O governador dos pretos e mulatos do Brasil fez coisas incríveis para garantir o futuro das suas quatro filhas
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enrique Dias foi mais um que cresceu e
apareceu devido à invasão holandesa. Em tempos normais, homens como ele, João
Vieira, Felipe Camarão, André Vidal etc. — pretos, mestiços, índios ou brancos
de origem plebeia —, não teriam vez no aristocrático mundo luso-espanhol
daquela época. Mas a sua extrema coragem de soldado e o papel de líder entre os
da sua cor lhe abriram caminho em meio à guerra. Por mais de vinte anos pelejou
na linha de frente, chegando a perder a mão esquerda, entre muitos ferimentos
recebidos em combate. Em troca, além ser nomeado governador dos pretos e
mulatos do Brasil, o rei da Espanha o agraciado com o título de fidalgo, pelos
serviços prestados.
Ao fim e ao cabo, porém, essa honraria nunca
foi oficialmente reconhecida, nem outros prêmios devidos lhe foram entregues.
Então, em 1654, após a capitulação flamenga, ele entendeu que precisava seguir
lutando para receber o que merecia. E, com isso, garantir o bem estar e bons
casamentos para as suas quatro meninas…
NA PRIMEIRA LINHA
Henrique Dias, que também atendia pelo
apelido de “Boca Negra”, era um preto forro — ou seja, liberto — e não
precisava ter tomado partido na guerra. Mas, à frente de alguns homens negros e
livres, como ele, ofereceu seus serviços ao capitão-mor Matias de Albuquerque,
em 1633.
Noutro quadro, a oferta teria sido recusada.
Com as rebeliões de escravos se sucedendo com frequencia, os brancos não
julgavam um bom negócio armar negros e incentivá-los a lutar. Porém, num
momento em que a guerra contra os flamengos ia muito mal, aquela adesão fora
uma benção.
A bravura do Boca Negra tornou-se rapidamente
lendária. Já nos seis primeiros meses ele participou de diversos combates,
matou muitos inimigos e tomou nada menos que cinco tiros de mosquete. Mas
sarava com rapidez, tratando das suas feridas com lã de carneiro frita em
azeite de peixe, e jamais esmorecia.
Em 1637, por exemplo, numa batalha em Porto
Calvo, sua mão esquerda foi atingida e ele a mandou cortar, temendo que a bala
estivesse envenenada, sem abandonar o combate! E ganhou muita fama e
reconhecimento por isso.
PRESTÍGIO AMEAÇADO
Em 1637, porém, Maurício de Nassau chegou e
os holandeses, finalmente, além de tomar Pernambuco, estenderam seus domínios
de Sergipe ao Maranhão. Dias, então, exilou-se na Bahia, ao lado de outros
combatentes veteranos como o potiguar Felipe Camarão, o paraibano André Vidal
de Negreiros, o cearense Martim Soares Moreno e os pernambucanos Antônio Dias
Cardoso e Francisco Rebelo. E lá estava quando, no ano seguinte, o rei Felipe
III mandou que lhe dessem o título de fidalgo e um soldo mensal.
Esses prêmios, contudo, nunca chegaram. Ele
ganhou apenas a patente de cabo e o comando de duas centenas de negros, à
frente dos quais foi engajado na armada chefiada pelo Conde da Torre, enviada
da Espanha atacar os flamengos, em 1640. Mas aquela esquadra foi destroçada no
mar pela marinha de Nassau e o Boca Negra foi desembarcado no Rio Grande do
Norte, de onde voltou para a Bahia queimando canaviais e engenhos e matando
muitos inimigos pelo caminho.
Naquele mesmo ano, entretanto, Portugal se
libertou da dominação espanhola, que durava desde 1580, estabelecendo uma
trégua com a Holanda, sai velha aliada, no passado. E Dias permaneceu em terras
baianas, ocupado em assaltar quilombos e recapturar escravos fugidos, até os
pernambucanos se levantarem por conta própria contra o domínio holandês, em
1645. Então, ele retornou à sua terra e foi logo participando da batalha do
Engenho Casa Forte, no dia 17 de agosto, quando foi novamente atingido. Dessa
vez, numa perna. E mesmo ferido, continuou pelejando.
Em 1647, com trezentos homens, o Boca Negra,
ao lado de Felipe Camarão, expulsou os holandeses do Rio Grande do Norte, e no
ano seguinte participou da primeira batalha dos Guararapes, onde recebeu seu
oitavo ferimento — para variar, nas costas. Mas sobreviveu, como sempre, para
se ver desprestigiado pela primeira vez.
