Com as mudanças climáticas alterando os padrões de chuva, as autoridades da Catalunha precisam, ao mesmo tempo, combater a escassez de água potável e controlar o excesso de chuvas
- Author,Frank Swain
- Role,BBC Future
O Parc de Joan
Miró se estende por quatro quarteirões no final do distrito de Eixample,
em Barcelona,
na Espanha.
É uma grande
praça seca, marcada por palmeiras, bougainvilles com flores cor-de-rosa e um
alto pilar com cores brilhantes, chamado Dona i Ocell ("mulher e
pássaro"), projetado pelo famoso artista catalão (1893-1983).
Depois de
vários anos de seca, o parque está mais cheio de poeira do que nunca. Suas
fontes rasas secaram e a prefeitura da cidade chegou a derrubar palmeiras
murchas antes que elas caíssem.
No leste da
região espanhola da Catalunha, o período de 2021 a 2023 foi marcado por uma
das piores
secas da história.
Mas, em certos
momentos do inverno de 2024, uma enorme cisterna com 17 metros de profundidade
abaixo do parque ficou repleta de água da chuva. São os dois extremos
enfrentados da cidade, que pode receber água demais, mas ainda não o
suficiente.
"Sofremos
esta forte seca e, ao mesmo tempo, os resultados da chuva extrema",
declarou Marc Prohom, chefe de climatologia do Serviço Meteorológico da
Catalunha.
Depois de três
anos de tempo seco, as autoridades catalãs declararam estado
de emergência devido à seca no início de 2024, que se estendeu por
vários meses. E, no início de 2025, as baixas reservas de água deixaram a
cidade e a maior parte da sua área vizinha em estado de alerta de seca.
O fornecimento
para residências ficou restrito a 200 litros de água por dia, o que é menos que
uma banheira comum. O uso de água da torneira para regar jardins, encher
piscinas e lavar carros foi proibido
e sujeito a multas. Centenas de chuveiros públicos, espalhados pelas praias
da cidade, foram desligados.
O nível dos
reservatórios caiu tanto que eles foram totalmente esvaziados. As autoridades
começaram a armazenar água em menos tanques porque os baixos níveis poderiam
aumentar a toxicidade da água com a chegada do verão.
As chuvas intensas do
último outono no hemisfério norte causaram enchentes em Barcelona,
além de danos devastadores e perda de vidas em
Valência, também na Espanha. Mas elas não foram suficientes para reduzir os
efeitos da seca.
O Plano Nacional de Adaptação às Mudanças Climáticas da Espanha prevê aumento da intensidade e da frequência das tempestades, mas sua influência para recarregar os aquíferos será pequena.
Crédito,Prefeitura de Barcelona
A Espanha tem
longo histórico de enchentes repentinas. Grande parte do total das chuvas da
Catalunha cai na forma de intensas tempestades, concentradas no final do verão.
Uma única tempestade pode facilmente fornecer a chuva de vários meses em poucas
horas.
A intensidade
das chuvas da região se deve a um fenômeno meteorológico local chamado de golpe
frio, hoje também conhecido pelo nome mais preciso de Depressão Isolada em
Níveis Altos (Dana, na sigla em espanhol).
Basicamente, o
ar quente e úmido que se eleva do mar Mediterrâneo encontra uma massa de ar
frio estagnado em grandes altitudes, o que causa a rápida precipitação de
enormes volumes de chuva. E o aumento da temperatura dos mares deve aumentar a
frequência e a intensidade dessas tempestades.
As cheias que
atingiram Valência no final de outubro deixaram mais de 200 mortos. Elas foram
causadas por um episódio de Dana que fez cair um ano inteiro de chuva em apenas
poucas horas. E estes eventos estão ficando mais graves.
"A quantidade de precipitação que pode ser relacionada a este tipo de episódio extremo aumentou", explica Prohom. "Estamos enfrentando um novo desafio. Parece que as mudanças climáticas estão agindo com mais rapidez do que o esperado."
Atualmente, os
meteorologistas podem oferecer avisos sobre os eventos de Dana com vários dias
de antecedência. Mas é mais difícil saber exatamente onde e quando a chuva irá
cair.
Quando a chuva
cai, a água, muitas vezes, não tem tempo de se infiltrar no solo. Lisas e
férteis, as planícies de inundação formam um terreno atraente para o
desenvolvimento urbano e para a agricultura.
O crescimento
urbano gera superfícies impermeáveis, de concreto e asfalto, que evitam a
infiltração da água no solo. Os bueiros, galerias e barragens construídos para
reduzir o risco local de cheias simplesmente transferem o problema de lugar,
aumentando sua intensidade. E as mudanças das terras agrícolas também
prejudicam a capacidade de retenção da água no solo.
"Muitas
obras de defesa contra as cheias não são soluções, mas fatores que irão agravar
os danos, aumentando a velocidade e a altura das águas das enchentes",
afirma Julia Martínez, diretora-executiva da Fundação para uma Nova Cultura da
Água, uma organização de pesquisas independente com sede em Barcelona.
