Um garoto pobre que se tornou um dos homens mais ricos da capitania comandou o levante contra os holandeses
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ascido na Ilha da Madeira, em 1610, João
chegou a Pernambuco ainda garoto, fugindo da pobreza, e jamais falava sobre o
seu passado. Seus inimigos, porém, diziam que a sua mãe teria sido uma mulata
rameira, apelidada “a Benfeitinha”, e seu pai um ladrão degredado. Após a
invasão holandesa, em 1630, ele se abrigou no Arraial do Bom Jesus, onde
trabalhou como açougueiro, e começou a fazer fortuna após a queda do Arraial,
em 1635, colaborando com os invasores, para dez anos depois chefiar a rebelião
contra eles. E quando os flamengos capitularam, em 1654, o madeirense, aos 44
anos de idade, já alcançara quase tudo que almejara na vida, faltando-lhe,
apenas, o título mais ambicionado: governador de Pernambuco…
SUBINDO NA VIDA
A carreira de João deslanchou, de fato, após
a chegada Maurício de Nassau, em 1637. Com a retirada de oito mil pernambucanos
para a Bahia, decretada pelo capitão-mor Matias de Albuquerque, dois anos
antes, dezenas de engenhos haviam sido abandonados. Então, Nassau os leiloara,
e muitos holandeses, entre os quais conselheiros, militares, comissários,
fiscais e até mesmo religiosos, os arremataram, a crédito, certos de que
enriqueceriam facilmente.
O sonho, porém, acabou depressa. A
agricultura não era ocupação para os flamengos, acostumados à vida urbana, e
quase todos revenderam as propriedades ou transferiram a administração delas
para quem tinha experiência no ramo. Assim, João se tornou administrador do
Engenho do Meio, do capitão Jacob Stachouwer, situado na fértil várzea do
Capibaribe, e mais adiante o comprou, a crédito, juntamente com os engenhos São
Carlos, Sant’Ana e Ilhetas, do mesmo proprietário e do fiscal Nicolau Ridder.
Mas não ficou só nisso. Aos poucos, com mimos
e presentes, João conquistou a simpatia de Nassau. E valendo-se do seu apoio,
contratou com o governo um serviço de captura de escravos fugidos, à razão de
130 réis cada um, ganhando muito dinheiro com esta operação.
Depois, casou-se com a jovem Maria César,
filha de Francisco Berenguer de Andrade, também madeirense e um dos
proprietários mais ricos do País, e de Joana de Albuquerque, da família dos
donatários da capitania. Assim ingressou na aristocracia pernambucana. E sua
cartada seguinte foi a mais ousada de todas: comandar a expulsão dos holandeses!
PLANEJANDO O LEVANTE
Era Nassau, apenas, que conseguia manter a
paz em Pernambuco. Após sua partida, em 1644, a insatisfação dos senhores de
engenho com a Companhia das Índias explodiu. E eles tinham bons motivos para
isso.
Primeiramente, esses proprietários, que se
julgavam descendentes da pequena nobreza de Portugal, haviam perdido prestígio
e poder político com a troca das antigas câmaras municipais, onde só eles se
elegiam vereadores, por câmaras de “escabinos”, nas quais eram obrigados a conviver
com judeus, comerciantes e artesãos. Depois, havia as taxas, impostos e fretes
maiores do que no tempo do rei. Em seguida, vinham as dívidas contraídas para
reequipar engenhos destruídos pela guerra ou pagar as prestações das
propriedades adquiridas em leilão, sobre as quais eram cobrados juros de até
42% ao ano. Por fim, os artigos finos holandeses, como velas de cera, selas,
chapéus, armamentos e tecidos, que antes não havia por aqui, também eram
consumidos com avidez. E haja endividamento com a Companhia.
O próprio João Vieira, por exemplo, devia 540
mil florins — uma fortuna que daria para pagar, com sobra, a Mauritshuis, o
luxuoso palácio de Maurício de Nassau, erguido em Haia. Então, em junho de
1645, à frente de outros proprietários, ele proclamou a rebelião.
A vitoriosa “guerra da
liberdade divina”
O plano era realizar uma campanha fulminante,
de curtíssima duração. Ela começaria com a tomada do porto de Nazaré, no Cabo,
por uma tropa formada por antigos combatentes como Felipe Camarão, Henrique Dias,
André Vidal de Negreiros e Martim Soares Moreno, então exilados na Bahia. A
esquadra comandada pelo almirante Salvador Correia de Sá, que navegava ao longo
da costa, protegendo os navios portugueses, bloquearia o porto do Recife. E as
praças inimigas seriam capturadas com apoio do povo do interior, extremamente
católico, chamado a lutar em nome da fé, para livrar o Brasil dos “heréticos” —
ou seja, dos protestantes calvinistas.