LUTA POLÍTICA
Ora, até então, todos os seus chefes
tinham-no tratado com estima e cortesia, mas o novo comandante, general
Francisco Barreto, não lhe tinha respeito. Nem sequer lhe pagava o soldo. E
Dias, revoltado, fora à luta novamente. Porém, em outro campo, o da política.
Em 1650, ele escreveu diretamente ao rei de
Portugal, queixando-se do tratamento recebido. E D. João IV o atendeu,
recomendando a Barreto que tanto o governador da gente preta quanto o
capitão-mor dos índios — Diogo Pinheiro, que assumira o posto do tio, Felipe
Camarão, morto em 1648 — “fossem mantidos animados e contentes por todas as
vias, com palavras e obras”.
Em 1654, após a vitória final, Henrique Dias
deveria receber a comenda da Ordem de Cristo e uma parte justa na divisão das
propriedades tomadas aos flamengos, segundo o combinado, afora dois mil
cruzados para distribuir com a sua tropa. Mas nenhuma dessas promessas foi
cumprida. O Boca Negra, porém, jamais esmorecia. E, em 1656, “pobríssimo”, ele
teve a audácia de ir a Portugal cobrar pessoalmente o que lhe era devido,
portando certidões juradas e justificadas dos trabalhos realizados.
Um combatente vitorioso na
guerra e na paz
Nem o próprio João Fernandes Vieira “foi tão
contínuo na guerra, nem teve tão bons sucessos” segundo ele próprio alegou, nas
suas petições. E venceu essa peleja, ganhando as casas e olarias que haviam
pertencido aos flamengos Vanufell e Gaspar Coque e as terras anexas a elas — ou
seja, boa parte do atual bairro da Boa Vista. Além disso, a rainha D. Luíza,
regente de Portugal após a morte de D. João IV, deu-lhe um novo alvará do
título de fidalgo concedido por Felipe III, da Espanha, em 1638, além de 1.600
réis por mês e um alqueire de cevada por dia.
Mas Dias não se satisfez. Em benefício das
suas filhas, pediu “tenças para comodamente acharem soldados honrados que casem
com elas”. E a rainha estabeleceu pensões de vinte a trinta mil réis para cada
futuro genro (embora o futuro sogro quisesse cinquenta).
Dias também cobrou a alforria dos escravos
que guerrearam contra os flamengos e recompensas para os pretos e pardos livres
que serviram no seu terço (batalhão), além da manutenção dessa tropa, enquanto
não houvesse paz definitiva com a Holanda. E ganhou tudo. O terço dos
“Henriques”, aliás, formado por pretos livres, foi mantido até 1817, quando D.
João VI mandou dissolvê-lo por ter apoiado a revolução ocorrida em Pernambuco
naquele ano.
Na viagem de volta, o Boca Negra recebeu seu
nono ferimento em combate, quando o navio em que viajava foi atacado por
“pixilingues” — piratas que tinham por base a cidade de Vlissingen, nos Países
Baixos. Contudo, escapou, mais uma vez, e viveu o bastante para ver as suas
quatro filhas bem casadas até morrer, em 1662.
Em 2002, seu nome também foi inscrito no
“Livro dos Heróis da Pátria”, em Brasília, ao lado de Felipe Camarão, João
Fernandes Vieira, Antonio Dias Cardoso e André Vidal de Negreiros.
Com embargo
Felipe III, rei da Espanha, mandou que fosse
dado a Henrique Dias o título de fidalgo e 40 escudos por mês “sem embargo”, em
1638. Porém, os conselheiros da Mesa de Consciência e Ordens sustaram essa
medida. Antes, era preciso indagar sobre a “limpeza de sangue” do candidato.
Ele não podia ser de “infecta nação”, aparentado com mouros, judeus ou
africanos. E também devia ser “de qualidade”, com ascendentes que jamais
houvessem exercido “ofícios mecânicos”. “Sem embargo”, só com ordem do papa. E
essa ordem nunca chegou.
Vizinhança agitada
Durante o cerco ao Recife, entre 1645 e 1654,
a casa de Henrique Dias era uma das “estâncias” que compunham o anel em torno
da cidade. Ficava tão perto das linhas inimigas que ele duelava à bala, no quintal,
com os flamengos que iam até lá em busca de cajus. E seus homens costumavam
cortar as cabeças dos inimigos mortos e desfilar com elas, cantando e dançando
pelas redondezas. O outro lado, por sua vez, fazia o mesmo, cortando cabeças de
negros e índios e usando-as como bolas para jogar.
Blog do Paixão