Discussão sobre a implantação da medida, agora suspensa pelo STF,
começou logo depois da sanção da lei do pacote anticrime. G1 preparou perguntas
e respostas sobre o tema.
Por Fernanda Vivas
e Rosanne D'Agostino, TV Globo e G1 — Brasília

Toffoli adia
implantação do juiz de garantias por seis meses
O presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, suspendeu nesta quarta-feira (15) por 180 dias a aplicação do juiz
de garantias, previsto no pacote anticrime aprovado no Congresso
Nacional.
Desde que a proposta foi sancionada, o tema gerou discussões
entre juristas, advogados, procuradores, magistrados e outros especialistas. As
questões sobre a nova figura a atuar no processo penal giram em torno da
aplicação do instituto:
· se será preciso,
por exemplo, criar mais cargos para atender a demanda nos estados;
· se a medida é
aplicável em todas as instâncias, e
·
se vale para processos já em andamento.
O G1 preparou um texto no formato de perguntas e
respostas com o que se sabe até o momento sobre o juiz de garantias.
O que é o juiz de garantias?
O processo penal no
Brasil passará a contar com a participação do juiz de garantias, um juiz de
direito que, segundo a legislação, estará encarregado do “controle de legalidade da investigação criminal” e da “salvaguarda dos direitos individuais”.
Na prática, este
juiz vai atuar na fase de investigação de crimes, quando forem necessárias
decisões judiciais para procedimentos que vão ajudar a polícia e o Ministério
Público a desenvolver as investigações.
O juiz de garantias
foi instituído pela lei do pacote anticrime, aprovado em dezembro pelo
Congresso Nacional. Para fazer isso, os parlamentares incluíram seis artigos no
Código de Processo Penal, a norma que orienta a tramitação de processos penais
no país.
Em quais situações o juiz de garantias poderá atuar?
A lei estabelece
uma lista de 18 situações em que o juiz de garantias vai
atuar:
· receber a
comunicação imediata da prisão de um suspeito;
· receber o auto da
prisão em flagrante para verificar foram cumpridos os requisitos previstos em
lei para a prisão;
· zelar pela
observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à
sua presença, a qualquer tempo;
· ser informado sobre
a instauração de qualquer investigação criminal;
· decidir sobre o
requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar;
· prorrogar a prisão
provisória ou outra medida cautelar, substituí-las ou revogá-las;
· decidir sobre o
requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e
não-repetíveis (provas que não podem ser produzidas novamente, como um exame de
corpo de delito);
· prorrogar o prazo
de duração do inquérito, estando o investigado preso;
· determinar o
trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para
sua instauração ou prosseguimento;
· requisitar
documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da
investigação;
· decidir sobre os
requerimentos de: pedidos de quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico de
investigados; mandados de busca e apreensão para alvos de apurações; acesso a
informações sigilosas;
· julgar o habeas
corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
· determinar a
instauração de incidente de insanidade mental (instaurado sempre que houver
dúvida sobre a saúde mental do acusado e para verificar se, à época dos atos,
ele era ou não inimputável);
· decidir sobre o
recebimento da denúncia do Ministério Público ou queixa de vítimas;
· permitir ao
investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e
provas produzidos na investigação criminal;
· deferir pedido de
admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;
·
decidir sobre a homologação de acordo de não-persecução penal ou os de
colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;
Na última hipótese,
o texto da lei determina que o juiz de garantias vai atuar em "outras
matérias inerentes às atribuições definidas" pelo conceito de juiz de
garantias (atuação no controle de qualidade e na garantia de direitos
individuais).
De acordo com
decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, estas atribuições do juiz de
garantias estão suspensas, o que inviabiliza a entrada em vigor destes pontos.
Este trecho do
texto deixa claro, portanto, que o rol de atribuições do juiz de garantias não
é exaustivo, ou seja, não se esgota no que está estabelecido na letra da lei.
Novas atribuições podem ser reconhecidas, por exemplo, na jurisprudência de
tribunais, na análise de casos concretos.
O juiz de garantias vai atuar na fase de investigação de quais crimes?
Pela lei, a atuação
do juiz de garantias abrange todas as infrações penais,
exceto crimes de menor potencial ofensivo (com penas de até dois anos) e
contravenções penais. E vai ser encerrada com o recebimento da
proposta de ação penal (denúncia ou queixa). Outro magistrado vai tratar do
processo após a ação penal, até a sentença.
Quando deve entrar em vigor o juiz de garantias?
