaçam exacerbar
esses problemas.
“Estamos sob estresse, não temos um excedente para
acrescentar ao Rio Jordão e revitalizá-lo”, explica Khalil Al-Absi, jordaniano
que trabalha na Autoridade do Vale do Jordão. Ele acrescenta: “Temos muitas
belas ideias para o Rio Jordão, mas existem limitações”.
Apesar de todos os desafios que o rio enfrenta,
Al-Absi afirma permanecer otimista. A alternativa seria terrível.
”Água é vida”, diz Al-Absi. “Sem água, não há
vida.”
Blog do Paixão