- André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC
News Brasil
CRÉDITO,ACERVO ROBERTO MENESCAL
Legenda da foto,
Da esquerda para a direita: Agostinho dos Santos, Normando Santos,
Octavio Bailly, Durval Ferreira e Roberto Menescal embarcando para Nova York,
em 1962
Rio de Janeiro,
novembro de 1962. O telefone toca na casa de Roberto Menescal.
U |
m funcionário do
Ministério das Relações Exteriores (MRE) convida o músico, então com 25 anos,
para participar de um show de bossa nova dia 21, no Carnegie Hall, em Nova
York.
"Não posso
ir. Tenho pescaria em Cabo Frio", avisou. "Mas, não dá para
desmarcar?", insistiu o homem, surpreso com a recusa. "Não dá.
Aluguei até um barco", explicou.
Ao desligar o
telefone, Menescal ainda se perguntou: "Carnegie Hall? O que será isso? Um
teatro, um festival, um bar?".
Chegou a pensar
que o tal show seria uma daquelas "reuniõezinhas informais" que a
turma da bossa nova fazia no apartamento da cantora Nara Leão na Avenida
Atlântica, em Copacabana. Não era.
Dias depois, o
telefone tocou novamente. Ao atender a ligação, reconheceu a voz de Tom Jobim:
"Menesca, você tá louco? Me falaram que não vai tocar com a gente no
Carnegie Hall…". "Ih, Tom, já tenho compromisso!", confirmou.
"Mas, por quê?", quis saber. "Marquei pescaria em Cabo
Frio", voltou a dizer.
Tom não aceitou
"não" como resposta. Menescal ainda argumentou dizendo que não era
cantor. E que, por questões financeiras, não poderia levar seu grupo.
Apenas dois
artistas viajaram com seus respectivos conjuntos: Oscar Castro Neves e Sérgio
Mendes. Nisso, Mendes se ofereceu para tocar com Menescal.
"O Menescal
representa a inocência da bossa nova. É o sujeito que, por pouco, não participou
do show porque queria pescar. E, ao contrário dos demais, precisou voltar antes
porque ia se casar", analisa a jornalista e historiadora Bruna Ramos da
Fonte, autora de Essa Tal de Bossa Nova (Editora Rocco).
"Ainda hoje,
aos 85 anos, esbanja jovialidade. É como se o tempo não tivesse passado para
Roberto Menescal".
Curiosamente, o
homem que encorajou Menescal a participar do concerto quase desistiu da viagem.
Tinha medo de avião. Foi convencido, na última hora, pelo escritor Fernando
Sabino (1923-2004): "Você vai vencer, Tom. A partir desta noite, o mundo
vai te ouvir".
CRÉDITO,ACERVO ROBERTO MENESCAL
Legenda da foto,
Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli
A ideia de alugar
a mais tradicional casa de shows de Nova York para um show de bossa nova partiu
do empresário Sidney Frey.
O dono da
gravadora Audio Fidelity esteve no Rio em setembro de 1961 e gostou muito do
que viu e ouviu no Beco das Garrafas, um famoso reduto bossa-novista em
Copacabana.
Sua ideia original
era convidar apenas Tom Jobim e João Gilberto, mas, logo, mudou de ideia.
Para anunciar o
evento, Frey convocou uma coletiva de imprensa no Copacabana Palace. Aos
repórteres, declarou que ainda estava selecionando os artistas que levaria para
Nova York.
A maior parte das
passagens aéreas foi paga pelo Itamaraty. A Varig chegou a fornecer algumas.
Houve artista que,
segundo o escritor Ruy Castro, ganhou patrocínio. A passagem de Agostinho dos
Santos foi custeada pela gravadora RGE, a de Caetano Zama pelos violões Di
Giorgio e a de Ana Lúcia pelos Diários Associados.
Ao todo, o concerto
contou com 18 artistas. Alguns deles eram, por assim dizer, obrigatórios em um
show de bossa nova — casos de Tom, João, Carlos Lyra, Menescal e Luiz Bonfá.
Outros, nem tanto.
Como Bola Sete, Carmen Costa, José Paulo e Lalo Schifrin.
