José Carlos Cueto - @josecarloscueto
Enviado especial da BBC News Mundo ao Catar
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Em um país onde os locais são minoria em
relação aos estrangeiros, a realidade das mulheres pode variar do profundo
conservadorismo ao progressismo que luta por mais liberdades
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uando os termômetros marcam 30°C no "inverno" do Catar,
famílias, torcedores e curiosos se reúnem caminhando pela avenida Al Corniche
que se estende por sete quilômetros na orla marítima da capital, Doha.
É aqui que se aprecia melhor o contraste
entre os visitantes ocidentais e várias famílias locais do Catar, que observam
com certo espanto o que está sendo montado em seu país.
Há apenas 350 mil catarianos neste Estado muçulmano de 3 milhões de
habitantes, e entre eles, todo um espectro de interpretação dos princípios
islâmicos.
Existem famílias conservadoras e tradicionais, mas também progressistas
e liberais.
O papel da mulher está no centro dessa
realidade repleta de zonas cinzentas.
Ao longo da Corniche, algumas caminham
completamente cobertas de preto e outras simplesmente usam um hijab colorido
(véu que cobre a cabeça e o pescoço).
Mas os problemas que as afetam vão muito além
da roupa.
No Catar, existe um sistema conhecido como
guarda masculina de mulheres, que os opositores descrevem como "ser menor
de idade a vida toda". Esse sistema é a base de muitas reivindicações para
obter melhores direitos.
No Reino Unido, a BBC conversou com
"Zainab", uma catariana que prefere não revelar o nome apesar de já
morar fora do país.
Zainab diz que certos elementos religiosos
conservadores dentro da lei do Qatar impactaram sua saúde mental a ponto de ela
contemplar o suicídio.
"Para cada decisão importante na vida, você precisa da permissão explícita por escrito de um tutor do sexo masculino. Se você não conseguir, não poderá tomar essa decisão, seja se matricular na faculdade, estudar no exterior, viajar, casar ou se divorciar", diz ela.
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Mulheres assistem aos fogos de artifício para
a abertura da Copa do Mundo em Doha
A catariana Shaima Sheriff é co-fundadora da
Embrace Doha, uma associação cultural cujo objetivo é ajudar a grande
comunidade de expatriados e o crescente número de turistas a entender melhor a
cultura do país.
Ela diz à BBC News Mundo, o serviço de notícias
em espanhol da BBC, que o pedido de tutela não responde a uma lei em si, mas se
baseia em normas familiares que dependem de quão conservadora é a família.
Sheriff representa o outro lado da moeda, o ambiente liberal do Catar, onde as
mulheres são empoderadas.
Em que consiste então o sistema de tutela?
Eleni Polymenopoulou, professora de Direito
na Universidade Bin Khalifa em Doha, explica à BBC News Mundo que a
Constituição do Catar, sendo um país muçulmano, se guia pela lei islâmica — ou
sharia.
"Mas a sharia é um corpo de regras muito
diversificado, com muitas escolas de pensamento, algumas mais rígidas e outras
mais liberais, modernas e reformistas", diz.
O artigo 35, por exemplo, indica que todas as
pessoas são iguais perante a lei e que não podem ser discriminadas com base em
sexo, raça, idioma ou religião.
Em 2019, a ONG Human Rights Watch (HRW)
publicou um extenso relatório onde recolheu dezenas de testemunhos semelhantes
aos de Zainab.
No mesmo documento, a organização descreve
que a tutela masculina não é um sistema legal claro.
"É uma mistura de leis, políticas e
práticas em que as mulheres adultas devem obter permissão de seu responsável
masculino para atividades específicas", diz a HRW.
Esse sistema é um desafio para aqueles que o
sofrem porque não há clareza ou informação sobre o alcance "destas leis
discriminatórias e requisitos administrativos".
O guardião masculino pode ser pai, irmão,
tio, padrinho ou marido.
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Algumas mulheres no Catar estão totalmente
cobertas, outras cobrem o cabelo
Como professora de vários estudantes de
Direito do Catar, Polymenopoulou diz que "muitas mulheres de famílias
liberais podem fazer muito mais coisas, mas depois há outras que precisam da
autorização do guardião para sair, por exemplo, e esse é um dos maiores
problemas. Depende muito da família."
