Hoje com 12 anos, Ronei foi
abandonado pelos pais biológicos antes de completar um ano em decorrência dos
problemas de saúde.
Por
Vinícius Lemos, BBC

Solange, que tinha dois empregos, teve de deixar a função na empresa de
home care, para se dedicar aos cuidados com a criança — Foto: Emanoele Daiane
A cortina ilustrada por pequenos ursos está aberta e ilumina o quarto na
residência localizada em Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá (MT).
O sol clareia o cômodo repleto de aparelhos hospitalares que mantêm a vida de
Ronei Gustavo Pires, de 12 anos.
O garoto passa o dia deitado na cama. Um artesanato, pendurado na porta
do lugar, avisa: "aqui dorme um príncipe".
Por meio do olhar, a sua única forma de comunicação com o mundo, Ronei
assiste atento a cada movimentação no quarto. A rotina dele é acompanhada 24
horas por dia pela mãe, a enfermeira Solange Maria Pires, de 56 anos.
Há uma década, eles se encontraram pela primeira vez. O amor que ela que sentiu pelo garoto fez com que o adotasse. A decisão mudou completamente o futuro dos dois.
Ronei nasceu com agenesia do corpo caloso, uma má-formação congênita na
qual a criança não possui a estrutura que conecta os dois hemisférios
cerebrais. Ele também tem neuropatia crônica, possivelmente causada pela falha
na formação do cérebro, que atinge o sistema nervoso e afeta o desenvolvimento
de funções como a postura e os movimentos.
Desde recém-nascido, o garoto tem um quadro grave de convulsões, que
pode ter sido causado pela neuropatia. Aos oito meses de vida, enquanto era
amamentado, ele teve um episódio de broncoaspiração - quando alimentos ou
líquidos são aspirados pelas vias aéreas - e a família biológica, segundo
Solange, demorou para buscar ajuda médica.
O fato prejudicou ainda mais a saúde de Ronei. Com pouco mais de um ano,
ele foi diagnosticado com paralisia cerebral e passou a viver em estado
vegetativo.
Os problemas de saúde fizeram com que o garoto, que nasceu em Cuiabá, fosse abandonado pelos pais biológicos antes de completar um ano. Quando Solange o conheceu, ele vivia em um lar para crianças e adolescentes aptos à adoção, na capital mato-grossense.
Solange, que é divorciada, morava sozinha quando decidiu adotar a
criança. Os outros dois filhos dela, hoje com 33 e 37 anos, eram casados e
haviam se mudado da casa da mãe. Com a adoção do caçula, a enfermeira passou a
dedicar grande parte da vida aos cuidados com o garoto.
"Eu sinto o mesmo amor pelos meus três filhos. Mas sei que me
dedico mais ao Ronei do que me dediquei aos outros dois, porque eles sempre
foram saudáveis, se desenvolveram normalmente e foram saindo das minhas asas.
Já o Ronei, sei que vai estar sempre aqui e sempre vai precisar dos meus
cuidados", diz Solange à BBC News Brasil.
A decisão de adotar o garoto que vive em estado vegetativo causou
espanto entre alguns conhecidos da enfermeira. "Algumas pessoas me
desaconselharam, me disseram para viver uma fase mais tranquila, pois meus
filhos já estavam criados. Mas eu não tive dúvidas de que deveria cuidar do
Ronei. Ele é meu filho, assim como os outros dois que eu pari", declara.
No Brasil, encontrar pais para crianças com alguma doença ou deficiência
é uma difícil missão. Segundo o Cadastro Nacional de Adoção, há 46,1 mil
pretendentes à adoção. Destes, apenas 4.623, pouco mais de 10% do total,
aceitam crianças com deficiência física ou mental.
Ainda de acordo com dados do CNA, conforme levantamento acessado nesta
semana, há 9.550 crianças e adolescentes aptos para adoção. Deste total, 2.452
possuem problemas de saúde.
O encontro de mãe e filho
As internações de Ronei eram constantes desde o nascimento dele, em
cinco de maio de 2007. Depois da piora do quadro de saúde do jovem, após a
broncoaspiração, o garoto foi levado a um lar para crianças, após pedido da
equipe médica que o atendia, pois os profissionais consideraram que ele não
recebia os cuidados adequados da família biológica.
O garoto passou semanas no lar, mas os problemas de saúde pioraram. Ele
teve infecção e foi encaminhado novamente ao hospital, onde passou meses
internado. A Justiça de Mato Grosso acolheu pedido do Ministério Público e
determinou que o Estado custeasse serviços de home care - internação domiciliar
- para a criança.
Era fim de 2008. Solange trabalhava como enfermeira em uma empresa que
prestava serviços de home care. Junto com uma equipe, foi em busca de Ronei,
após a decisão judicial que permitiu ao garoto o direito à internação
domiciliar.

