Nos
80 anos de Roberto Carlos, um pouco um tanto inusitado para um momento tão
especial para a Música Popular Brasileira, resolvemos contar uma história que
até hoje tem os seus mistérios ocultos.
Foto: Reprodução
S |
empre tive curiosidade acerca desse boato sobre a suposta “perna
mecânica”, em Roberto Carlos. Nenhum preconceito em relação a isso, mas o fato
é que o assunto me intrigava. Eu, que em minha juventude era um fã declarado do
artista, embora tivesse essa curiosidade, nunca tive maiores informações sobre
o assunto. Como se tratasse de um boato acerca de uma personagem que se tornou
mito, cheguei a cogitar que o caso fosse uma lenda.
Certa ocasião, pesquisando sobre o tema, pude ter acesso a uma foto na
internet, na qual se via o “rei” de bermuda, deixando uma prótese de metal
exposta. Mas no fim, as imagens se comprovaram falsas, se tratando apenas de um
trote bem elaborado pelos amantes do photoshop.
Muitos fotógrafos teriam a “sorte grande”, caso conseguissem capturar
essa imagem. Mas pelo que me consta, a foto mais cobiçada do cantor ainda não
foi tirada, e se acaso foi, jamais foi exposta. Aliás, uma regra de ouro para
os donos da mídia é nunca ofender os ícones. E diga-se de passagem, Roberto
Carlos nunca toca no assunto, quando entrevistado.
Mas prevaleceu a dúvida: Roberto Carlos teria ou não teria uma prótese
na perna? Se tivesse, qual perna seria: direita ou esquerda? Seria a perna
toda, ou apenas parte dela?.
A dúvida permanecia insolúvel até recentemente, com as disputas entre
Roberto Carlos e o escritor Paulo Cesar de Araújo acerca do livro “Roberto
Carlos em Detalhes". Paulo Cesar teria passado 16 anos pesquisando a vida
do “rei” a fim de escrever uma biografia detalhada. Mas na sua busca de
“detalhes”, Paulo Cesar esqueceu um pequeno, mas talvez o mais importante de
todos: não pediu permissão ao “rei” para descrevê-lo. Roberto não gostou. E
como a realeza é quem manda, e a plebe é quem obedece, em 2009 o Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, a pedido de Roberto Carlos, proibiu a edição e
publicação do livro. Roberto teria alegado “invasão de privacidade”. Não se
tira a razão do “rei”, mas foi de fato uma perda para os admiradores, que nunca
tiveram em mão uma biografia do maior astro da música brasileira. Muitos,
talvez, morreram esperando por isso.
Mas o fato é que “detalhes” como esses não escapam à curiosidade dos
admiradores do cantor, e por isso, o livro proibido (ou partes dele) chegou às
mãos de alguns fãs que o dispuseram para os curiosos, e pode ser acessado na
internet. Recentemente, pude ter contato com um capítulo do livro, que
solucionou definitivamente a minha dúvida sobre o mito da perna postiça do
“rei”.
Manhã de 29 de Junho de 1947
O capítulo citado é todo voltado para a fatídica manhã do dia 29 de
junho de 1947, dia de São Pedro. Nesse ano, Roberto tinha somente seis anos de
idade, e morava em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade natal, quando teve sua
perna direita dilacerada por um trem em movimento.
Os “detalhes” do fato, só mesmo o historiador pode dar. E deixo, quase
na íntegra, o capítulo à disposição, para os que são, como eu, não apenas
admiradores do “rei”, como também àqueles que mesmo que por um momento, já
sentiram curiosidade pelo assunto.
“Naquele dia, Cachoeiro amanheceu sorrindo e em festa para saudar o seu
santo padroeiro que, segundo a Igreja Católica, foi morto e crucificado nessa
data em Roma, durante o reinado do imperador Nero, no ano 65 d. C. Era feriado
na cidade, dia de desfiles, músicas, bandeiras, discursos, ruas cheias de gente
e muita alegria...
Como tantas outras crianças da cidade, naquele dia Roberto Carlos saiu
cedo e animado de casa para assistir aos festejos. Era tanta badalação que
muitos pais preparavam roupa nova para os filhos estrearem justamente nesse
dia. Por isso Zunga (como Roberto era chamado na infância) estava ainda mais
contente, porque iria desfilar com os sapatinhos novos que ganhara na véspera.
E qual criança não fica feliz ao ganhar uma roupinha ou um novo par de sapatos?
