Edison Veiga
De Bled
(Eslovênia) para a BBC News Brasil
CRÉDITO,DOMÍNIO PÚBLICO
Santa Luzia é invocada hoje pelos fiéis como
padroeira dos olhos
J |
ovem bonita de bochechas coradas, carrega uma folha de palmeira — item
comum no imaginário religioso, pois representaria a imortalidade — e uma
bandeja dourada. Dentro, está aquilo que soa mais inusitado: um par de olhos.
Luzia de Siracusa, ou Lúcia de Siracusa, é a
santa considerada padroeira dos olhos, da visão.
Mas como ela viveu em uma época de cristianismo incipiente e parcos registros, sua biografia carece de informações confiáveis — e há diferentes versões para explicar sua santidade e mesmo essa sua propriedade de zelar pelos olhos dos fiéis.
"Luzia, como os demais santos mártires do seu tempo, por volta do
ano 280 d.C., não tem muitos escritos que afirmem uma verdade histórica no
sentido da historiografia, entretanto o martirológico cristão os descreve de
forma peculiar", pontua padre Jerônimo Gasques, mestre em Teologia
Dogmática e autor de, entre outros livros, Santa Luzia - O Brilho de Uma Luz - A Protetora dos Olhos.
Luzia nasceu em Siracusa, na Sícilia, ilha do
Mediterrâneo que hoje faz parte da Itália, no ano de 283. Na época, o
cristianismo era perseguido pelo governo romano. Sua família, contudo, era
cristã e, ao que consta, gozava de uma vida de riquezas.
"O pai, que se chamava Lúcio, morreu
quando ela ainda era muito jovem", conta o estudioso de cristianismo
antigo Thiago Maerki, pesquisador na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) e associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos.
Ali, teve uma epifania e, acreditando que
Deus curaria sua genitora, Luzia decidiu consagrar sua vida ao cristianismo,
fazendo voto de virgindade.
"A esse tempo, ela estava prometida em
casamento com um jovem pagão, e queria se livrar desse compromisso", diz
Maerki.
"Sua mãe, adoecida, desejava o seu
casamento com um fidalgo da nobreza. No entanto, isso a desagradava, pois ela
queria viver em castidade na consagração a Deus e ao seu Senhor, como
cristã", completa Gasques.
"Segundo a tradição, Santa Águeda não
apenas lhe curou a mãe, mas também lhe revelou que sofreria o martírio e seria
venerada em toda a Siracusa", comenta o pesquisador e escritor J. Alves,
membro da Academia Brasileira de Hagiologia e autor do livro Os Santos de Cada Dia e
de Santa Luzia - Novena
e Biografia.
Denúncia e
perseguição religiosa
De acordo com Maerki, após essa cura, a mãe
dispensou a menina de cumprir o casamento prometido.
A partir dali, não só Luzia se dedicaria a
Deus como também não teria mais receio de expôr sua cristandade, então
vivenciada apenas na clandestinidade.
"Santa Luzia foi uma mulher corajosa,
que escolheu viver na fé e arriscar sua vida ao assumir a condição de seguidora
de Jesus, em um tempo em que isso era considerado crime grave", diz Alves.
Essa conduta da moça, contudo, desagradou o
jovem que queria desposá-la.
Contrariado, o jovem pretendente decidiu
denunciá-la ao procônsul Pascásio — na estrutura romana, procônsul era o
magistrado encarregado de administrar cada província, como um governador ou um
prefeito.
Naquela época, Roma era comandada pelo
imperador Diocleciano (243-312), cuja marca foi a perseguição aos que
professassem a fé cristã.
Martírio de Santa Luzia, em obra de Mario
Minniti, datada do século 16
Dito e feito: Luzia foi presa pelas forças do
governo. Pascásio, então, teria se empenhado de todas as formas para que ela
renunciasse ao cristianismo e aderisse aos rituais pagãos romanos.
"Ele teria ordenado que ela fizesse
sacrifícios aos deuses romanos mas, segundo as fontes de relatos hagiográficos,
Luzia teria respondido que o sacrífico puro diante de Deus seria visitar as
viúvas, os órfão e os peregrinos que param por meio da angústia e da
necessidade que sofrem", diz Maerki.
A essa altura, com o consentimento da mãe,
Luzia havia decidido se desfazer de todos os bens da família em favor dos
pobres, promovendo grandes doações àqueles que viviam na precariedade absoluta.
"Ela dizia que sua herança seria toda
distribuída aos pobres", comenta o pesquisador.
A relutância de Luzia em aderir a fé oficial
aumentou a irritação de Pascásio.
"Ele ordenou que seus soldados a levassem para um prostíbulo, um
bordel", narra Maerki.
A ideia era que ali ela fosse estuprada.
"Ele teria dito que a levaria a um lugar
'de perdição, onde o Espírito Santo iria embora'. Os soldados amarraram suas
mãos e seus pés com cordas mas, segundo a hagiografia, ela permaneceu fixa como
uma rocha e ninguém conseguia movê-la dali."
Então, a tortura continuou. Pascásio mandou
submetê-la a flagelos com óleo fervente pelo corpo. Tudo para que a moça
renegasse a fé.
Maerki conta que são duas as tradições
hagiográficas a respeito da santa. Na versão mais antiga, uma narrativa grega
do século 5, ela teria sido martirizada com a decapitação.