'Não tive dúvidas de que deveria cuidar do Ronei. Ele é meu filho, assim
como os outros dois que eu pari', diz Solange — Foto: Emanoele Daiane
"Fui atrás dele na casa dos pais biológicos e da avó, mas ele não
estava. Me disseram que ele estava no Lar da Criança. Depois, descobri que ele
estava internado no Pronto-Socorro de Cuiabá", diz. Os pais biológicos,
segundo a enfermeira, haviam visitado o garoto poucas vezes no hospital.
Após Ronei receber alta médica, a Justiça determinou que o Estado
pagasse uma casa para a família biológica morar com ele, pois a residência dos
pais era precária e não tinha condições para receber a home care. "A
expectativa era de que os familiares se reaproximassem do Ronei e ajudassem o
tratamento dele, caso fossem para um novo lar", conta a enfermeira.
Ronei passou mal novamente, semanas depois de receber alta, e foi levado
ao Pronto-Socorro, após diversas convulsões. Em estado grave, foi encaminhado
para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). O garoto deixou de respirar
espontaneamente e passou a necessitar do aparelho de ventilação mecânica.
Dias após a internação, a Justiça determinou que ele saísse do hospital
em 24 horas e fosse colocado em uma home care.
O garoto não tinha lugar para ser levado com a internação domiciliar.
Não havia uma definição sobre a casa que poderia ser concedida para a família
dele. No lar de crianças, seriam necessárias adaptações para receber os
equipamentos. Ronei, então, foi levado para um quarto vazio na sede da empresa
de home care. O cômodo foi adaptado e os aparelhos hospitalares foram
instalados no local.
"A gente acreditava que ele passaria semanas no quarto da empresa,
a família se reestrutaria, conseguiria a casa e tudo daria certo", conta
Solange.
A família do garoto foi informada sobre a situação dele. Porém, segundo a enfermeira, os pais o visitaram apenas duas vezes na empresa.
"Foram visitas rápidas, que não duraram 15 minutos", relata
Solange.
Após Ronei passar três meses no quarto, a dona da empresa informou que
ele não poderia permanecer no quarto por mais tempo. "Eles não poderiam
ficar tantos meses assim com uma criança, porque ali era uma empresa",
relembra.
Quando percebeu a incerteza sobre o futuro do garoto, na época com quase
dois anos, Solange decidiu levá-lo para casa. "Falei que pediria a guarda
dele na Justiça e que cuidaria dele, até resolver a questão com a
família."
A Justiça concedeu a guarda provisória de Ronei para a enfermeira. Ela
adaptou o quarto da filha, que havia se casado poucos meses antes, para receber
o garoto e os equipamentos da internação domiciliar - como um tubo de oxigênio
e um aparelho de ventilação mecânica.
Solange, que tinha dois empregos, teve de deixar a função na empresa de
home care, para se dedicar aos cuidados com a criança. Ela continua trabalhando
em um hospital de Cuiabá.
A guarda do garoto
Por um ano, Ronei viveu de modo provisório na casa de Solange. No
período, os pais do garoto o procuraram apenas uma vez.
"Eles foram na empresa de home care, para saber da casa que a
Justiça tinha determinado que conseguissem. Eles foram informados que o filho
estava com uma família, mas nunca me procuraram", conta.
Os pais não conseguiram a residência, pois não eram mais os responsáveis
pela criança.
Solange tem casa própria e não precisou do benefício que havia sido
oferecido aos pais biológicos do garoto.
"Essa residência, que havia sido determinada pela Justiça, é para
as pessoas que não estão em um lugar com condições adequadas para a internação
domiciliar", ressalta a enfermeira.
A última vez em que Solange viu os pais biológicos de Ronei foi no
início de 2010, no Fórum de Cuiabá.
"A juíza me convocou e pensei que os pais queriam a guarda dele. Eu disse a ela que, caso eles quisessem de volta, seria um direito deles. Mesmo que isso me entristecesse, não poderia fazer nada."
"Mas a juíza me disse que os pais falaram que não tinham condições
psicológicas, nem financeiras, para ficar com o Ronei. Eles abriram mão do
filho, disseram que eu poderia criá-lo", conta.
A magistrada explicou a Solange que ela não era obrigada a continuar com
o garoto, caso não quisesse. Se a enfermeira não criasse Ronei, ele seria
levado a um lar para crianças aptas à adoção.
"Não tive dúvidas, disse que o Ronei era meu filho e que ficaria
com ele", diz Solange.
"A juíza me perguntou duas vezes, porque queria que eu tivesse
certeza da responsabilidade que teria pela frente. Novamente, disse que era
aquilo que eu queria. Não iria abrir mão do meu filho", relata a
enfermeira, que recebeu apoio dos dois filhos.
A decisão da mãe de Ronei comoveu a magistrada. "A juíza me disse que nunca tinha chorado, mas chorou naquele momento, porque ficou comovida com o meu caso."
