Resultado da votação deste domingo indica que a voz das ruas se sobrepôs à tentativa do Planalto de cooptar parlamentares em negociações conduzidas por Lula. Agora, caberá ao Senado definir se a presidente permanece no cargo
Por: Laryssa Borges, Marcela Mattos e Felipe Frazão, de Brasília
A
presidente do Brasil, Dilma Rousseff, no Palácio do Planalto, em Brasília (DF)
- 01/04/2016(Adriano Machado/Reuters)
Há um tempo para tudo debaixo do céu, e este domingo trouxe o tempo de
Dilma Vana Rousseff e seu partido, o PT, se haverem com as consequências da
crise econômica e política que semearam. Às 23h07, com o voto de Bruno Araújo
(PSDB-PE), formou-se a maioria de 342 deputados necessária para que o processo
de impeachment que tramitava na Casa siga para o Senado, onde Dilma poderá ser
julgada por crime de responsabilidade - o placar final ficou em 367 votos
contrários à petista e 137 contra o impeachment. Houve ainda 7 abstenções e
duas faltas. A votação foi encerrada já perto da meia-noite. Quarta presidente eleita
desde a Constituição de 1988, a petista agora faz dupla com Fernando Collor de
Mello, que enfrentou, em 1992, o mesmo ritual de impedimento.
Chorando, Araújo proferiu seu voto já em clima de festa no plenário.
"Que honra o destino meu reservou: da minha voz sairá o grito de mudança
dos brasileiros". Ao terminar seu voto, o tucano saiu carregado pelos
colegas de oposição. A Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios também
explodiram em celebrações - ao menos, é claro, o lado do muro reservado aos manifestantes
pró-impeachment. Do outro, um misto de tristeza, resignação e um discurso que
afirmava que "a luta não terminou". O ânimo dos manifestantes de
esquerda, contudo, já parecia ter se esgotado. Nas ruas, cada voto foi
acompanhado como uma decisão por pênaltis numa partida de futebol: a tensão era
logo substituída pela alegria, ou raiva.
Dilma e o PT insistem em dizer que a democracia brasileira sofre um
golpe, e que seu impeachment representará uma ruptura institucional. Mas a
votação de hoje está imune a qualquer questionamento. O governo teve ampla
oportunidade de atacar na Justiça todos os aspectos da tramitação do processo
de impeachment na Câmara. Seus argumentos foram analisados pelo Supremo
Tribunal Federal, acolhidos em alguns casos, rejeitados na maioria. Disso
resultou um rito que já não pode ser questionado. Mais importante, o
impeachment requer a maioria de dois terços do plenário da Câmara justamente
para garantir que não paire nenhuma dúvida sobre uma decisão de tamanha
gravidade. Cabia ao governo a tarefa mais "fácil": a de obter o apoio
de 172 parlamentares. O fato de que não foi capaz de fazê-lo atesta o grau de
aversão a Dilma. E não foi pouco o que ela ofereceu para cooptar parlamentares.
Ou melhor: o que Lula ofereceu. O ex-presidente, um político infinitamente mais
hábil que sua pupila e sucessora, transformou um hotel de Brasília em bunker
anti-impeachment. Às vésperas da votação, o Diário Oficial registrava
nada menos que 26 nomeações feitas como consequência do frenético loteamento de
cargos promovido pelo governo. Mas nem isso bastou. Pesou mais o sentimento
registrado pelas pesquisas de opinião, que mostram que mais de 60% dos
brasileiros desejam que Dilma seja apeada o quanto antes de seu lugar no
Planalto.
