Crédito,Governo do CearáLegenda da foto,Desigualdade de tratamento da PM para negros e brancos é pauta histórica de protestosArticle information
- Author,Marina
Rossi
- Role,Da BBC News Brasil em São Paulo
Adilson Paes de Souza trabalhou por 30 anos como policial militar em
São Paulo. Coronel aposentado, hoje ele se dedica a tentar entender as razões
para as altas
taxas de abuso policial. Fez mestrado, doutorado, escreveu um livro - O
Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais
militares (Escrituras)-, mas diz ainda não ter encontrado todas as
respostas.
Em seus estudos, ele entrevistou policiais sob a condição de
anonimato, e diz ter ouvido histórias impressionantes. "Eu estudo como um
grupo de policiais assassinos, cuja tarefa é eliminar pessoas, se forma",
diz. "E eu ainda estou tentando entender. Não cheguei a uma conclusão
ainda", conta à BBC News Brasil.
Seu objeto de estudo tem sido amplamente noticiado no país
e, recentemente, ganhou contornos de crise em São Paulo.
O govenador Tarcísiode Freitas (Republicanos) e seu secretário de Segurança Pública,
Guilherme Derrite, estão sendo confrontados com casos de violência policial.
Homicídios cometidos por esses agentes em serviço ou de folga aumentaram 59%
até outubro, na comparação com o ano passado inteiro, segundo números da ONG
Sou da Paz (foram 647 mortes provocadas por policiais até o mês passado, contra
407 ocorrências em 2023).
Num dos episódios de ampla repercussão, um policial militar
jogou um jovem de cima de uma ponte - filmado no ato, o PM está preso. Em
outro, um homem que tentava fugir após roubar um mercadinho foi alvejado por 11
tiros pelas costas - o policial, que estava de folga, diz que agiu em legítima
defesa e também foi preso.
"Os policiais de São Paulo se sentem apoiados para
fazer o que fazem", diz Adilson de Souza.
Nesta sexta (6/12), Tarcísio disse ter errado na condução da
segurança pública no Estado e que é preciso conter os excessos nas polícias.
"E a gente comete erro também. Tem hora que tem que parar e pensar. Onde
erramos no discurso?", disse o governador, segundo o jornal Valor
Econômico.
"Se erra no discurso, dá o direcionamento errado e traz consequências erradas. E isso é fácil de perceber hoje", seguiu Tarcísio.
Para Adilson, a guinada de discurso é apenas tática de
"sobrevivência política", e não deve mudar as práticas nos quartéis:
"Abriram as portas do inferno".
Em sua análise, o pesquisador afirma que o apoio à violência
policial vem de todo o espectro político, da esquerda à direita, porque rende
votos.
Ele critica, por exemplo, o apoio do Governo Lula à Lei
Orgânica das Polícias Militares, aprovada no Congresso em 2023 e sancionada
com vetos.
"Você imaginaria que depois que nós saímos de um governo Bolsonaro, esse governo atual se uniria à bancada da bala para aprovar a votação simbólica da Lei Orgânica da Polícia? Eu não", afirma ele, que considera a nova norma ainda pior do que regulamentação anterior, feita durante a ditadura.
Na entrevista abaixo, ele explica porque não está otimista
com o quadro da segurança pública -"Vai piorar"- e elenca algumas
razões -"sem justificar" – para que a polícia seja tão violenta.
"Falta psicologia no estudo na letalidade da violência policial."
Crédito,Crédito
Legenda da foto,Adilson Souza é autor de o Guardião da Cidade: Reflexões sobre casos de violência praticados por policiais militares
BBC News Brasil - Há três casos de violência policial
muito recentes no Estado de São Paulo: o do policial militar que jogou um jovem
de cima de uma ponte, o do estudante de medicina assassinado por outro policial
em um hotel, e o do policial militar que matou com onze tiros um rapaz que
tentou furtar produtos de limpeza de um mercado.
Adilson Souza - Tem mais um. A invasão de
policiais a um velório e a agressão aos familiares.
BBC News Brasil - Esses casos, de alguma maneira, se
conectam?
Adilson Souza - Para mim, é óbvio que esses
casos se conectam. Nós estamos vendo claramente a execução de uma política de
segurança. Uma polícia que muita gente, por muito tempo, pregou, mas sempre com
certos... pudores para executar. Tomando por base o governo do Estado de São
Paulo, tirando [os ex-governadores] Franco Montoro e Mário Covas, os demais
sempre apoiaram uma segurança pública letal. Só que não de maneira populista e
escancarada. Agora, o que nós estamos vendo é que se abriu as porteiras do
inferno. E a mensagem passada aos policiais é "façam, nós damos apoio para
vocês".