Quase nada, porém, dera certo. Salvador
Correia negara-se a fazer o bloqueio sem ordem do rei, e as tropas da Bahia não
chegaram dentro do prazo previsto. Mas, quando os holandeses mandaram uma
poderosa coluna atacar os rebeldes, para surpresa geral foram derrotados, numa
batalha travada em Vitória de Santo Antão, no dia três de agosto.
Então, a guarnição mercenária de Nazaré
entregara o porto em troca de dinheiro. Os “baianos” se apresentaram,
finalmente, e ajudaram a bater o inimigo mais uma vez, no dia 17, no Engenho
Casa Forte. E em três meses os flamengos voltaram a ficar encurralados no
Recife, em Itamaracá e em Fernando de Noronha, como nos primeiros tempos da
invasão, quinze anos atrás.
LÍDER POLÊMICO
A liderança de João Vieira, porém – do qual
muita gente não gostava, pela sua prepotência –, passara a ser questionada com a
volta dos exilados da Bahia. O problema era os engenhos abandonados pelos
retirantes de 1635 e leiloados pela Companhia das Índias. As propriedades que
estavam com judeus e flamengos foram logo devolvidas aos antigos donos. Mas as
adquiridas por luso-brasileiros tornaram-se uma fonte de atritos e Vieira, o
grande inimigo dos prejudicados. Houve até um atentado contra sua vida, em
1646. E assim ele perdeu o comando da insurreição, que passou para o general
português Francisco Barreto de Menezes, em 1648. Mas mantivera o seu terço
(batalhão), e bastante influência na guerra.
Quando a luta acabou, em 1654, João conseguiu
manter a posse dos seus engenhos; não pagou suas dívidas com a Companhia das
Índias (pelos seus cálculos, os holandeses é que lhe deviam mais de cem mil
florins) e se apossou de muitos prédios no Recife. E como recompensa pelos seus
serviços recebeu, ainda, os títulos de capitão-mor do Pinhal, comendador da
Ordem de Cristo e membro do Conselho de Guerra luso, além de ser nomeado
governador do Maranhão e de Angola. Mas nunca governou Pernambuco, como tanto
queria.
João Fernandes Vieira morreu em 1681, aos 71
anos de idade, em Olinda, com seus feitos exaltados por frei Manoel Calado no
livro “O valeroso lucideno” (“O valente português”). E no dia 6 de agosto de
2012, a Lei Federal nº 12.701 determinou que seu nome fosse inscrito no Livro
dos Heróis da Pátria, conhecido como “Livro de Aço”, depositado no Panteão da
Pátria e da Liberdade, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, ao lado de
Felipe Camarão, Henrique Dias, Antônio Dias Cardoso, André Vidal e Barreto de
Menezes.
São Maurício, protetor dos
devedores
O conde Nassau defendia os produtores
endividados. Pelos seus cálculos, os pernambucanos deviam à Companhia das
Índias sete milhões e meio de florins, ou 75 tonéis de ouro, em 1642. Mas,
devido às altíssimas taxas de juros, já deviam treze milhões, ou 130 tonéis, em
1644. Além disso, “os salários, emolumentos, multas, percentagens, extorsões e
comissões dos secretários, notários, procuradores, solicitadores, tradutores,
meirinhos, mensageiros, executores e outros oficiais, elevam-se tanto que
duvido que haja lugar no mundo em que tanto se lhes pague”, ele reclamou numa
carta à Companhia. Quando se foi, a pressão sobre os devedores aumentou e a revolta
explodiu.
A Batalha das Tabocas
Os pernambucanos tinham apenas 1.200 homens,
umas 300 espingardas e outras tantas espadas enferrujadas, além de facões,
arcos, flechas e paus com ponta afiada. E os flamengos até acharam graça, pois
“a maior parte daquela gentalha e canalha se compunha de criados, mulatos e
quejandos, gente que não tinha experiência no manejo do mosquete e do arcabuz,
mais própria para serem escravos do que para a guerra”, como relatou um deles.
Pois aquela “gentalha”, comandada pelo capitão Antônio Dias Cardoso, os atraiu
para um tabocal – espécie de mata de bambus, cheia de espinhos – onde lhes
aplicou uma tremenda sova.
Blog do Paixão