Número de assassinatos no Brasil já supera o registrado em zonas de
guerra: são seis homicídios por hora no País. Até quando a sociedade será refém
da barbárie?
PROTESTO Na
segunda-feira 27, policiais se manifestam em frente ao desembarque
internacional do aeroporto do Galeão (RJ) (Crédito: Gabriel de Paiva/Agência O
Globo)
Eliane Lobato,
Fabíola Perez, Raul Montenegro
DESOLAÇÃO Renato Palhares chora a
perda da médica Gisele, 34, sua mulher (no detalhe); ela foi atingida por dois
tiros na cabeça durante assalto no Rio (Crédito:Fabiano Rocha / Extra / Ag O
Globo)
Gisele Palhares
Gouvêa, médica, 34 anos. Waldik Gabriel Silva Chagas, 11 anos. Julio César
Alves Espinoza, estudante universitário, 24 anos. Robert Pedro da Silva Rosa,
15 anos. Denilson Theodoro de Souza, 49 anos, segurança do prefeito do Rio de
Janeiro. Guerino Solfa Neto, delegado, 43 anos.
Nomes que ganharam ampla
cobertura midiática na semana passada, mas são apenas o início de uma longa
lista, que não caberia completa nas páginas de ISTOÉ: a de pessoas assassinadas
no Brasil. São inacreditáveis 160 vidas perdidas no País todos os dias. A
relação dessas tragédias cotidianas começa pelo assassinato da dermatologista
Gisele, morta com dois tiros na cabeça no sábado 25, enquanto fazia o trajeto
entre o serviço comunitário num hospital do subúrbio carioca e sua casa. Passa
pelo menino Waldik, 11, assassinado por um tiro disparado por um Guarda Civil
Metropolitano (GCM) enquanto estava no banco de trás de um carro, na Zona Leste
de São Paulo. E culmina com a execução, pelas mãos da polícia, do estudante
Julio César, que teve o carro alvejado com 16 tiros durante uma perseguição, na
terça-feira 28, preocupado por estar com excesso de multas. Porém, o cenário de
guerra que se tornou o território nacional não termina com essas trágicas
históricas, como confirmam as estatísticas. A violência está cada vez mais
banalizada e o brasileiro parece ter se acostumado à barbárie imposta pela
ausência de políticas públicas eficientes. “O problema é essa Faixa de Gaza que
a gente tem aqui no Rio de Janeiro”, disse o cirurgião plástico Renato
Palhares, marido de Gisele, no funeral da esposa, na segunda-feira 27. A frase
poderia se referir a qualquer lugar do País.
O Brasil hoje
protagoniza uma realidade nefasta – é líder mundial em número de homicídios.
São 58 mil assassinatos registrados em 2014, índice seis vezes superior à média
global. Para se ter ideia da magnitude do problema, basta dizer que o País
responde por 10% dos casos do planeta. As estatísticas brasileiras superam
nações assoladas por guerras, como Israel, Iraque, Afeganistão e Paquistão. Um
estudo realizado pelo Instituto Igarapé revelou que países da América Latina
são os mais violentos. “Embora muitas nações vivam conflitos prolongados, a
escalada da violência nessas regiões é de tirar o fôlego”, diz Robert Muggah,
diretor de pesquisa da organização. Uma em quatro pessoas assassinadas em todo
o mundo é brasileira, colombiana ou venezuelana. E as perspectivas são as
piores possíveis. “Aqui é a única parte do globo onde as taxas de homicídios
estão crescendo.” No Brasil, as regiões mais críticas são Norte e Nordeste,
onde a violência só aumenta – correspondem a 52% dos casos de homicídios do
País. “Nesses locais começou a circular mais dinheiro e o crime organizado se
instaurou, a ponto de ter disputa entre facções”, diz Renato Sérgio de Lima,
vice-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os altos índices de
desigualdade, concentração de pobreza, impunidade, o acelerado processo de
urbanização, o tráfico de drogas e a repressão policial fizeram a violência
disparar no Brasil. Para piorar, em apenas 8% dos casos os responsáveis vão
para trás das grades.