Segundo ela, ao
evitar enchentes pequenas e mais frequentes, estas defesas ainda incentivam o
aumento das construções nas planícies de inundação, ampliando os danos causados
quando as defesas são vencidas.
As estruturas
urbanas nas zonas de inundação são construídas de acordo com os "períodos
de retorno", que descrevem as cheias máximas esperadas a cada 10, 100 ou
500 anos. Mas Martínez explica que estes parâmetros de projeto não acompanharam
o aquecimento climático.
"O que
temos agora é um novo clima", explica ela. "Não existe infraestrutura
que possa fornecer segurança para eventos futuros, cuja magnitude
desconhecemos."
Além disso, as defesas contra as cheias são caras, o que também tende a exacerbar as desigualdades já existentes.
Crédito,Getty Images
Nem mesmo toda
esta chuva diminuiu a atual crise da seca. Os eventos de Dana costumam ocorrer
perto do litoral e grande parte da água potável de Barcelona é gerada por
fluxos que se originam no
extremo norte, no sopé dos Pireneus.
"A maior parte dessas grandes cheias ocorre em regiões onde a água não consegue se acumular", explica Martínez. "Elas surgem frequentemente em áreas inadequadas para represas, de forma que temos, ao mesmo tempo, escassez de água e problemas com enchentes."
Os cursos
d'água desapareceram
A cisterna
construída embaixo do Parc de Joan Miró é uma dentre os 13 reservatórios de
água ocultos sob as ruas de Barcelona.
A água da chuva
coletada ali não serve para aliviar a seca. Ela faz parte de um sistema que
evita que a água das tempestades sobrecarregue o sistema pluvial da cidade.
Quando a chuva passa, a água é liberada para o sistema de esgoto e flui em
direção ao mar.
A presença ou
ausência da água está registrada na geografia de Barcelona. La Rambla – o
famoso calçadão que sai do porto – vem do árabe ramla, que descreve o leito de
rio arenoso que, antes, marcava os limites da cidade murada.
Além dele, fica
a planície de El Raval. Suas fábricas desaparecidas há muito tempo eram
alimentadas pelos riachos que corriam perto de Montjuïc.
Ao andar sobre
o Carrer de la Riereta (Rua do Córrego), que atravessa o centro de El Raval, é
possível subir um banco invisível até a Poble Sec (Cidade Seca).
Agora, todos
esses cursos d'água desapareceram. E saciar a sede de 1,6 milhão de moradores
na densa área urbana de Barcelona não é uma tarefa fácil.
As principais
fontes de água são o rio Llobregat, na margem oeste da cidade, o rio Ser, a
cerca de 70 km ao norte, e diversos aquíferos que estão diminuindo. Estas
fontes são cada
vez mais insuficientes para atender a demanda, particularmente nos
anos de seca.
"Barcelona pode se gabar de que seu consumo de água por habitante é muito mais baixo que o de cidades similares", afirma Fernando Cabello, diretor de serviços de ciclo de água da concessionária municipal, a AMB. "Mas espera-se que o aumento da população e as mudanças climáticas façam com que a escassez de água continue a ser um desafio."
Atualmente, uma
parte significativa do orçamento destinado à água em Barcelona é simplesmente
utilizada para a manutenção das fontes existentes. O esgoto tratado é bombeado
rio acima, para manter o fluxo do Llobregat, e os resíduos purificados são
injetados no solo, para evitar que o Mediterrâneo invada o lençol freático da
cidade.
Após uma emergência
hídrica em 2008, Barcelona decidiu proteger melhor suas fontes de água. A
medida mais notável foi a usina de
dessalinização do Llobregat, a maior da Europa. Em 2021, ela fornecia 3%
da água potável da cidade.
Quando chegou a
última seca, um terço da água de Barcelona vinha da usina de dessalinização e
outros 25%, de água recuperada do sistema de esgoto, segundo Cabello.
A Agência de
Água da Catalunha pretende investir 2,4 bilhões de euros (cerca de R$ 14,4
bilhões) para se adaptar às secas e à escassez de água, incluindo planos de
construção de mais três usinas de dessalinização na região.
"Estamos
trabalhando para que, se for necessário, 100% da água potável possa vir de
recursos não convencionais, tornando o fornecimento independente do regime de
chuvas", segundo Cabello.
Reutilização
e combate ao desperdício
Além de
aumentar o fornecimento, a cidade dedica esforços específicos para minimizar o
desperdício.
A criação de
tarifas progressivas incentiva as residências a consumir menos água, enquanto
os usuários de maior consumo (normalmente, residências em bairros mais ricos,
com jardins e piscinas) pagam tarifas mais altas.
A cidade também
mantém uma rede de água secundária, que fornece água não potável (tipicamente,
recuperada) para limpeza das ruas, combate a incêndios e manutenção de parques.