Eu não estou aqui acusando ninguém. Mas a naturalidade como
esses policiais agem é assustadora. Eles não estão nem mais preocupados se tem
alguém filmando ou não. Isso quer dizer o quê? Eles se sentem apoiados para
fazer o que fazem.
BBC News Brasil - Isso é reflexo do quê? Tem relação com
o ingresso, nos últimos anos, de agentes da segurança na política? Por que
ficou escancarado assim?
Souza - Esse modelo de segurança baseado na
militarização da polícia e na letalidade não é de hoje. A Polícia Militar como
temos hoje foi criada e 1969, pouco tempo após a edição do AI-5 [decreto
que autorizou uma série de medidas de exceção é um marco do endurecimento da
ditadura no Brasil] . E por que que ela foi criada, militarizada dessa maneira?
Porque as Forças Armadas não tinham efetivo suficiente para se capilarizar na
sociedade, para combater os inimigos. Então eles militarizaram as polícias,
transformaram as polícias em mini-exércitos estaduais, concebidas pra guerra,
pra eliminação do inimigo. Esse modelo persistiu, persistiu durante o processo
de redemocratização.
Ou seja, na sua essência, é a mesma polícia da ditadura.
Esse sistema diz que os policiais foram concebidos para cuidar da sociedade e
combater os inimigos. E quem é o inimigo? É tão abstrata essa definição. Os
relatórios mostram muito bem que são os moradores de áreas periféricas, pessoas
que já têm passagem criminal, pretos, pobres. Você percebe duas polícias,
dependendo do bairro.
Aliás, em 2017, o atual vice-prefeito [eleito, o coronel da
reserva Ricardo Mello de Araújo, na época comandante da Rota] deu uma
declaração dizendo que a polícia faz uma abordagem diferente nos Jardins
[bairro nobre de São Paulo] e na periferia.
Ele escancarou, talvez ele não tenha percebido o que ele
falou. É que foi tão natural que ele nem percebeu. Você vê o quanto que está
enraizado o preconceito, a discriminação, você naturaliza as formas de
condutas. Ele deu cores vivas ao que nós chamamos de racismo estrutural. É
isso, uma seletividade.
Aí começa a ter o suporte populista para eliminação de
pessoas. De políticos percebendo que isso dá voto. Partidos de esquerda e de
direita surfando nessa popularidade nefasta, porque eles estão preocupados com
a eleição. E qual é a aposta deles? Ninguém para para pensar e ver que esse
modelo, desde que foi instituído, não está dando certo.
BBC News Brasil - O senhor tem conversado com colegas que
ainda estão na corporação? Qual o clima neste momento? Há alguma orientação
diferente, na sua visão? Críticos dizem que o fato de o governador Tarcísio não
ter feito críticas contudentes a casos de violência policial no passado pode
ter sido lido como tolerância das condutas...
Souza - Em termos de orientação de conduta para
ser mais letal, mais abusiva? Sim. Não é necessariamente a ideia de chegar e
falar "vai lá, pode matar que eu seguro". Mas "vocês têm meu
apoio".
Quando o governador [Tarcísio de Freitas] falou, eu
"não estou nem aí, pode chamar a ONU, a Liga da Justiça" [em maio
deste ano, após denúncias de abuso policial feitas por entidades dos direitos
humanos à ONU], o que ele falou para o policial? "Parabéns, continue
agindo assim, vocês têm todo o apoio, vocês estão no comando, no caminho
certo".
Quando o secretário da Segurança Pública [Guilherme Derrite]
vem e fala "o policial que não tem três ocorrências com morte não é bom
policial", o que ele está dizendo? "Mate para ser considerado bom
policial".
BBC News Brasil - Mas agora houve uma virada no discurso
oficial. O governador disse nesta semana que um agente que "atira pelas
costas" e "joga de cima da ponte" "não está à altura de
usar essa farda".
Souza - Isso quer dizer apenas uma coisa:
"eu pretendo salvar minha pele politicamente." Pegou mal. Eu tenho
certeza que nos quartéis a discussão está sendo a seguinte: "Como é que
você foi fazer isso deixando se filmar?"
[Essa mudança no discurso significa] sobrevivência política.
Na verdade, as práticas continuam as mesmas. Nós não vamos ver mudanças
efetivas na polícia e na segurança pública. Os governantes acham que têm
controle sobre a vida e a morte.