Com a decisão do
presidente Dias Toffoli, a medida está suspensa por 180 dias. A previsão
inicial era de que a medida começaria a valer no dia 23 de janeiro, quando
também entra em vigor a lei do pacote anticrime, com mudanças na legislação
penal e processual penal.
A polêmica do juiz de garantias
Como será implantado o juiz de garantias?
Toffoli prorrogou o
prazo do grupo de trabalho que estuda formas de implantação da medida. Deste
grupo, deverá sair um estudo sugerindo propostas de concretização da
determinação. O presidente sinalizou que a implantação deverá ser gradativa.
A lei, em si, cita
a questão da forma como será implantado o juiz de garantias - mas não traz
detalhes. A nova regra diz que, nas "comarcas em que funcionar apenas um
juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados". Mas
especialistas, advogados, procuradores, juízes e juristas têm dúvidas de como
será implantado esse rodízio.
Em outro trecho, a
norma afirma que o "juiz das garantias será designado conforme as normas
de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal,
observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo
respectivo tribunal".
As normas de
organização judiciária são aquelas que detalham a estrutura e o funcionamento
dos órgãos do Poder Judiciário. São definidas em leis estaduais e em regimentos
internos de tribunais.
Quantas ações tramitam no Supremo Tribunal Federal sobre o tema?
Até o momento, três
ações contestam o juiz de garantias no STF: a primeira foi apresentada
pela Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) e da Asssociação dos
Juízes Federais do Brasil (Ajufe); a segunda, pelos partidos Podemos e Cidadania; e a terceira pelo
Partido Social Liberal.
A decisão do
ministro, em caráter liminar, atendeu aos pedidos das três, no sentido de que
fosse suspensa a entrada em vigor da medida. O plenário do STF vai analisar
ainda o mérito (conteúdo) das ações, em julgamento com data ainda a ser
definida.
Quais os principais pontos da medida considerados inconstitucionais
pelas ações apresentadas ao STF?
As três ações no
STF especificam os pontos que consideram inconstitucionais na implantação da
figura do juiz de garantias. São elas:
·
Vício de iniciativa: a criação do juiz
de garantias deveria ocorrer por proposta de lei de iniciativa dos tribunais, e
não dos parlamentares. Ou seja, não houve respeito ao processo legislativo
previsto na Constituição;
·
Violação do princípio do juiz natural: o princípio do
juiz natural, previsto na Constituição, prevê que "ninguém será processado
nem sentenciado senão pela autoridade competente".
Ou seja, é uma garantia a quem é processado em uma ação penal de que seu caso será analisado por um juiz cuja competência para atuar no seu processo foi estabelecida previamente em lei. A intenção é evitar que, para um determinado processo, as partes possam escolher ou excluir determinado magistrado.
Ou seja, é uma garantia a quem é processado em uma ação penal de que seu caso será analisado por um juiz cuja competência para atuar no seu processo foi estabelecida previamente em lei. A intenção é evitar que, para um determinado processo, as partes possam escolher ou excluir determinado magistrado.
·
Violação do princípio da igualdade: o entendimento,
neste ponto, é de que, como o juiz de garantias não será aplicado a ações nos
TJs, TRFs, STF e STJ, haverá uma diferença de tratamento para processos na
primeira instância e em procedimentos iniciados em outras instâncias.
A ação da AMB e da Ajufe exemplifica: ”Um Deputado Federal, detentor da prerrogativa de foro, que estiver sendo investigado perante esse STF por crime praticado no exercício da função e em razão da função, não terá direito ao Juiz das Garantias, mas esse mesmo Deputado Federal, estando sendo investigado por qualquer outro crime perante a 1ª instância, fará jus ao juiz das garantias”
·
Criação de despesas sem a fonte de custeio
prevista: a criação do juiz de garantias, na avaliação das ações
apresentadas ao STF, vai implicar em aumento de custos. Com isso, há uma
violação ao artigo da Constituição que estabelece que qualquer criação de
cargos e novas despesas deve ter, previamente, a indicação da fonte dos
recursos para custeio e autorização na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
·
Retroatividade da lei processual penal: segundo o
Código de Processo Penal, a lei processual penal tem aplicação imediata. Há a
avaliação, no entanto, de que pode haver uma aplicação retroativa indevida da
lei, se a lei incidir em casos em tramitação. Nesta situação, o juiz que atua
no processo já em andamento poderá ser impedido de atuar na fase posterior,
após o início da ação penal.
·
Violação do princípio da proporcionalidade: a violação
ocorreria por conta do prazo de 30 dias para a entrada em vigor do juiz de
garantias. O prazo é menor que os seis meses para a entrada em vigor, se
aprovado, do novo Código de Processo Penal.