Além disso,
estão sendo criadas leis para exigir que as novas residências e grandes
reformas instalem sistemas de água cinza, que coletam a água servida dos
chuveiros e das chuvas. Esta água residual é uma das grandes esperanças para o
abastecimento de Barcelona no futuro.
Na Catalunha,
as usinas de tratamento de esgoto descartam no mar grandes quantidades de água,
que poderia ser tratada e reutilizada.
As autoridades catalãs pretendem construir 23 estações de recuperação em toda a região, para fechar o ciclo da água.
Crédito,Getty Images
Mas resolver o
problema do excesso de chuvas já é algo mais difícil.
"Estamos enfrentando uma situação em que a precipitação exibe tendência de queda [na região], mas a mudança mais significativa que estamos observando é que a precipitação é mais concentrada em menos eventos, mais intensos",
Ela afirma que
episódios como os de Valência continuarão a ocorrer no futuro, enquanto a
urbanização humana continuar ocupando as planícies de inundação.
"Temos
medidas de proteção em muitos rios", segundo ela. "Mas, quando você
tem um evento extremo como esse, não existe barragem
que possa oferecer proteção completa."
As autoridades
espanholas e de outros países observam cada vez mais as soluções inspiradas na
natureza que trabalham em conjunto com o ciclo natural da água, em vez de
tentar resistir a ele. Estas soluções incluem o aumento da permeabilidade das
áreas urbanizadas, para que elas possam absorver a água da superfície, o que
vem sendo feito em países como a Nova Zelândia e o Reino Unido.
Este conceito
de "cidade-esponja"
foi colocado em prática no Parque Gorton, em Manchester, no Reino Unido. Nele,
recursos como valas, jardins de chuva, pavimentos permeáveis e fossos de
árvores ajudam a reter e reutilizar a água da superfície que, de outra forma,
iria sobrecarregar o sistema de drenagem pluvial.
Na região
italiana de Cinque Terre, voluntários estão consertando paredes de pedra seca,
ajudando a fazer reviver a agricultura em terraços sustentáveis, o que também
ajuda a reduzir a velocidade do fluxo de água pela encosta íngreme das
montanhas.
"As
soluções inspiradas na natureza irão se tornar fundamentais para os nossos
planos para enfrentar os desafios do clima extremo e das mudanças
climáticos", explica o gerente júnior do projeto, Francesco Marchese.
Mas a única
forma garantida de evitar as mortes e destruições associadas às enchentes seria
desocupar as planícies de inundação.
Martínez
defende que as casas e os edifícios destruídos pelas últimas cheias não
deveriam ser reconstruídos e que os fundos públicos deveriam ser empregados
para relocar as famílias para áreas mais seguras.
Mas, apesar dos
perigos, as prefeituras continuam defendendo que os mapas das cheias sejam
redesenhados, permitindo novas construções em áreas de alto risco.
"Existem
milhões de euros em benefícios privados para projetos urbanos, de forma que há
grandes pressões para construir em toda parte", destaca Martínez.
Crédito,Getty Images
As autoridades
de Valência foram
criticadas por terem deixado de emitir alertas para a população local,
mesmo com a previsão de chuvas intensas.
Mais de 500
municipalidades da Catalunha precisariam ter planos de emergência contra
enchentes. Mas menos da metade realmente dispõe deste tipo de plano, segundo a
Agência de Notícias Catalã. Nas demais, o plano de emergência está
desatualizado ou nunca chegou a ser elaborado.
Após as
enchentes do outono de 2024, o governo anunciou financiamentos para aprimorar
os planos contra as cheias. Polo afirma que esta medida é fundamental para que
as pessoas que moram em zonas de inundação aprendam sobre os riscos e saibam o
que é preciso fazer em caso de emergência.
Frente às
mudanças climáticas, a Catalunha precisará considerar a viabilidade do seu
desenvolvimento agrícola e urbano de longo prazo.
"Tivemos enchentes e secas no passado, mas os eventos atuais são mais frequentes e mais intensos", afirma Prohom. "Acho que precisamos fazer muitas mudanças no nosso modo de trabalho."
Em 2024, os
bosques de oliveiras da Catalunha sofreram queda de produtividade de 50%. A
Agência Catalã das Águas executou um corte de 80% na água destinada à
agricultura, entre fevereiro e maio. E, além disso, os aquíferos continuam a
encolher, especialmente na árida região sul.
"Temos
muitas terras irrigadas na Espanha", afirma Martínez. "Não podemos
ser o supermercado da Europa. Precisamos nos preparar e nos adaptar com
urgência, porque tudo irá ficar pior."
Polo concorda.
"Agora, precisamos repensar este modelo, pois é muito provável que ele não
seja sustentável no futuro." Mas ela ainda tem esperança.
"Conseguimos
produzir conhecimento e soluções com base nesse conhecimento. Sou cientista e
confio na nossa capacidade de enfrentar esses desafios."
Leia a versão
original desta reportagem (em inglês) no site BBC Earth.
Blog do Paixão