Solange passou pelos procedimentos necessários para conseguir a guarda
definitiva de Ronei - como análise da residência por assistentes sociais e uma
entrevista na qual detalhou sobre a sua rotina. Menos de um mês depois, obteve
a guarda definitiva do filho.
Os procedimentos para adoção de crianças com deficiência ou doença
crônica são mais rápidos que os demais. Em 2014, a prioridade a esses processos
foi estabelecida em texto acrescido à legislação. Anteriormente, tais casos já
eram tidos como prioritários e tinham mais rapidez, por serem considerados
incomuns.
"Essa distinção [nos processos] é fundamental para incentivar as
adoções envolvendo essas crianças. Isso porque ainda há bastante resistência de
famílias inscritas em cadastro nacional para aceitar crianças com deficiência
ou doença crônica", explica a advogada Regina Beatriz Tavares da Silva,
presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões.
Segundo a advogada, o baixo número de interessados em crianças com deficiência
ou doença crônica ocorre em razão da complexidade que envolve os cuidados com
elas. "Isso acaba por suscitar insegurança sobre como essa dificuldade
poderá interferir, modificar ou repercutir em suas vidas."
"Por isso é importante sempre lembrar que a geração de um filho,
que acontece também na adoção, envolve sempre uma experiência de renovação e
aceitação", acrescenta.
'Eu sou a mãe dele'
Grande parte da vida de Ronei se resume à cama do quarto. Ele recebe
ajuda profissional durante todo o dia. A cada 12 horas, um novo técnico de
enfermagem chega para acompanhar o garoto - serviço incluído na home care.
Solange trabalha em um hospital no período da manhã e, por meio do celular,
fica atenta a tudo o que acontece com o filho. "O tempo todo pergunto como
ele está ou peço para mandarem fotos. É uma preocupação constante", diz.
Quando não está no trabalho, a enfermeira tenta se distanciar de Ronei o
mínimo possível.
"Se eu saio, tento voltar rápido. Nas vezes em que viajei, tive que comprar passagens perto da data, porque se ele não estiver bem, não viajo. E não posso ficar dias longe", comenta.
Diariamente, Ronei toma seis anticonvulsivos. Ele se alimenta por meio
de uma sonda. Uma vez por semana, o garoto, que nunca andou ou falou, passa por
acompanhamento com fonoaudiólogo e com fisioterapeuta - serviços incluídos na
home care para auxiliar no desenvolvimento dele.
Todos os meses, Solange recebe um salário mínimo, referente a um
benefício do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), para ajudar nos
cuidados com o filho. Por meio do auxílio, ela busca ajuda médica.
"Gasto boa parte desse dinheiro com consultas para ele, porque tive
de cortar o nosso plano de saúde, pois ficou muito caro. Pelo SUS (Sistema
Único de Saúde), as consultas demoram muito. Então, acabo tendo de recorrer aos
particulares."
Apesar da ajuda profissional, Ronei tem ficado mais debilitado com o
passar dos anos. "Ele está regredindo e atrofiando. As mãos e os pés dele
tinham mais força antes, mas agora está mais fraco. Infelizmente, não há muito
o que ser feito no caso dele", lamenta a mãe.
O neuropediatra Marcos Escobar explica que a neuropatia, como no caso
que acomete Ronei, costuma apresentar sintomas que pioram com o passar dos
anos.
"Muitas vezes, pelo fato de o paciente não conseguir se movimentar
bem e por seus músculos ficarem tensos, os tendões se retraem e encurtam. A
longo prazo, os ossos e as articulações podem se deformar", diz o
especialista, que ressalta que não há cura para a enfermidade.
A falta de esperanças para o futuro do garoto entristece a mãe. Apesar
disso, a enfermeira afirma que não se arrepende de ter passado grande parte da
última década se dedicando aos cuidados com Ronei. "Parei muita coisa por
ele. Mas é normal uma mãe fazer isso por um filho."
"Uma médica me disse que ele viveria somente até os oito anos, mas ele está aqui comigo até hoje. Acho que o que mantém vivo é o amor que ele recebe", diz.
O principal desejo de Solange para o futuro do filho caçula é que ele
tenha qualidade de vida. "Peço a Deus que se for para levar o Ronei, que
não seja nada doloroso. Não quero que ele sofra em um hospital."
"Também peço a Deus para que eu não morra enquanto o Ronei estiver
aqui. Por que quem vai cuidar dele do jeito que cuido? Quem vai dar toda a
atenção? Espero que Deus me atenda. Depois que ele partir, posso ir sossegada.
Mas antes, preciso continuar por aqui."
O garoto, que pouco conhece sobre o mundo fora do quarto, acompanha com
olhos atentos cada declaração da mãe. "Não sabemos até que ponto ele nos
entende, por causa das lesões no cérebro", explica Solange, enquanto
segura a mão esquerda do filho.
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