·
Violação do princípio da duração razoável do
processo: há ofensa ao princípio da duração razoável do processo, defendem as
ações, porque o juiz responsável pela ação penal não vai acompanhar o
desenvolvimento das investigações, o que pode ocasionar um julgamento mais
tardio.
·
O que disse quem defende a lei?
A Ordem dos
Advogados do Brasil defendeu a lei em manifestação ao STF. A OAB
considerou que o juiz de garantias "não viola qualquer dispositivo
constitucional, em não se tratando da criação de um novo órgão do Poder
Judiciário Nacional, diversamente do que aponta a petição inicial".
A OAB acrescentou:
"Eventuais problemas ou dificuldades práticas de implementação do juiz de
garantia não torna a regra inconstitucional e são plenamente solucionáveis em
um curto período, desde que haja vontade na necessária – e já tardia -
implementação do juiz de garantias".
Em manifestação ao
Conselho Nacional de Justiça, a Defensoria Pública da União (DPU) afirmou:
"A separação entre juízo das garantias e juízo processante (juicio oral) ainda impede a contaminação do órgão
julgador do mérito por elementos investigativos dos quais não pode nem deve ter
conhecimento."
"Esse
incremento técnico não decorre da desconfiança em relação à pessoa do juiz, mas
do esclarecimento jurídico-científico segundo o qual a imparcialidade não é um
atributo subjetivo ou personalíssimo do julgador, mas uma equidistância
argumentativo-contraditorial que o terceiro desinteressado, por isso legítimo
decisor, precisa manter em relação aos interessados (partes) no caso",
prossegue a DPU.
Vale para ações que começam a tramitação já em tribunais como TJs, TRFs,
STJ e STF?
Esta pergunta ainda
não conta com uma resposta definitiva. Até o momento, com a decisão do ministro
Dias Toffoli, o juiz de garantias não será aplicado nestes casos. Mas o tema
deverá ser analisado pelo plenário do STF.
Em sua decisão,
Toffoli considerou que a lei não faz uma revogação expressa ou tácita da lei de
1990 que estabelece procedimentos específicos para as ações penais que já
começam a sua tramitação no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo
Tribunal Federal (STF).
Estas ações
correspondem a processos de autoridades com foro privilegiado. Os procedimentos
desta norma, inicialmente restritos ao STF e STJ, foram estendidos às ações que
já começam a tramitação em tribunais de Justiça e tribunais regionais federais.
Vale para procedimentos do tribunal do júri e crimes da Lei Maria da
Penha?
Esta pergunta
também não tem uma resposta definitiva, mas já há a decisão liminar do
presidente Dias Toffoli suspendendo a aplicação da lei para os crimes
processados em procedimentos específicos, como no Tribunal do Júri e nos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Pela Constituição,
o tribunal do júri julga os chamados crimes dolosos contra a vida - o mais
conhecido é o homicídio. Já a Lei Maria da Penha deu a competência aos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o processo, julgamento e
execução de causas cíveis e criminais relacionadas à violência doméstica contra
a mulher.
Como será implantada a medida nas comarcas com um juiz?
Na decisão que
suspendeu a aplicação do juiz de garantias, o presidente Dias Toffoli informou
que suspendeu, por tempo indeterminado, o ponto da lei que estabelece um
rodízio no caso de comarcas com apenas um juiz. Toffoli entendeu que este
dispositivo usurpa o poder de auto-organização dos tribunais.
Assim que foi
sancionada a lei, associações de juízes, procuradores, além de juristas e
especialistas apontaram questionamentos sobre o funcionamento do juiz de
garantias em comarcas com um juiz. A lei estabelece que, nestas situações, será
feito um rodízio - mas não traz outros detalhes. As instituições que enviaram
informações ao CNJ enfrentaram a questão, apresentando sugestões para o tema.
Na instalação do
grupo de trabalho para análise da implantação do juiz de garantias, o
coordenador do grupo, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Humberto
Martins, apresentou dados sobre a estrutura da primeira instância no país.
"Na justiça
estadual, cerca de 21,4% do total dos processos em tramitação na fase de
conhecimento [inicial] são criminais. Na justiça federal, esse número é de
cerca de 3,8%. Além disso, em ambos os segmentos, as varas únicas representam
quase 20% do total das unidades judiciárias e correspondem a 60% do total de
localidades. Esses números mostram bem a dimensão da tarefa que é estruturar o
juízo das garantias em todo o território nacional", disse.