Numa analogia com o processo penal, a Câmara atua como o Ministério
Público na tramitação do impeachment: observa se existem indícios de crime e
oferece uma denúncia. Cabe ao Senado o papel de julgador. É lá que a denúncia é
aceita ou rejeitada numa primeira comissão. Se for aceita em decisão
referendada pelo plenário, Dilma tem de se afastar do cargo e o mérito da
acusação deve ser avaliado em até 180 dias. Para que perca o mandato em
definitivo, é preciso que 54 dos 81 senadores julguem que ela é culpada de
crime de responsabilidade - mais uma vez, uma maioria de dois terços. Dilma,
obviamente, repetiu reiteradas vezes que não cometeu crime algum. Mas o
relatório do deputado Jovair Arantes, defendendo o contrário, é uma peça
poderosa. Pedaladas fiscais e outros atentados à ordem orçamentária da
República - os crimes de que Dilma é acusada - não representam, nas palavras de
Arantes, "atos de menor gravidade ou mero tecnicismo contábil". Eles
são, pelo contrário, "gravíssimos e sistemáticos atentados à Constituição
Federal, em diversos princípios estruturantes do Estado de Direito, mais
precisamente a separação de Poderes, o controle parlamentar das finanças
públicas, a responsabilidade e equilíbrio fiscal, o planejamento e a
transparência das contas do governo, a boa gestão do dinheiro público e o
respeito às leis orçamentárias e à probidade administrativa."
Se a presidente sofrer impeachment por crimes orçamentários, a mensagem
será poderosa. A noção de que os governantes não recebem carta branca para
realizar seus planos de governo a qualquer custo, quando ganham uma eleição,
talvez fique inscrita com fogo na ordem pública brasileira. Mas o fato é que o
embasamento jurídico é apenas um requisito do processo de impeachment. Esse
processo, na essência, é político. E no campo da política, Dilma se
autoinfligiu todos os danos. A corrosão de seu capital começou na campanha de
2014, quando ela mentiu aos eleitores sobre a necessidade de consertos na
economia. Seu segundo mandato começou com ajustes de tarifas que ela prometera
não fazer e um aumento da inflação que ela jurou que não viria. Mês a mês a
economia foi se mostrando mais frágil - e em paralelo caíam os índices de
aprovação de Dilma. Somem-se a crise economica e o declinio de seu prestígio à
incapacidade da presidente e de seus assessores mais próximos de fazer com
habilidade o jogo da articulação política, e estão dadas as condições objetivas
para o desastre.
A presidente não soube, em particular, lidar com o PMDB, e acabou
transformando seu principal sócio na coalizão governista em um ninho de
inimigos figadais - o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o vice-presidente
Michel Temer, à frente. O fato de que muitos peemedebistas são alvos graúdos da
Operação Lava Jato - Cunha em particular - em nada desculpa os erros de Dilma,
nem elimina o fato de que, para governar, ela precisava saber manter sob
controle o PMDB, ou substituí-lo em sua base. Dilma não soube fazer nenhuma das
duas coisas. Na verdade, suas tentativas inábeis de fortalecer legendas como o
PSD em detrimento do PMDB só fizeram acirrar os ânimos. Nem mesmo o apoio do
partido de Gilberto Kassab, até outro dia ministro das Cidades, ela conseguiu
na votação do impeachment: a maioria dos parlamentares do PSD votou pelo
seguimento do processo neste domingo.
Do outro lado, estava um vice que circula pelo Congresso com particular
habilidade. E soube aproveitar a tendência anti-Dilma. Michel Temer adiantou os
vetores de seu mandato num áudio espalhado pouco antes da votação pela
continuidade do processo na comissão do impeachment, na última segunda-feira.
Proposital ou não, o vazamento pode ter detido um ou outro
"indeciso", pronto a ser seduzido pelas ofertas de cargos que o
governo fazia a granel.
A partir desta segunda-feira, serão 31 dias até que o presidente do
Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) agende a data para a resolução do processo
que pode encerrar antecipadamente o governo Dilma - e a era dos governos
petistas. Em Brasília, existe a máxima de que a Câmara é a voz do povo, pois
expressa os votos de todos os rincões. Mas é o Senado da República quem ditará
os dias futuros.
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