Usando na campanha a imagem de “incorruptível”, presidente precisa explicar como ele e a família usaram R$ 25,6 milhões em dinheiro vivo para comprar 51 imóveis ao longo dos últimos 32 anos. Oposição promete explorar o caso na campanha e na Justiça
FAMÍLIA UNIDA Os três filhos políticos do presidente, Flávio, Carlos e Eduardo, são donos de 19 apartamentos e salas comerciais, que custaram R$ 15,7 milhões (Crédito: Divulgação)
ANA VIRIATO /isto é
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das principais explosões emocionais de Jair Bolsonaro na Presidência ocorreram
quando o cerco em torno de sua família se fechava pelas investigações sobre
esquemas de rachadinhas. O azedume é compreensível, já que seu clã se revelou
uma inesgotável fonte de escândalos. Em meio a casos rumorosos, como os cheques
de Fabrício Queiroz à primeira-dama, Michelle, o presidente criou uma realidade
paralela para a sua claque, único espaço em que ecoa o discurso de que é um
político “incorruptível”. A um mês das eleições, ficou mais difícil emplacar a
retórica para fora da bolha com a revelação de que ele, os filhos, as
ex-esposas, a mãe e os irmãos compraram nas últimas três décadas nada menos do
que 107 imóveis, dos quais pelo menos 51 foram negociados com dinheiro vivo,
total ou parcialmente.
MARIA DENISE BOLSONARO O imóvel em Cajati (SP) da irmã do presidente e do seu marido, José Orestes Fonseca, custou R$ 2,67 milhões e ganhou clube de tiro (Crédito:Divulgação)
A
“imobiliária” deve render dores de cabeça ao presidente, inclusive na corrida
eleitoral. Aliados de Lula defendem que o caso seja usado para se contrapor às
acusações que o petista enfrenta pelo Petrolão e Mensalão (é bom lembrar que o
próprio ex-presidente foi preso pela nebulosa transação imobiliária envolvendo
um triplex no Guarujá). Por ora, o partido prefere centrar as inserções
publicitárias na economia. Até agora, as suspeitas contra o mandatário foram
lembradas somente por Ciro Gomes, que, no debate televisionado pela Band,
declarou que o capitão “corrompeu as ex-esposas e os filhos”.
CLÃ Bolsonaro com os irmãos e a mãe (de óculos): negócios imobiliários no Vale do Ribeira, em São Paulo (Crédito:Divulgação)
Noticiado
pelo portal UOL, o patrimônio dos Bolsonaro, construído entre 1990 e este ano,
chama atenção, à primeira vista, porque não condiz com a renda da família. Os
imóveis comprados em “cash” foram registrados em cartórios por R$ 13,5 milhões,
ou R$ 25,6 milhões em valores corrigidos pela inflação. Desse total, 19
apartamentos e salas comerciais pertencem aos três filhos políticos do
presidente — Flávio, Carlos e Eduardo —, donos dos maiores gastos. As
transações do trio custaram, ao todo, R$ 8,5 milhões — ou R$ 15,7 milhões,
corrigidos pela inflação. Não é difícil constatar o contraste entre as
aquisições e os salários mensais da prole do capitão. O 01, por exemplo,
iniciou a carreira política na Assembleia Legislativa do Rio, onde permaneceu
por 16 de seus 41 anos — a remuneração para o cargo, atualmente, é de R$ 25,3
mil. Desde 2019, ele exerce mandato de senador, recebendo todos os meses R$
33,7 mil. Carlos é vereador desde os 18 anos e, hoje, na quinta legislatura,
tem um contracheque de R$ 14,3 mil. Ao justificar à Justiça a compra de sua
mansão em Brasília em março de 2021, avaliada em R$ 6 milhões, Flávio disse que
a compra estava relacionada à sua renda como “advogado, empresário e
empreendedor”.
Apesar de
fazer negócios imobiliários pagando em espécie, o presidente e seus filhos não
têm o hábito de guardar dinheiro em casa, apontam as declarações de renda
enviadas à Justiça Eleitoral. Desde 1998, só Carlos Bolsonaro informou ter
guardado dinheiro em espécie (R$ 20 mil). Pelas suspeitas já levantadas, ao
menos 25 imóveis da família já provocaram investigações do Ministério Público
do Rio e do Distrito Federal. A PF acaba de pedir a abertura de investigação de
Ana Cristina Valle, ex-mulher do presidente, pela compra de uma mansão avaliada
em R$ 2,9 milhões em uma área nobre de Brasília, onde mora com o filho, Jair
Renan, o “04”. Ela alegava que havia alugado o imóvel por R$ 8 mil mensais,
valor semelhante ao que recebia como assessora parlamentar. Mas já mudou a
história. Para concorrer a deputada distrital este ano, declarou à Justiça ser
proprietária do imóvel, que avaliou em R$ 829 mil – ainda que a mansão esteja
em nome de um corretor. Para os investigadores, o uso de uma terceira pessoa na
transação demonstra “possível dissimulação da propriedade do bem imóvel
adquirido”, o que pode configurar lavagem de dinheiro.
