Venezuela: os 'salários de fome' que inflamaram nova onda de protestos
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Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
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BBC News Mundo
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Legenda da foto,
Muitos funcionários públicos se mobilizaram
na Venezuela para exigir melhores salários
O descontentamento voltou a tomar as
ruas da Venezuela.
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epois de dois anos em que o número de
protestos naquele país vinha diminuindo progressivamente, em 2022 a tendência
parece ter mudado.
De acordo com o Observatório
Venezuelano de Conflitos Sociais (OVCS), durante o primeiro semestre deste ano,
houve cerca de 3.892 protestos, uma média de 22 por dia, o que significa um
aumento de 15% em relação ao mesmo período do ano passado.
Mas ao contrário do que aconteceu em
2019 - o ano em que houve mais manifestações na última década - quando os
protestos por motivos políticos foram os mais numerosos, durante o primeiro
semestre de 2022 foram os direitos trabalhistas que promoveram o maior número de
sinais de descontentamento: 42% do total.
Essa mudança tem a ver com um embate
entre as políticas trabalhistas do governo de Nicolás Maduro e as demandas dos
funcionários públicos.
Diminuição de renda
Nos últimos meses, houve um aumento
nos protestos de funcionários públicos na Venezuela, especialmente aqueles
empregados nos setores de saúde e educação.
Só em julho passado, ocorreram cerca de 143 conflitos trabalhistas, segundo o Instituto de Estudos Sindicais Avançados (Inaesin).
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Muitos trabalhadores culpam a ONAPRE
pela redução de seus salários
Por trás desses protestos está uma
instrução emitida em março pelo Escritório Nacional de Orçamento (Onapre, na
sigla em espanhol) que reduz a renda dos funcionários públicos entre 40% e 70%,
segundo o Inaesin.
"O Onapre assumiu a incumbência
de expedir instruções para o pagamento dos salários dos trabalhadores e, por
interferirem nisso, têm violado a Constituição, as leis e os direitos
trabalhistas, porque, ao serem aplicadas essas instruções, o salário dos
trabalhadores vem diminuindo", diz Belkys Bolívar, membro do conselho
nacional da Federação Venezuelana de Professores.
Ele explica que, por meio dessas
instruções, o Onapre vem desconsiderando os benefícios previstos nos contratos
coletivos dos servidores públicos e vem reduzindo os valores dos bônus e prêmios
neles previstos, que representam parte importante da renda desses servidores.
"Em março deste ano, quando foi
dado um aumento salarial por meio do Executivo, eles decidiram baixar todos os
nossos bônus que estão no acordo coletivo. Eles baixaram em 50%. Por exemplo,
os prêmios de compensação acadêmica para professor que faz pós-graduação, mestrado
ou doutorado, todos reduziram em 50%", diz.
Destaca também que reduziram, por
exemplo, os bônus de antiguidade que, no seu caso, passaram de 60% para 30% do
salário, e que o bônus geográfico, para quem trabalha no meio rural, passou de
25% para 10% , um decréscimo superior a 50%.
Essa política também afetou outros
setores da administração pública. Segundo Pablo Zambrano, secretário-executivo
da Federação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (Fetrasalud, na sigla em
espanhol), os funcionários da área sanitária da Venezuela também perderam mais
de 50% da renda devido à aplicação dessa instrução do Onapre.
Vitória parcial
A equipe da BBC
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Embora essa mais recente instrução
tenha gerado manifestações de descontentamento desde sua promulgação em março,
a insatisfação piorou recentemente quando os funcionários do setor de educação
receberam o abono de férias com um valor muito inferior ao esperado.
Segundo Bolívar, a lei estabelece que
esse bônus deve ser pago levando em consideração o último salário recebido pelo
trabalhador, mas o governo, em vez de levar em consideração aquele salário
aprovado em março passado, o fez com base no salário de dezembro de 2021.
A diferença é notável. "No meu
caso, eles me pagaram 140 bolívares (R$ 102) e deveriam ter pago 2,4 mil
bolívares (R$ 1,75 mil)", diz Bolívar.
"Por causa dessa arbitrariedade,
foi então que começaram a surgir manifestações. O salário não é suficiente para
viver. Então, voltamos a protestar e ficamos mais de 3 semanas
protestando", diz.
E obtiveram uma vitória parcial. Em
15 de agosto, Maduro demitiu o então diretor do Onapre, Marco Polo Cosenza, e
nomeou para o cargo Jennifer Quintero de Barrios, até então responsável pelo
Tesouro Nacional.
Logo depois, os funcionários do setor
de educação começaram a receber a diferença pendente do abono de férias em suas
contas.
No entanto, as instruções do Onapre
não foram revogadas, por isso os servidores públicos anunciaram que
permanecerão em protesto porque o objetivo é que essa regra seja eliminada e
que o governo possa colocar em dia outras dívidas pendentes com eles.
Salários de fome
Bolívar indica que o desconforto causado pelo pagamento incompleto do abono de férias não tem a ver com as férias dos funcionários, mas com a necessidade que eles têm do dinheiro.