PERDÃO O menino Waldick, 11, (no
detalhe), morto pelo guarda Caio Muratori, em SP. O agente diz que não sabia
que era uma criança e que errou a mira ao atingi-la – CLIQUE PARA AUMENTAR
(Crédito:NILTON FUKUDA/ESTADÃO CONTEÚDO)
Mas como chegamos
até aqui? E por que ficamos indiferentes a essas zonas de guerra em que se
transformaram nossas cidades? As respostas passam pelo alto número de
homicídios em nossas ruas. A quantidade de corpos expostos nas calçadas parece
anestesiar qualquer sentido. Mas esse não é o único fator. Professor de ética e
filosofia política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP),
Antonio Valverde afirma que tanto violência quanto sociabilidade fazem parte da
natureza humana. “O problema é quando o lado animal fica mais exposto do que o
racional.” Por exemplo, quando policiais mataram o menino Waldik, que realizava
pequenos assaltos, eles não praticaram justiça, mas vingança. Atropelaram a
face racional do homem em favor da animal. Como uma pesquisa recente
demonstrou, metade dos brasileiros concorda com a frase “bandido bom é bandido
morto”. Por isso, muitos não se sensibilizaram com o assassinato do menor, sem
saber que dados sugerem que a letalidade policial, mesmo quando praticada
contra infratores, aumenta a criminalidade em vez de refreá-la. A cultura brasileira
é extremamente violenta e nos leva a perpetrar comportamentos de fúria. “A
violência é uma linguagem cotidiana do brasileiro, é mentira que somos um povo
cordial”, afirma o especialista em organizações policiais Rafael Alcadipani,
professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Mas a culpa pela
banalização da violência não recai somente sobre a sociedade. Autoridades
municipais, estaduais e federais possuem um enorme dever, mas não fazem nada.
Isso ficou demonstrado quando o guarda civil metropolitano Caio Moratori,
responsável pelo disparo no menino Waldik, na semana passada, afirmou ter
mirado nos pneus do veículo e disse que não sabia que se tratava de uma
criança. O depoimento emocionado não o exime de culpa. Porém, a
responsabilidade maior por tudo isso é da negligência do Estado, que não o
treinou nem o preparou psicologicamente para exercer a atividade policial.
Esses casos são recorrentes e apontam para a falência das políticas públicas de
combate à violência. A poucas semanas da Olimpíada, agentes cariocas pararam
por oito horas em função da falta de água, papel higiênico e até de tinta para
imprimir boletins de ocorrência. “Bem-vindos ao inferno”, escreveram, em
inglês, numa faixa direcionada aos turistas que chegavam ao aeroporto do
Galeão. A ausência de verba é evidente, mas para José Vicente da Silva Filho,
coronel da reserva da Polícia Militar, o principal problema é de gestão. “Não
faltou papel no Rio por causa da crise, mas por falta de planejamento.” Além
disso, há a improdutiva rivalidade entre policiais civis e militares. Porém a
raiz da criminalidade é outra. “A principal razão da criminalidade é a
desigualdade social tremenda”, afirma Humberto Fabretti, advogado criminalista
e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim). “Precisamos
de políticas sociais, não de enfrentamento. Temos que atacar as causas, não os
efeitos.”
Outro problema que
concerne ao Estado é a questão das drogas, responsável por mortes como a da
médica Gisele. Não é difícil concluir que, mesmo indiretamente, o crime é culpa
do tráfico. Afinal, facções dominam a região do acesso da via Dutra à Linha
Vermelha, onde ela foi baleada. O cirurgião plástico Renato Palhares, 38 anos,
viúvo da dermatologista, disse à ISTOÉ que os assassinos não levaram apenas sua
esposa. Levaram o futuro dos dois. “O plano era que ela engravidasse no segundo
semestre.” Com voz baixa, mas firme, disse que nunca será pai de Antonio.