BBC News Brasil - O governador também lançou recentemente
uma ouvidoria paralela da PM, em que o ouvidor será indicado pelo secretário de
Segurança Pública. A iniciativa foi criticada pela OAB, e o próprio ouvidor
atual, Cláudio da Silva, emitiu uma nota se dizendo surpreso com a resolução.
Souza - Do ponto de vista legal, o secretário
tem autonomia para criar um órgão na estrutura administrativa da secretaria de
Segurança Pública. Contudo, do ponto de vista constitucional, eu acho que ele
está ferindo o princípio da publicidade, da eficiência e o princípio da
moralidade pública, porque se eu já tenho uma ouvidoria, por que eu vou criar
outra? No mínimo, é desperdício de dinheiro público, é improbidade
administrativa. No mínimo.
Essa doutrina de segurança nacional visa a eliminação do
inimigo. Ela necessita de um inimigo. E, além da militarização da polícia, nós
temos a militarização de outros órgãos do sistema de Justiça criminal.
BBC News Brasil - Mas a única solução seria, de fato, a
desmilitarização da polícia?
Souza - Nós temos que desmilitarizar o sistema
de segurança criminal inteiro. Hoje nós temos órgãos constituídos com
superpoderes. E não temos uma instância de cobrança de punição. O nosso sistema
de freios, ele existe no papel, mas na realidade ele não existe, tanto é que
permite o que está acontecendo.
BBC News Brasil - E como fica a cabeça de agentes como o
senhor, que são críticos a esse sistema?
Souza - No começo da minha carreira eu
concordava com tudo isso. Aí eu tive algumas decepções dentro da polícia. Então
eu comecei a estudar. E tem uma questão que foi me chamando muito a atenção, o
adoecimento mental dos policiais. E isso é negado. Se você disser que vai no
psicólogo, você é covarde, o grupo te queima. É uma dualidade horrível, é uma
pressão, e aí, a letalidade, ela pode ser também uma expressão de um mecanismo
de defesa. E eu não estou aqui justificando. Estou tentando escutar.
O policial não vê o A, B ou C. Ele vê o inimigo. Existe um
trabalho de despersonalização do sujeito. E aí, de repente, ele está projetando
o sofrimento dele no outro. Então, ele elimina o A, o B, o C, mas ele está
querendo eliminar o sofrimento. Só que não vai conseguir, por isso que ele mata
toda semana. Eu tenho relatos de policiais que falam que se não matassem em uma
semana, passavam mal.
Nós temos uma inflação egóica. Uma alta demanda, uma pressão
da sociedade. Você pega isso, põe no liquidificador, põe na cabeça do policial
e ele fala "caramba, eu tenho que dar uma resposta". Falta psicologia
no estudo na letalidade da violência policial.
BBC News Brasil - É difícil pensar em olhar para um
cenário diferente, então.
Souza - É. E vai piorar. Nós estamos em uma
velocidade inercial de extermínio. Você conseguiria imaginar que a polícia
invadiria o velório de alguém que foi morto pela polícia? Você conseguiria
imaginar que uma criança de quatro anos seria morta com um tiro de fuzil e
nenhuma desculpa seria dada depois? Você conseguiria imaginar que, diante desse
cenário, um governo de esquerda ficaria silêncio? O silêncio do governo Lula
diz muito.
Você imaginaria que depois que nós saímos de um governo Bolsonaro, esse governo atual se uniria à bancada da bala para aprovar a votação simbólica da Lei Orgânica das Polícias [Militares]?Eu não. Então, são tantos absurdos que mostram que, não importa a ideologia, tem que militarizar e eliminar o inimigo. Só que ninguém desenhou quem é o inimigo, né? O inimigo pode ser qualquer um.
BBC News Brasil - Por que o senhor considera a nova lei
das polícias ruim? Por que crê que o governo Lula a apoiou?
Souza - A Lei Orgânica das Polícias Militares é ruim porque ela consegue ser pior que o decreto de 1969, criado e editado durante a ditadura, que criou a Polícia Militar e explico porquê. Ela diz que vai tornar a polícia democrática, mas isso não é verdade. Ela ampliou a militarização da Polícia Militar e reduziu o controle da sociedade. Por que acontece essa lei? Ela foi aprovada por acordo, não foi discutida. A votação simbólica no Senado acontece na mesma noite em que foi votada a reforma tributária. Então é evidente que o governo Lula negociou a segurança pública para ter ganhos na reforma tributária. As consequências são imediatas e se estendem no tempo, porque a mensagem clara passada para as polícias é vocês têm autonomia. A atuação de vocês é prestigiada também pelo governo federal.
Blog do Paixão