Logo que saiu à porta de casa, Roberto Carlos se encontrou com sua amiga Eunice
Solino, uma menina da sua idade, que ele carinhosamente chamava de Fifinha.
Pois naquela manhã os dois desceram mais uma vez juntos em direção ao
local dos desfiles. Ao chegarem num largo, logo abaixo da rua em que moravam,
já encontraram todos em plena euforia. Desfiles escolares, balizas e muitos
balões coloriam o céu do pequeno Cachoeiro, ao mesmo tempo em que locomotivas
se movimentavam para lá e para cá. Construída na época dos barões do café, no
século XIX, quando a cidade era um paradouro de trem de carga, a Estrada de
Ferro Leopoldina Railways atravessava Cachoeiro de ponta a ponta.
Por volta de nove e meia da manhã, Zunga e Fifinha pararam numa beirada
entre a rua e a linha férrea para ver o desfile de um grupo escolar. Enquanto
isso, atrás deles, uma velha locomotiva a vapor, conduzida pelo maquinista
Walter Sabino, começou a fazer uma manobra relativamente lenta para pegar o
outro trilho e seguir viagem. Uma das professoras que acompanhava os alunos no
desfile temeu pela segurança daquelas duas crianças próximas do trem em
movimento e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a
professora avançou e puxou pelo braço a menina, que caiu sobre a calçada.
Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco de alguém que ele não
conhecia, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundos antes de a
locomotiva passar. A professora ainda gritou desesperadamente para o maquinista
parar o trem, mas não houve tempo. A locomotiva avançou por cima do garoto que
ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as
pesadas rodas de metal. E assim, na tentativa de evitar a tragédia com duas
crianças, aquela professora acabou provocando o acidente com uma delas.
Diante da gritaria e do corre-corre, o maquinista Walter Sabino freou o
trem, evitando consequências ainda mais graves para o menino, que, apesar da
pouca idade, teve sangue-frio bastante para segurar uma alça do limpa-trilhos
que lhe salvou a vida. Uma pequena multidão logo se aglomerou em volta do local
e, enquanto uns foram buscar um macaco para levantar a locomotiva, outros
entravam debaixo do vagão para suspender o tirante do freio que se apoiava
sobre o peito da criança. Com muita dificuldade, ela foi retirada de debaixo da
pesada máquina carregada de minério de ferro. “Eu estava ali deitado, me
esvaindo em sangue”, recordaria Roberto Carlos anos depois numa entrevista. Mas
naquele momento alguém atravessou apressado a multidão barulhenta e tomou as
providências necessárias. “Será uma loucura esperarmos a ambulância”, gritou
Renato Spíndola e Castro, um rapaz moreno e forte, que trabalhava no Banco de
Crédito Real.
Providencialmente, Renato tirou seu paletó de linho branco e com ele deu
um garrote na perna ferida do garoto, estancando a hemorragia. “Até hoje me
lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu
desastre”, afirma Roberto, que desmaiou instantes após ser socorrido. Esse
momento trágico de sua vida ele iria registrar anos depois no verso de sua
canção O Divã, quando diz: “Relembro bem a festa, o apito/ e na multidão um
grito/ o sangue no linho branco…”, numa referência à cor do paletó que Renato
Spíndola usava no momento em que o socorreu.
Naquela mesma manhã, no hospital da Santa Casa, o médico aplicou uma
anestesia local de novocaína no acidentado e deu início à cirurgia.
Na época, em casos semelhantes, era comum fazer a amputação da perna
acima do joelho, prática mais rápida e segura. Mas Romildo tinha acabado de ler
um estudo americano sobre ciência médica que explicava que os membros
acidentados devem ser cortados o mínimo possível. Assim, a amputação da perna
do garoto foi feita entre o terço médio e o superior da canela – apenas um
pouco acima de onde a roda de metal passou. Essa providência fez com que
Roberto Carlos não perdesse os movimentos do joelho direito e pudesse andar com
mais desenvoltura.
Com a dúvida solucionada, aumentou ainda mais a admiração pelo cantor, que nos doa uma lição de superação. Em lugar de se tornar amargurado pelo acontecido, compôs um poema e fez uma canção. E em lugar de se assentar para se lamentar mergulhado no espírito de autocomiseração, galgou a íngrime escada do sucesso, tornando-se o mais reverenciado cantor do Brasil, superando sua limitação física. [Claudio Soares Sampaio].
Blog do Paixão