"Muitos alunos meus sempre discutem como
mudar a lei, questionam por que funciona assim, por que são censurados e o que
deveria ser mudado. Outros são mais conservadores", acrescenta.
A BBC News Mundo pediu para entrevistar alguns alunos da Polymenopoulou, mas eles não entraram em contato. Entrevistar catarianos locais está sendo um dos desafios da imprensa que vem cobrir a Copa do Mundo.
"Uma ideia
ocidental"
Ter um pai conservador significava que Zainab
não levava a vida que desejava.
Ela conta que as mulheres do Catar cujas
famílias liberais não as restringem não percebem o quão prejudicial é o sistema
de tutela.
Zainab diz que esse sistema faz com que as
mulheres sofram nas mãos de familiares controladores e que as leis do Catar
muitas vezes se alinham com as famílias tribais conservadoras para mantê-las
satisfeitas.
"Os conservadores acreditam que os
direitos da mulher são uma ideia ocidental e que se chocam com os valores, a
tradição e a cultura islâmica", diz ela.
Zainab pediu à BBC que não detalhasse sua
experiência caso fosse identificada, pois isso poderia implicar em problemas
para sua família.
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No Catar, ao contrário de outras nações
muçulmanas, as mulheres têm acesso aos estádios
Uma visão compartilhada pela estudante
Moselle, da Cidade da Educação em Doha: "Não precisamos que as
organizações ocidentais venham nos dizer o que podemos e o que não podemos
fazer."
"É o nosso país. Temos a oportunidade de
nos desenvolvermos da forma que acreditamos e não da forma que nos é
ditada", acrescenta.
A visão de que existem mulheres conservadoras
que seguem e acreditam nessas normas que os ocidentais veem como restritivas
também é outra face dessa realidade.
Uma colombiana que mora no país há mais de
uma década conta à BBC Mundo situações em que catarianas conservadoras chamaram
sua atenção ou restringiram seu acesso a determinados lugares por considerarem
que suas roupas não eram adequadas.
"As autoridades costumam ficar do lado deles. Os conservadores veem isso como uma ofensa aos seus valores", diz ela, pedindo que sua identidade não seja revelada: "Como moradores, não devemos falar muito sobre isso".
'Geração empoderada'
Quando o governo do Catar respondeu ao
relatório da HRW, disse que "o empoderamento feminino é fundamental para
sua visão e sucesso".
"No Catar, as mulheres ocupam papéis de
destaque em todos os aspectos da vida, incluindo a tomada de decisões políticas
e econômicas. O Catar lidera a região em quase todos os indicadores de
igualdade de gênero, incluindo a maior taxa de participação da força de
trabalho para mulheres, remuneração igualitária no setor governamental, e o
maior percentual de mulheres matriculadas em programas universitários".
É o tipo de conquista em que Shaima Sheriff,
que representa um eleitorado feminino mais empoderado, prefere se focar.
"Acho que muitas pessoas têm ideias
erradas que mudam quando chegam aqui. As estatísticas sobre as mulheres falam
por si. Há muitas mulheres com mestrado e doutorado até mesmo em universidades
da Ivy League (grupo das oito melhores universidades dos Estados Unidos)",
diz ela à BBC News Mundo.
"Há mulheres incrivelmente inteligentes
aqui e muita coisa mudou nos últimos cinco anos. Muito está sendo feito no
Catar para reduzir a diferença de gênero e apoiar mais as mulheres. Também
temos muito apoio para serem mães, algo que nem sempre acontece em países
ocidentais", acrescenta.
Sheriff, que é formada em arqueologia, pede à
imprensa estrangeira e ao mundo exterior que também olhem para isso quando se
discutem os direitos e as liberdades das mulheres no Catar.
"Claro que nem tudo aqui é perfeito e temos muitas coisas para melhorar. Mas temos muitas mulheres empoderadas em cargos de liderança que estão colocando essas questões na mesa", conclui.
Blog do Paixão