Já no relato latino, escrito provavelmente
entre os séculos 6 e 7, a morte de Luzia é descrita como causada por diversos
golpes de espada.
Olhos
A questão dos olhos, de acordo com o
hagiólogo, teria sido uma construção tardia.
"Trata-se de uma tradição lendária que
surge na Idade Média, e é por meio dessa lenda que Santa Luzia acaba sendo considerada
a protetora da visão", argumenta Maerki.
DOMÍNIO PÚBLICO
Há diferentes versões para explicar sua
santidade
"Diz-se que na verdade ela tinha os olhos muito bonitos e que isso perturbava o pretendente dela. Diante disso, ela teria arrancado seus olhos e oferecido a ele em uma bandeja. Por milagre, imediatamente um novo par de olhos surgiu em seu rosto."
De acordo com essa versão, o pretendente
teria ficado impressionado com o que acabara de presenciar e, por conta disso,
acabaria aderindo ele também ao cristianismo.
"Outra tradição é que Pascásio teria
ordenado a seus soldados que arrancassem os olhos de Luzia e, quando eles assim
o fizeram, Deus teria concedido a ela novos olhos ainda mais bonitos do que os
arrancados pelos soldados", relata Maerki.
É a versão adotada pelo padre Gasques, por
exemplo.
"Inicia-se uma sessão de torturas sem
êxito da parte opressora tentando faze-la desistir do seu intento. Mantém-se
firme na sua opção e, por fim, é autorizado a extração de seus olhos e
entrega-lhes em uma bandeja de prata. Nas suas últimas palavras, Luzia se
extasia de joelhos e tira de si as últimas inspirações e o verdugo, com a
espada afiada lhe dá o derradeiro golpe no pescoço, cortando-lhe a cabeça. Era
o dia 13 de dezembro de 304 d.C.", narra ele, sobre o martírio da santa.
"A mistura de várias lendas e histórias
sobre os olhos de Luzia vão acabar construindo essa tradição de ela ser a
padroeira da visão", diz Maerki.
Provavelmente essa ligação da santa com os
olhos tenha uma origem etimológica. Luzia, afinal, vem do latim lux, ou seja
luz.
"Santa Luzia, cujo nome significa luz, é
a portadora da luz e a protetora dos olhos", explica Alves.
"Segundo uma narrativa edificante do
final da Idade Média, o pretendente de Santa Luzia havia ficado fascinado pela
beleza e brilho de seus olhos. Então, ela os arrancou e os ofertou a ele.
Entretanto, para espanto de todos, seus olhos se restabeleceram milagrosamente,
ainda mais formosos que antes", diz ele.
Fato é que desde os primeiros séculos do cristianismo ela passou a ser
invocada para curar as doenças da visão. Alves comenta que os olhos "são
as janelas por onde a luz penetra o nosso ser, permitindo que contemplemos a
beleza das coisas e acolhamos, pelo olhar, nossos semelhantes".
"Ela é invocada não apenas contra a
cegueira física, mas também contra a cegueira que nos impede de enxergar que
Deus é nossa luz e a vida só vale a pena quando se torna um ato de amor total a
ele e ao próximo", frisa o pesquisador.
Devoção
Alves conta que a devoção a Luzia passou a
ocorrer, em nível local, logo após sua morte.
"O túmulo dela em Siracusa logo se
tornou lugar de peregrinação, para onde as pessoas acorriam a fim de venerá-la
e invocar sua proteção", comenta.
"Sobre seu sepulcro foi erguida uma
igreja e, desde o século 4º, ela já era venerada entre as mais ilustres virgens
e mártires da Igreja."
"A inscrição encontrada no cemitério de
São João, em Siracusa, e a inserção de seu nome no cânone da missa, tanto em
Roma quanto em Milão, conferem-lhe lugar importante na história da Igreja e uma
missão: ser uma luz nos caminhos escuros da humanidade", acrescenta.
O pesquisador lembra, entretanto, que seu
culto se tornou mais propagado a partir do pontificado do papa Gregório Magno
(540-604), pois foi ele quem inseriu o nome de Luzia no cânone da missa,
juntamente ao de outras santas.
"Assim, com a inclusão da missa em
memória dessas santas nos missais e livros litúrgicos, a devoção a elas se
difundiu por toda a Igreja", explica Alves.
No Brasil, a colonização portuguesa acabou
trazendo a devoção.
"São muitas as localidades que trazem o
nome de Santa Luzia", comenta o hagiógrafo.
"Já em 1773 foi lhe erguida, na antiga
Fazenda de Santa Luzia, uma capela em sua honra. Essa capela daria origem à
cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Atualmente a catedral de Mossoró
ocupa o lugar dessa antiga capela e a festa de Santa Luzia é um dos principais
eventos religiosos da cidade, reunindo milhares de devotos."
Padre Gasques entende haver um papel social
nessa devoção.
"É uma devoção que nos anima à
caminhada", comenta, lembrando que certa vez uma paroquiana contou-lhe que
saiu da consulta oftalmológica "tão desanimada" que sua primeira
reação foi rezar para Santa Luzia.
"Essa devoção vem de encontro às
inúmeras enfermidades dos olhos. A procura dos pobres ao atendimento ocular,
certamente é deficiente. Os recursos médicos na área da oftalmologia, clínicos
e remédios são inacessíveis por uma parte da sociedade que tem, apenas, a fé em
Deus e aos santos a quem recorrer", analisa o padre.
Blog do Paixão