Bolsonaro,
no tom impulsivo de sempre, colocou-se no lugar de vítima ao ser questionado.
“Desde quando eu assumi, 4 anos de pancada em cima do Flávio, do Carlos.
Eduardo, menos. Tenho cinco irmãos no Vale do Ribeira. O que eu tenho a ver com
o negócio deles?”, argumentou. As aquisições, por si só, não são um crime,
desde que o presidente aponte como ele e seu entorno conseguiram o dinheiro
vivo para bancar as transações.
Transação incomum
O descompasso entre renda e gastos de seus filhos, por exemplo, soa como um sinal de alerta tanto na esfera cível quanto na penal. A Lei de Improbidade Administrativa, apesar de desmontada pelo Congresso com a anuência do Planalto, preservou o trecho do texto que pode enquadrar agentes públicos por enriquecimento ilícito. “Se alguém ganha R$ 50 mil por mês e, portanto, R$ 600 mil ao ano, e compra um imóvel que custa cinco vezes a renda dele, o Ministério Público não precisa comprovar a prática de um ato concreto de improbidade, pois há um indicativo de enriquecimento sem causa. Assim, fica invertido o ônus da prova. É o agente público quem precisa demonstrar a origem dessa riqueza”, explica o presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, o procurador de Justiça Roberto Livianu.
FLÁVIO BOLSONARO O senador foi investigado pela compra da mansão em Brasília que custou R$ 6 milhões. Ele disse que adquiriu o imóvel com a renda de advogado, empresário e empreendedor (Crédito:Divulgação)
CARLOS BOLSONARO Prédio na Tijuca, no Rio de Janeiro, onde o vereador tem um de seus apartamentos
Mas a
história vai bem além. A escolha por transações em dinheiro vivo para a compra
de imóveis é incomum e, consequentemente, suspeita, pontua Livianu. Cidadãos
preocupados com sua segurança não andam pelas ruas com milhares de cédulas numa
mala. Quando alguém pode pagar uma casa ou um apartamento à vista, o faz
normalmente por meio de transações bancárias, que, aliás, são automaticamente
notificadas à Unidade de Inteligência Financeira, o antigo Coaf. Além disso, o
setor imobiliário, frisa o procurador, em geral costuma optar por movimentações
financeiras eletrônicas. A soma desses fatores leva autoridades a ligarem
compras vultosas em espécie a lavagem de dinheiro.
ANA CRISTINA VALLE A ex-mulher de Bolsonaro vive com o filho Jair Renan em uma mansão de R$ 2,9 milhões, que dizia alugar. Agora, diz que é a dona. A PF vai investigar (Crédito:Divulgação)
É na
origem do dinheiro que está o principal problema do clã Bolsonaro, já que o
histórico joga contra. Flávio, o 01, foi denunciado pelo Ministério Público do
Rio após investigações apontarem que ele exigia e embolsava parte dos salários
de funcionários de seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa do Rio, Alerj.
De acordo com a apuração, era Fabrício Queiroz quem passava o chapéu. O material
levantado pelos promotores acabou descartado por decisões do STJ e do STF, que
anularam relatórios de inteligência, quebras de sigilo e provas obtidas a
partir de busca e apreensão. O processo voltou à estaca zero.
Divulgação
Houve
muita pressão para o caso não avançar. Do Planalto, Bolsonaro usou a máquina
pública para blindar o filho. Enquanto as investigações ainda perduravam, a
Receita destacou cinco servidores, por quatro meses, para apurar a suspeita de
que os dados de Flávio teriam sido acessados e passados de forma ilegal ao Coaf
– as informações culminaram na acusação contra o senador pelo desvio de R$ 6,1
milhões por meio de rachadinha. Mas o Fisco impôs um sigilo de 100 anos a essa
investigação interna, em linha com as várias iniciativas do presidente para
colocar um manto de segredo sobre as atividades da família. As investigações
que correm contra Carlos são tão delicadas quanto as que envolveram Flávio e
Queiroz. O “02” é alvo do MP pela suposta contratação de funcionários fantasmas
e pelo desvio do dinheiro que, em tese, seria repassado a eles. Segundo as
apurações, o esquema era orquestrado por Ana Cristina Valle.
Para a
deputada Sâmia Bomfim, líder do PSOL na Câmara, os enroscos judiciais de Flávio
e Carlos reforçam a suspeita sobre o uso dos imóveis para a lavagem de
dinheiro. “É importante que a população saiba quem é o presidente e sua
família”, afirma. Líder da oposição no Senado e integrante da campanha de Lula,
Randolfe Rodrigues entrou com uma ação no STF para que o caso seja apurado. “O
salário de um parlamentar não justifica esse patrimônio milionário”, argumenta
o senador. O ministro André Mendonça, indicado por Bolsonaro, foi sorteado para
relatar. Como de praxe, a notícia-crime terá de ser enviada à PGR, que decide
se propõe um inquérito ou não. O histórico de impunidade traz dúvidas sobre a
apuração efetiva desse escândalo.
JAIR BOLSONARO Imóvel em Brasília em que o presidente tem um apartamento em seu nome
Blog do Paixão