Pelo menos três grandes
representantes do gênero ficaram de fora: João Donato, Johnny Alf e Baden
Powell. "Imagina se o Baden fosse... Era um grande músico. Já o Johnny era
meio recluso. Mal acabava o show, ia embora para casa. Talvez tenha sido
convidado, mas não aceitou", especula Menescal.
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Legenda da foto,
Roberto Menescal no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962
'Hi,
Menescal, how are you?'
O primeiro dos
muitos sustos que Menescal levou em Nova York foi no aeroporto. Ao desembarcar,
foi o primeiro a passar pelo controle de passaporte. A uns dez metros de
distância, avistou um grupo de músicos que fez seu coração disparar: os
saxofonistas Gerry Mulligan e Cannonball Adderley, e o grupo Modern Jazz
Quartet.
"Nossa, que
sorte!", escancarou um sorriso. "Veja quem está no aeroporto,
turma!".
Logo, o empresário
que acompanhava a comitiva desfez o mal-entendido. Não era coincidência.
Estavam ali para dar as boas-vindas aos brasileiros.
Mais surpreso
ainda Menescal ficou ao saber que aqueles e outros músicos não só curtiam a
bossa nova como já tinham gravado alguns clássicos do gênero. Caso do
saxofonista Stan Getz e do guitarrista Charlie Byrd e da canção Desafinado.
"Quando me
disseram que eles conheciam a gente, não acreditei. Mas, quando o Mulligan
disse: 'Hi, Menescal, how are you?', fiquei branco. Será que eu tô
sonhando?", diverte-se.
Desventuras
em Nova York
Os brasileiros
ficaram hospedados no Diplomat, na rua 47. O hotel fica a dez quarteirões do
Carnegie Hall, na 57.
Certa manhã,
Menescal saía para comprar uma guitarra nova quando foi chamado por João
Gilberto para ajudá-lo a escolher um chapéu. Eram dez horas.
"Rapaz,
preciso de ajuda…", começou. "Estou com frio na cabeça. Preciso
comprar um chapéu senão vou perder a voz". Menescal achou que, na pior das
hipóteses, as compras não durariam mais do que uma ou duas horas. Estava
enganado.
Às três da tarde,
João ainda não tinha encontrado o modelo ideal. "Volta e meia, ele se
queixava de que as cordas de seu violão tinham quebrado. Eu comprava as cordas,
pagava do meu bolso e, acredite, ainda tinha que trocá-las. Nem trocar as
cordas do próprio violão o João trocava", reclama Menescal.
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Legenda da foto,
Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e
Carlos Lyra
Lá pelas tantas, o
cantor de Chega de Saudade gostou de um modelo que estava na
última prateleira de uma loja de departamentos. O vendedor pegou um idêntico no
estoque, mas o cantor queria o que estava no mostruário.
"O meu chapéu
é aquele que está na prateleira. Não é este que você me trouxe",
argumentou o cantor. "Mas, João, é igualzinho!", interveio Menescal,
já impaciente com a demora. "Não é não. É diferente!", insistiu.
O vendedor, então,
pegou uma escada e, equilibrando-se nos últimos degraus, resgatou o bendito
chapéu. João experimentou o modelo, reconheceu que coube direitinho em sua
cabeça, mas implicou com uma peninha que tinha perto da aba. "Vem cá, você
não tem esse modelo sem a peninha?", perguntou.
"Essa
história é engraçada hoje. Mas, no dia, não teve nada de engraçado. Tanto que,
naquele mesmo dia, chamei o João para conversar e disse: 'João, vou continuar
comprando seus discos e assistindo aos seus shows, mas não quero mais saber de
andar com você. Estou deixando de fazer as minhas coisas para fazer as suas.
Espero que entenda'."
Em Essa
Tal de Bossa Nova, Menescal relembra outras histórias. Nessa mesma viagem,
João se trancou no quarto do hotel e recusou a abrir a porta para o repórter e
o fotógrafo da Time. Detalhe: a entrevista tinha sido agendada.