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Os funcionários públicos da Venezuela
classificam o que recebem como um 'salário de fome'
"As pessoas sempre esperam as
férias para resolver problemas pessoais com esse dinheiro porque não usamos
realmente para sair de férias. Isso não é suficiente para sair de férias com
nossa família", diz, lembrando que esses recursos são usados para tapar
os buracos no orçamento que não podem cobrir com os seus salários.
Ele explica que entre os professores
que trabalham na administração pública na Venezuela há seis categorias. No
mínimo, eles ganham cerca de 400 bolívares por mês (cerca de R$ 290) e no
máximo, cerca de 900 bolívares por mês (R$ 655).
"São salários indignos. É um
salário de fome porque não é suficiente para cobrir nossas necessidades
alimentares. Além do fato de termos também necessidades de saúde e outras.
Quando ocorre um acidente, quando um familiar morre, não temos como cobrir
essas situações e temos que buscar a solidariedade, pedir nas redes sociais,
pedir aos nossos colegas e parentes que nos ajudem, porque o salário não nos
permite cobrir essas necessidades", diz.
A situação não é melhor no caso dos
profissionais de saúde. Pablo Zambrano explica que um funcionário
administrativo ganha o equivalente a cerca de R$ 150 por mês, enquanto um
médico ganha pouco mais de R$ 50.
Com esses salários, eles têm que
enfrentar um alto custo de vida. A chamada cesta básica - que se refere ao dinheiro
necessário para alimentar uma família de cinco pessoas por mês - ficou em R$
2,35 mil em junho, segundo cálculos do Centro de Documentação e Análise Social
da Federação Venezuelana de Professores (Cendas-FVM).
Assim, seriam necessários os salários
de cerca de três ou quatro médicos por família para cobrir essa cesta
mensalmente.
O que o governo
disse
O governo Maduro lidou com essa
questão com discrição, sem que suas principais figuras a abordassem
publicamente.
Segundo a imprensa venezuelana, em 8
de agosto, durante um discurso, o presidente foi interrompido por uma mulher
que gritou com ele sobre algo relacionado ao Onapre, ao que Maduro respondeu:
"O que você está dizendo não é assim e, se você quiser, nós conversamos
pessoalmente. Não é verdade. Não é verdade. É uma pequena campanha que fazem
nas redes e não é verdade".
Nesse mesmo dia, durante uma sessão
da Assembleia Nacional, o deputado governista Pedro Carreño defendeu as
instruções do Onapre, destacando que o verdadeiro problema era que o Estado não
tinha dinheiro.
"Essa instrução que demonizam,
que submetem ao ridículo público, tornou-se uma espécie de muro de contenção
para barrar as pretensões da direita reacionária que quer mostrar que há um
problema na Venezuela porque não estão sendo respeitados os direitos dos
trabalhadores, quando as instruções na verdade dizem que não há recursos nem
meios para resolver as necessidades", disse ele.
O Ministério das Comunicações
venezuelano foi consultado sobre o tema, mas não respondeu à reportagem.
Guiados pelo bolso
Após um 2019 convulsivo, o desconforto expresso nas ruas venezuelanas diminuiu significativamente.
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Em 2022 houve uma retomada dos
protestos nas ruas da Venezuela
Segundo dados do OVCS, em 2019, houve
cerca de 16.739 protestos na Venezuela. O número caiu para 9.633 em 2020 e
reduziu para 6.560 em 2021.
Vários fatores desempenharam um papel
neste declínio, desde um aparente enfraquecimento das forças da oposição até as
limitações de mobilidade decorrentes da pandemia de covid-19, entre outros.
Pablo Zambrano, da Fetrasalud,
garante que os sindicatos permaneceram mobilizados todo esse tempo, mas
reconhece que o impulso recente dos protestos tem a ver com algumas mudanças
dos últimos meses.
Ele destaca que não estão
satisfeitos, porque, além de aplicar as instruções da Onapre que cerceiam direitos
trabalhistas, a situação se torna ainda pior porque a resposta do governo à
reclamação tem sido a perseguição, intimidação e criminalização dos
trabalhadores.
"Também gerou descontentamento
que o governo vem falando em recuperação econômica, mas isso não é sentido
entre os trabalhadores. Pode ser para um setor que de alguma forma vai
representar 10% da população e que faz parte de todas essas elites que se construíram
agora dentro deste governo, mas os trabalhadores, os assalariados não têm neste
momento o suficiente para viver com dignidade, para sustentar suas
famílias", aponta.
Zambrano assegura que um
elemento-chave na reativação dos protestos tem sido o fato de os setores de
saúde e educação terem se unido para promover conjuntamente os protestos, mas
também que o que eles exigem são respostas concretas do governo às demandas dos
trabalhadores, sem outras bandeiras.
"Conseguimos que os
trabalhadores respondessem à reivindicação, mesmo além do partido, além da
ideologia, além do debate sobre capitalismo ou comunismo, esquerda ou direita -
esses discursos que já estão esgotados. Aqui, neste momento, independentemente
de seus pensamentos, as pessoas sabem que o governo está fazendo errado, eles
sabem que está cometendo grandes erros e que tem uma política que vai contra a
classe trabalhadora venezuelana", diz.
- Este texto foi publicado
originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62668771
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