“Seria o nome do nosso filho. Estou destroçado.” Segundo Vera Malaguti,
secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), a violência do Rio
é endêmica e a guerra contra as drogas fracassou. “O que tem acontecido? Mortes
de todos os lados”, diz. O Secretário Estadual de Segurança Pública, José
Mariano Beltrame, admitiu à ISTOÉ que este ano o estado registrou aumento de
criminalidade, ao contrário do que vinha ocorrendo desde 2006. “No ano passado,
fechamos com a taxa de 25,4 homicídios dolosos por 100 mil habitantes.”
(Crédito:Eduardo Zappia e Renato Velasco/Ag.
Istoé)
Outro gargalo da
segurança pública no Brasil é o mercado de armas ilegais. De acordo com a
Polícia Federal, foram roubadas e furtadas 15.617 armas somente em 2015. Além
disso, 10.984 armamentos foram perdidos e extraviados (nesta categoria estão as
apreendidas pela polícia e depois desviadas) no mesmo período. “O Estado falha
no controle das armas”, diz Isabel Figueiredo, ex-diretora da Secretaria
Nacional de Segurança Pública. Elas abastecem o crime organizado e caem nas
mãos de crianças e adolescentes. O caminho percorrido pelo revólver
supostamente utilizado por Ítalo Ferreira de Jesus, 10 anos, outra criança
morta pela PM paulista no início de junho, demonstra como um sistema mais eficiente
de controle de armas poderia ajudar a reduzir a criminalidade. O revólver
Taurus calibre 38 foi roubado em 2005, durante um assalto a vigilantes que
faziam a escolta de um caminhão na rodovia Anhanguera. “A polícia deveria não
só fiscalizar as empresas de segurança, mas analisar continuamente o perfil da
arma apreendida, para conseguir atuar antes que o armamento caia no mercado
ilegal”, diz Bruno Langeani, coordenador de Justiça e Segurança do Instituto
Sou da Paz.
A violência faz o
Brasil gastar R$ 250 bilhões por ano (5,4% do PIB) com segurança, saúde e
potencial produtivo de vidas perdidas, incluindo uma geração de novos
brasileiros. “Existem quadrilhas que arregimentam jovens para integrar
estruturas criminosas, mas a polícia não as investiga”, diz Bruno Paes Manso,
pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(NEV-USP). Essa deficiência alimenta o crime. “O Estado falhou drasticamente,
temos uma segurança pública que foi pensada na época do regime militar, cujo
objetivo é combater o inimigo. Hoje esse inimigo é majoritariamente
representado por pobres, negros e jovens”, afirma Átila Roque, diretor
executivo da Anistia Internacional.
BANAL Homem corre ao lado de cadáver
achado em Copacabana, no Rio. Partes do corpo foram achados ao lado da arena da
Olimpíada para vôlei de praia (Crédito:Sergio Moraes/REUTERS)
Apesar das
estatísticas que assolam o Brasil, é preciso lembrar que existem iniciativas
internacionais que vem reduzindo a criminalidade nas regiões mais violentas do
mundo. Cidades como Nova York mostraram que ações focadas nas áreas mais
violentas podem levar a grande reduções das taxas. “Autoridades da Colômbia,
México e Chile têm investido em transporte público, habitação e no trabalho com
família e jovens em situação de risco”, afirma Muggah, do Igarapé. A cidade de
Medellín, por exemplo, conseguiu reduzir a taxa de homicídio de 380 (por 100
mil habitantes) para 19. Eles adotaram estratégias de mudanças na aplicação das
leis, incentivos para prevenção da violência, implantação de serviços de
inteligência na polícia e monitoramento de dados de crime em tempo real. O
Brasil poderia copiar muitas dessas medidas. Já passou da hora de ganhar essa
guerra.
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