"Vi as capas
das revistas e parece que passam batom nas pessoas", gritou do outro lado
da porta. "Não posso aparecer de batom numa revista. Tenho
responsabilidades!". E, apesar de toda a negociação, não abriu mesmo.
Em Washington, os
organizadores do show pediram a Menescal para resgatar João no hotel. Faltava
pouco para o início do espetáculo e nem sinal dele.
Ao chegar no
quarto, Menescal deu de cara com João, ainda deitado e de pijamas, dedilhando
seu violão. Ao lado da cama, o cônsul do Brasil passava a ferro o smoking que o
cantor usaria no show.
CRÉDITO,ACERVO ROBERTO MENESCAL
Legenda da foto,
Herbie Mann e Roberto Menescal, em 1965
Carreira
fugaz
Os dias que
antecederam o show no Carnegie Hall passaram voando e o tão esperado ensaio de
Menescal com o sexteto de Sérgio Mendes acabou não acontecendo. Conclusão: o
músico procurou o organizador do show e pediu para cancelar sua participação.
"Ah, mas você
canta muito bem!", disse o empresário, tentando persuadi-lo a mudar de
ideia. "Eu? Mas, eu nunca cantei na vida!", espantou-se Menescal.
"Ah, mas, você vai cantar. É claro que vai! Você assinou um contrato,
lembra?", e deu a conversa por encerrada.
O outro susto que
Menescal tomou foi quando subiu ao palco do Carnegie Hall. A casa de
espetáculos, com capacidade para 2,8 mil espectadores, estava completamente
lotada.
Na plateia, nomes
famosos como o cantor Tony Bennett, os trompetistas Miles Davis e Dizzy
Gillespie, a cantora Peggy Lee, o pianista Erroll Garner e o flautista Herbie
Mann, entre tantos outros.
Segundo jornais da
época, havia uma "floresta de microfones" no palco. Pelo menos cinco
deles eram da gravadora de Frey, a Audio Fidelity.
A CBS, a Voz da
América e a BBC, entre outras emissoras, também participaram da transmissão. O
show foi transmitido para o Brasil pela Rádio Bandeirantes. A locução ficou por
conta do jornalista e produtor musical Walter Silva, o Pica-Pau.
Menescal estava
tão nervoso que, na hora de cantar O Barquinho, trocou a letra de
Ronaldo Bôscoli. "Dia de luz, festa de sol" virou "dia de sol,
festa de luz". "Troquei, mas ninguém reparou", minimiza.
Um ano depois, a
gravadora Audio Fidelity lançou o álbum Bossa Nova at Carnegie Hall,
com apenas 13 faixas, como Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e
Newton Mendonça; Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá e Antônio Maria;
e A Felicidade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
"Acho que,
até hoje, fui o único cantor que estreou no Carnegie Hall. Só eu, o banquinho e
o violão. E tem mais: sem ter ensaiado! Já na segunda música, desisti da
carreira de cantor", diverte-se Menescal.
"Passei uns
cinco anos sem coragem de ouvir a gravação. Mas, quando ouvi, até que não ficou
tão ruim quanto imaginava".
CRÉDITO,ACERVO ROBERTO MENESCAL
Legenda da foto,
Sylvinha Telles, Tom Jobim, Roberto Menescal e Marcos Valle
É
proibido fumar
O lapso de
Menescal foi apenas um dos muitos contratempos do concerto do Carnegie Hall.
Ruy Castro aponta outros em Chega de Saudade: A História e As Histórias
da Bossa Nova (Companhia das Letras): Normando Santos cantou com o
microfone desligado, Caetano Zama arriscou passos de sapateado, Bola Sete tocou
violão nas costas…
Nem Tom Jobim
escapou. Esqueceu parte da letra de Samba de Uma Nota Só e
começou a cantar Corcovado fora do tom. Parou a música e
começou de novo.
"O Carnegie
Hall só faltou ajoelhar-se", destaca o autor. Nos bastidores, Lyra levou
uma dura do segurança porque estava fumando debaixo de um aviso de "Don't
smoke".
O show,
apresentado pelo pianista Leonard Feather, foi aberto por Sérgio Mendes. Em
reunião com Frey, o pianista já tinha avisado: "Ou eu abro ou eu fecho. E
não acompanho ninguém".