O grupo de trabalho
do CNJ está elaborando um estudo sobre as formas de implantação do juiz de
garantias nas comarcas com um juiz. Este estudo deve orientar a implantação da
medida nos tribunais. O tema também deve voltar a ser discutido quando o
Supremo Tribunal Federal discutir o mérito das ações que questionam a
constitucionalidade da medida.
O juiz de garantias vale para processos em andamento ou só para novos
casos?
Outra pergunta para
a qual não há uma resposta definitiva, mas para a qual já há decisão liminar.
Toffoli estabeleceu uma transição, separando casos em fase de investigação e
casos que já se transformaram em ação penal.
Na primeira
situação, quando o juiz de garantias entrar em vigor, o juiz que está decidindo
medidas na investigação vai se transformar em juiz de garantias. Quando a
denúncia foi recebida, ou seja, um processo for aberto, o caso será enviado o
outro juiz.
Na segunda
situação, quando a medida entrar em vigor, o juiz continuará o mesmo, e não
poderá ser declarado seu impedimento.
O Congresso já discutiu, em ocasiões anteriores, a possibilidade de
criação de juiz de garantias?
Sim. O tema foi
levantado, por exemplo, quando o Senado discutiu a proposta de novo Código de
Processo Penal. O projeto foi aprovado em 2010 pelo Senado e seguiu em 2011
para Câmara. O texto do Senado de 2009 tem semelhanças com o texto aprovado em
2019 na Câmara. Em 2010, durante a tramitação do projeto no Senado, o CNJ chegou a divulgar nota técnica com críticas à medida.
"A
consolidação dessa ideia, sob o aspecto operacional, mostra-se incompatível com
a atual estrutura das justiças estadual e federal", afirmou o conselho na
ocasião. "Ademais, diante de tais dificuldades, com a eventual
implementação de tal medida haverá riscos ao atendimento do princípio da
razoável duração do processo, a par de um perigo iminente de prescrição de
muitas ações penais".
O Congresso pode mudar a lei do juiz de garantias?
As ações que
contestam o juiz de garantias no STF apontam que, pela Constituição, é preciso
lei de iniciativa dos tribunais para alteração de leis que tratam da estrutura
judiciária. Ou seja, estas ações consideram que não caberia ao Congresso a
iniciativa de lei para a criação e instituição do juiz de garantias. O STF também
deve se debruçar sobre o tema, ou seja, deve debater a quem cabe a iniciativa
deste tipo de projeto.
De qualquer forma,
a discussão pode voltar a ocorrer na Câmara, no âmbito da comissão especial que
analisa o novo Código de Processo Penal, proposta vinda do Senado. Projetos
pontuais de deputados e senadores também podem surgir, na esteira da polêmica
sobre o juiz de garantias.
O modelo do juiz de garantias já é adotado no Brasil e em outros países?
Defensores do juiz
de garantias lembram que o Departamento de Inquéritos Policiais, na Justiça de
São Paulo, como um modelo próximo ao juiz de garantias. Já a AMB e a Ajufe
discordam, por entenderem que os modelos do Dipo e da lei aprovada são
diferentes.
Na decisão
provisória, Dias Toffoli cita que o juiz de garantias "é instituto que
corrobora os mais avançados parâmetros internacionais relativos às garantias do
processo penal, tanto que diversos países já o adotam – a exemplo da Itália,
Portugal, Chile e Argentina –, não sendo uma novidade no cenário do direito
comparado".
Há impacto financeiro na implantação da medida?
Na votação na
Câmara, o relator Lafayette Andrada (Republicanos-MG) votou pela adequação
financeira e orçamentária da proposta - não mencionou, em seu parecer, a
possibilidade de custos com a medida. No entanto, logo depois da sanção da
matéria, especialistas citaram a possibilidade de que a medida implique em mais
custos, por que pode criar demanda por mais cargos de juízes de Direito.
Um dos pontos
citados pelas ações que questionam o tema no STF é justamente a possibilidade
de criação de novas despesas para os estados que não estão previstas na lei
orçamentária.
O presidente Dias
Toffoli declarou, ao anunciar a decisão, que a questão passa mais por gestão
judiciária e menos criação e provimento de cargos.
Qual impacto no tempo de tramitação dos processos?
Não há uma
estimativa na lei sobre este efeito. Ajufe e AMB, autoras de uma das ações no
STF, ressaltaram que "dificilmente os inquéritos chegarão a um bom termo,
em prazo razoável", por não haver juízes em número suficiente para atender
a demanda.
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