Bem, se Sérgio
Mendes ficou responsável pela abertura, o encerramento ficou a cargo de João
Gilberto. Com um violão emprestado por Billy Blanco, a maior atração da noite
cantou três músicas: Samba da Minha Terra, acompanhado por Milton
Banana na bateria, e Corcovado e Desafinado, com
Tom ao piano.
"O concerto
do Carnegie Hall foi importante por internacionalizar a bossa nova de uma vez
só. Algumas músicas já tinham sido gravadas lá fora, mas o movimento ainda não
tinha tanta projeção no exterior", explica Bruna.
"Por outro
lado, representou o 'fim' da bossa nova dos encontros na praia, das reuniões
nos apartamentos, etc. Dali em diante, cada um seguiu para um lado."
Fogo
amigo
Sessenta anos
depois, Menescal calcula que passou uns 12 dias nos EUA. Além do concerto no
Carnegie Hall, os brasileiros fizeram mais dois shows: um no Village Gate, em
Nova York, e outro no Lisner Auditorium, em Washington.
Na capital
americana, os músicos chegaram a ser recebidos na Casa Branca. A então
primeira-dama dos EUA, Jacqueline Kennedy, disse a Carlos Lyra que sua música
favorita era "Maria Nobody", numa referência à canção Maria
Ninguém, de sua autoria.
O único que
regressou imediatamente ao Brasil foi Menescal. Estava de casamento marcado.
Todos os demais tentaram a sorte nos EUA. Sérgio Mendes está lá até hoje.
"Naquela
época, eu sonhava morar em Cabo Frio e viver de pescaria. Mas, as pessoas que
ficaram por lá se deram muito bem. Por outro lado, não tenho do que me queixar.
Nunca me faltou trabalho", avalia Menescal que, além de compositor e
instrumentista, é produtor musical.
Ao desembarcar,
Menescal levou outro susto. Um repórter perguntou o que achava do
"fracasso" no Carnegie Hall.
"Fracasso?",
arregalou os olhos. "Não estou entendendo…", balbuciou, aturdido com
a pergunta. A revista O Cruzeiro tinha publicado, na edição de 8 de dezembro,
um texto intitulado Bossa Nova Desafinou nos EUA.
CRÉDITO,DIVULGAÇÃO/EDITORA ROCCO
Legenda da foto,
Bruna Ramos da Fonte e Roberto Menescal no lançamento do livro 'Essa Tal
de Bossa Nova'
"Quase três
mil pessoas começaram a abandonar a sala quando Antônio Carlos Jobim passou a
cantar, em mau inglês, os mesmos sambas que as orquestras americanas já haviam
gravado, muito melhor", dizia o texto do crítico José Ramos Tinhorão,
escrito a partir da apuração do fotógrafo Orlando Suero.
O colunista social
Ibrahim Sued também pegou pesado. Em sua crítica no jornal O Globo, de 24 de
novembro, disparou: "O que deveriam ter enviado para aquele fracassado
concerto era uma grande orquestra para executar as músicas que estão agradando
no exterior. (...) O resultado foi o que se viu: uma chatice do tamanho de um
bonde; e o público, que não é idiota, foi-se retirando na metade do
espetáculo…".
Por sorte, o show
foi filmado por uma equipe de TV dos EUA e a fita trazida para o Brasil por
Walter Silva, que transmitiu o show pela Rádio Bandeirantes.
Quando soube da
gravação, o empresário Ricardo Amaral exibiu um trecho dela em seu programa de
entrevistas. Os músicos brasileiros simplesmente não conseguiam sair do palco
porque a plateia não parava de aplaudi-los de pé.
"Houve
boicote contra os músicos que tocaram no Carnegie Hall. Até hoje, isso
acontece. Se um artista nacional conquista espaço lá fora, sofre rejeição aqui
dentro. Falam logo: 'Quem ela pensa que é?' ou 'Que graça acham neste fulano?'.
É o brasileiro boicotando o brasileiro", lamenta Bruna.
Blog do Paixão